domingo, 29 de março de 1998

Do humor e da troça

           Cuatrocasas é um breve livro de breves contos. Publicado pela Losada de Buenos Aires, em 1976, ano em que foi premiado pela Casa de las Américas, faz de Eduardo Mignona, seu autor, um nome de exceção nas Letras do Continente.

           São dezoito contos que alguém poderia afirmar tratar-se de um pequeno romance onde o grande protagonista seria a linguagem. Jorge Lafforgue sobre eles diz, também, que é possível lê-los como um alegado contra a injustiça, um testemunho de situações intoleráveis. Na verdade, esse pequeno livro é tão surpreendentemente rico – e na sua forma e nos seus temas – que as aproximações podem ser múltiplas e profundas. Cada conto é um universo que se inscreve em Cuatrocasas, um povoado entre dois enormes latifúndios: a fazenda “La Esperanza” e a fazenda “Los Ñandues”. São léguas e léguas de campo e, além da terra, seus proprietários são como que donos de tudo. Ou aspiram sê-lo ou pensam que são.

            O conto “Los señores” é uma obra prima da troça nesse enumerar de embates em que as duas famílias latifundiárias se degladiam para se impor uns aos outros. Para isso, nunca lhes faltaram razões ainda que fosse preciso inventar. Assim, a partida de futebol entre as duas estâncias quando dizem os patrões: Jogando há de se ver de que lado estão os homens.
             Foi numa tarde de verão e ao estádio chegaram os patrões. Do automóvel foram para baixo dos guarda-sóis. Havia banda e os jogadores, de uniforme, eram fotografados. Os patrões apostavam alto. Porém, as apostas em francês, as apostas em inglês, as expectativas de um 7 a 0, de um 10 a 1 não venceram a vontade dos peões. Estáticos, ficaram no meio do campo. Indiferentes às ameaças – Estão todos desempregados, Vão morrer de fome – e  à espera dos patrões que voltaram no segundo dia, na outra semana e no outro mês enquanto eles ficaram ali, indiferentes aos ventos e aos aguaceiros até que as camisetas foram vencidas pelo tempo.

            O conto termina sem explicar decepções e em que tempo os patrões se conformaram com elas; sem dar voz aos peões para dizer da misteriosa imobilidade quando deles era esperada a ação.

           Nada impede, pois, de entender essa imobilidade como a recusa em  se constituir o circo para aqueles que sempre, desejando mais, lhes roubavam todas as forças, todos os suores, numa exploração sem leis.

           Então a troça que delineava os enfrentamentos entre as famílias é substituída pelo humor. Porque também é risível saber que os patrões, na expectativa do  jogo, apostaram duas mil ovelhas, mil hectares, um tonel de scotch, cem juntas de boi, ali no estádio voltaram muitas vezes e que os peões que eles queriam jogadores – foram vestidos uns com camiseta preta e gola branca, outros de verde com o nome da fazenda bordado nas costas – se imobilizaram todos, no meio do campo, indiferentes aos passar do tempo.

            Mas, sabe-se, o humor nunca é inocente. O querer dos patrões de se fazer servir, levado ao paroxismo de transformar os peões da fazenda em jogadores de futebol no intuito de resolver pendências pessoais, foi neutralizado. Mas por uma ação que, ao fugir da realidade – permanecer imóvel até as roupas se desfazerem sob as intempéries –, reafirma essa realidade onde jamais a vontade do patrão pode ser contrariada.

          E, se possui graça a situação – de um lado os patrões impotentes, esperando, agora, a vontade dos assalariados, do outro a imobilidade sem palavras –, igualmente sugere um lado vencedor, o dos peões; mas também, inevitavelmente sugere, a constatação da impossibilidade que tal aconteça. É quando o risível se torna reflexão.

                        Como os demais contos de Cuatrocasas, se trata de um conflito que acontece perdido num rincão distante mas que se extrapola para se transfigurar naquele que é eterno das relações humanas: o da exploração e domínio do homem pelo homem. E aí está uma das qualidades desse esplêndido conto. Suficiente para mostrar seu autor como um grande mestre do gênero no Continente.

domingo, 22 de março de 1998

Quando os anos passam

           Há aquele que se mata, não por ter sido um torturador, dominado por seus remorsos mas por tristeza amorosa; há o jovem desorientado e melancólico; há aquela que foi presa e torturada e há o que partiu e voltou. É ele o eixo da narrativa, é sua a voz principal: Javier. Como diz o autor um desexiliado  que após doze anos de obrigatória ausência, retorna a sua Montevidéu de origem, com um fardo de nostalgias, esperanças e solidão.
           Nessa volta, sucedem-se os reencontros. Desfazem-se laços. Enovelam-se outros. Em artigos que envia para um jornal da Espanha, procura entender e explicar um país que deseja reaver após tê-lo perdido.

             Javier dialoga e escuta monólogos, essas outras vozes que vão completando o que lhe falta dizer: a ganância dos irmãos, as reflexões de um aposentado, as notícias da filha e da ex-mulher que ficaram na Espanha; as justificações do deputado por ter mudado o seu modo de pensar. As vozes dos que foram presos pela repressão. Ele, que vem do exílio, percebe tudo com mornidão. Os que ficaram – a seu modo também uns desexiliados na medida em que estiveram no exílio em sua própria terra – também parecem incapazes de grandes emoções. E o que relembram do cárcere parece já estar matizado pelo tempo que passou; o que vivem, depois da falta de liberdade e da tortura, já foi contaminado pelo sofrimento. Sobretudo, é como se já não houvesse lugar para mudanças.

