domingo, 5 de abril de 1998

Dois esboços

          Em 1947 é editado, pela Sudamericana de Buenos Aires, um volume chamado Nadie encendia las lámparas, formado pelos melhores contos escritos, até então, por Felisberto Hernández. Diz, na biografia que escreveu sobre ele, Norah Giraldi Dei Cas, que o passar dos anos fez saber que foi um livro lido com avidez por Gabriel García Márquez e seu grupo de Barranquilla, por Julio Cortázar, por Juan Rulfo.

           No ano anterior, o escritor uruguaio havia recebido uma bolsa para estudar em Paris. Em outubro, no “ Formose”, viaja para a Europa e, no dia 8 desse mês, o navio aporta no Rio de Janeiro onde faz uma escala. Chegou à noite e dois dias depois, Felisberto Hernández escreve algumas linhas que fazem parte do Diario de un sinvergüenza y últimas invenciones, publicado pela Arca de Montevideu, em 1974.

            Fala primeiro das luzes vislumbradas, filas bem alinhadas e, também de outras, semeadas caprichosamente, das formas escuras dos morros, como grandes lobos de mar ou como animais antidiluvianos, deitados na baía e meio cobertos pelas águas”. No dia seguinte, um amanhecer cinzento que fazia com que a paisagem parecesse suja, percebe arranha-céus e, entre eles, os morros com ruas de terra e casas velhas; noutros morros, as casas estavam amontoadas como pessoas pobres com cores desbotadas. Na beira do cais, vê muita gente que generaliza – são pequenos e escuros – o que não o impede de observar detalhes: chapéu de palha cor de rosa de um, boné preto de jóquei de outro. Quando começa o chuvisqueiro, se fixa nos guarda-chuvas semelhantes, no seu entender, a flores negras, artificiais e sujas.
          Realmente sujo, o bonde que tomou ao desembarcar e do qual lhe chamou a atenção a forma como eram cobradas as passagens: uma espécie de relógio, colocado diante dos passageiros e que marcava o número daquelas que iam sendo pagas.  Para cada uma, um golpe de sineta que não soava da mesma forma quando era solicitada uma parada.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Da Cidade Maravilhosa, então, somente ficaram registrados esses poucos traços da paisagem, essa curiosa maneira de cobrar o bonde e esses tipos humanos com os quais teve contato: aquele que lhe conferiu o passaporte ( um brasileiro pequeno, nervoso, negrusco e enrugado)  e esse outro que lhe vendeu e aos seus acompanhantes, a passagem no bonde (pequeno, negro, de cara desfeita). Impressões do dia 10 de outubro e que irão se acrescentar àquelas que escreveu na manhã anterior, numa carta em que diz estar na baía do Rio de  Janeiro, de onde, entusiasmado, afirma que o “espetáculo é  o único verdadeiramente fantástico no mundo. Lastima que os destinatários da carta não possam ver o que nenhuma fotografia é capaz de reproduzir: as montanhas apareciam como imensos fantasmas, mas é tal a variedade nas surpresas, nas dimensões, nos espaços iluminados em formas tão inesperadas que se está o tempo inteiro com a pele eriçada.

                        Na verdade, como diz Norah Giraldi de Dei Cas, as cartas a sua mãe deveriam, também, fazer parte desse diário de viagem que Felisberto Hernández pretendia elaborar e que, em relação ao Brasil, se constituiu apenas  desses pequenos textos. Textos que mostram o escritor em dois momentos: um, em que observa e se atém ao que vê e, o quê vê,  não o entusiasma. É o que irá escrever nas suas notas de viagem; o outro, o da emoção, quando se deixa impressionar pela paisagem do Rio de Janeiro a ponto de sentir a pele eriçada e disso faz confidência, em carta, à família.

                        É um efêmero olhar cambiante que deixará  entrever  como que duas cidades: uma acinzentada e a outra, radiosa. Sem dúvida, um breve testemunho de uma breve experiência pois o navio parte e o Brasil continuará a ser para ele um desconhecido. Assim, como sua grande obra magistral  ficará desconhecida dos brasileiros.

                        É que as fronteiras do Continente parecem sempre fadadas a serem intransponíveis.

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