domingo, 22 de março de 1998

Quando os anos passam

           Há aquele que se mata, não por ter sido um torturador, dominado por seus remorsos mas por tristeza amorosa; há o jovem desorientado e melancólico; há aquela que foi presa e torturada e há o que partiu e voltou. É ele o eixo da narrativa, é sua a voz principal: Javier. Como diz o autor um desexiliado  que após doze anos de obrigatória ausência, retorna a sua Montevidéu de origem, com um fardo de nostalgias, esperanças e solidão.
           Nessa volta, sucedem-se os reencontros. Desfazem-se laços. Enovelam-se outros. Em artigos que envia para um jornal da Espanha, procura entender e explicar um país que deseja reaver após tê-lo perdido.

             Javier dialoga e escuta monólogos, essas outras vozes que vão completando o que lhe falta dizer: a ganância dos irmãos, as reflexões de um aposentado, as notícias da filha e da ex-mulher que ficaram na Espanha; as justificações do deputado por ter mudado o seu modo de pensar. As vozes dos que foram presos pela repressão. Ele, que vem do exílio, percebe tudo com mornidão. Os que ficaram – a seu modo também uns desexiliados na medida em que estiveram no exílio em sua própria terra – também parecem incapazes de grandes emoções. E o que relembram do cárcere parece já estar matizado pelo tempo que passou; o que vivem, depois da falta de liberdade e da tortura, já foi contaminado pelo sofrimento. Sobretudo, é como se já não houvesse lugar para mudanças.

               Assim, Javier  volta do exílio para se refugiar numa praia deserta e ser sócio de um vídeo-clube; Fermin, retoma as aulas, interrompidas pela sua prisão e se contenta de inculcar alguma dúvida saudável, semear uma sementinha, isso sim, tudo com muito cuidado enquanto reencontra sua mulher e tenta reencontrar os filhos, criados sem pai; Egisto  Dossi, depois de seis meses de prisão, de exílio e consequente perda de tantos bens, não quer mais saber de emoções. Tampouco Eduardo Vargas, não mais entusiasmado por esquerdismos: depois de longa reflexão, contabiliza suas perdas pelo ideal da juventude e se aproxima do velho partido para ser um político tradicional, dos de sempre, vassalo do imperialismo. Igualmente cheio de dúvidas, que o tempo em que passou na prisão ajudou a alimentar, sobre a veracidade de uma escolha juvenil em que estava em jogo não apenas o presente mas também o futuro, Alejo. Ele se permite lembrar a experiência de seis anos de encerro, testemunho que Rocio, também presa e torturada, se nega. Não quer permanecer escrava daquela temporada alucinante, cavernosa e tenta  se reintegrar na vida, sem rancores. Reconhece as dificuldades, principalmente que os dez anos de prisão significam uma perda muito maior, como se fosse a metade de sua vida, num sacrifício que ficou sem resposta.

          Reflexões sobre o país, algum lirismo, mesclando-se ao presente ainda preso a um passado que vai se esmaecendo e que o uruguaio Mario Benedetti, em Andamios  (Seix Barral, 1996), procura reter.  Em algo de leve, de breve, de cordialmente irônico no dizer. Como se esta paz instaurada no país pela volta da democracia fosse tão frágil que levasse à necessidade de preservá-la até mesmo de palavras mais incisivas.

            E das muitas vozes o testemunho é tão verdadeiro quanto verdadeira pode resultar a frase de um dos personagens: A democracia é amnésica.

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