               Assim, Javier  volta do exílio para se refugiar numa praia deserta e ser sócio de um vídeo-clube; Fermin, retoma as aulas, interrompidas pela sua prisão e se contenta de inculcar alguma dúvida saudável, semear uma sementinha, isso sim, tudo com muito cuidado enquanto reencontra sua mulher e tenta reencontrar os filhos, criados sem pai; Egisto  Dossi, depois de seis meses de prisão, de exílio e consequente perda de tantos bens, não quer mais saber de emoções. Tampouco Eduardo Vargas, não mais entusiasmado por esquerdismos: depois de longa reflexão, contabiliza suas perdas pelo ideal da juventude e se aproxima do velho partido para ser um político tradicional, dos de sempre, vassalo do imperialismo. Igualmente cheio de dúvidas, que o tempo em que passou na prisão ajudou a alimentar, sobre a veracidade de uma escolha juvenil em que estava em jogo não apenas o presente mas também o futuro, Alejo. Ele se permite lembrar a experiência de seis anos de encerro, testemunho que Rocio, também presa e torturada, se nega. Não quer permanecer escrava daquela temporada alucinante, cavernosa e tenta  se reintegrar na vida, sem rancores. Reconhece as dificuldades, principalmente que os dez anos de prisão significam uma perda muito maior, como se fosse a metade de sua vida, num sacrifício que ficou sem resposta.

          Reflexões sobre o país, algum lirismo, mesclando-se ao presente ainda preso a um passado que vai se esmaecendo e que o uruguaio Mario Benedetti, em Andamios  (Seix Barral, 1996), procura reter.  Em algo de leve, de breve, de cordialmente irônico no dizer. Como se esta paz instaurada no país pela volta da democracia fosse tão frágil que levasse à necessidade de preservá-la até mesmo de palavras mais incisivas.

            E das muitas vozes o testemunho é tão verdadeiro quanto verdadeira pode resultar a frase de um dos personagens: A democracia é amnésica.

domingo, 15 de março de 1998

A escolha


          El camino a Ítaca, de Carlos Liscano (Montevideo, Cal y Canto, 1997), é um longo caminho para a negação. Vladimir, delinqüente, foge de seu país. Primeiro, vai para o Paraguai e o Brasil, depois para a Suécia e Espanha, buscando um lugar onde ninguém o conheça para começar de novo. Ao partir para a Europa, iludiu-se, pensando ser feliz num país tranquilo, frio, silencioso. Aguardavam-no a neve, o amor de Ingrid, uma paternidade indignamente recusada, a desolação de ser um  meteco, o estrangeiro que, na antiga Grécia, não gozava de todos os direitos da cidadania. Porém, mal aprendeu algumas frases se convenceu de que jamais dominaria a língua nem seria sueco e o que lhe importava era ceder ao desejo de saber o que havia mais além, perfeitamente convicto de que seu próprio país não o interessava. Tampouco aquele em que estava vivendo.

           Então se foi para Barcelona onde queria entender os anúncios, ler os jornais e se expressar como adulto. Mas lá, também se deu conta que, indubitavelmente, continuava a ser um meteco. Mais um entre os vinte milhões pululando no país, observados, controlados, dentro do possível, pelas leis e pela polícia.

           Vladimir, assim como não se esconde sob as máscaras usuais daqueles que obedecem preceitos – ele não quer trabalhar, não quer fazer parte do grupo que o rodeia, não quer usufruir das benesses que uma vida regular proporciona – não desvia os olhos das aberrações que fazem parte obrigatória do trato social.
 
           Sua experiência – tenta viver sem fazer nada mas, é evidente que, para satisfazer as necessidades vitais, deve ser submisso a algo, seja a trabalhos humilhantes, seja a mendicância – é narrada num tom anodino do qual  não se ausentam as notas corrosivas. Trata-se de uma trajetória de quem desce aos infernos mas  que o faz como que tranqüilamente. Não mantém ilusões sobre si mesmo como tampouco sobre essa sociedade, a Espanha dos Jogos Olímpicos, na qual, bem ou mal deve se inserir e que, na sua opinião, precisa apenas de um louco com tambor e bandeira para se dar conta que há inimigos e culpados para combater, enquanto simula que tudo vai bem.

              Vladimir, que fugiu do Uruguai por problemas relacionados com droga, busca um espaço, busca mudanças e percebe que elas não são possíveis num mundo regido por regras que lhe parecem discutíveis. Ironicamente cordial, melancólico, vai dando conta de si mesmo e do que está a seu redor. A miséria termina por degradá-lo.

               Nas duzentas e cinqüenta páginas em que monologa, se sucedem os conceitos, as rápidas troças, o humor negro, os instantâneos de um cotidiano que não resiste à críticas, as confissões de solidão.

                Muito simples o ato de narrar numa linearidade dos fatos que surpreende ao unir as duas pontas da história, círculo vicioso sem saída como parece que deve ser quando o indivíduo repudia normas.

                 São pobres e mesquinhas as aventuras de Vladimir. As de um homem que se deseja livre e não se furta por isso de pagar um preço: itinerário de ausências e de privações, tão absurdo quanto os outros determinados pelo viver comum e corrente.

domingo, 8 de março de 1998

O nome das coisas

           Como autores, aparecem os nomes de Mara La Madrid e Juan Gelman. Ela, psicanalista e coordenadora de atividades relacionadas com organismos de direitos humanos; ele, um dos mais importantes poetas latino-americanos de hoje. Ambos, por razões políticas, saíram da Argentina, na década de 70 e vivem, atualmente, no México. As vozes que fazem o livro Ni el flaco perdón de Dios. Hijos de desaparecidos (Buenos Aires, Planeta, 1997), no entanto, são muitas. Ou de um escritor, um jornalista, uma advogada, um psicanalista, uma historiadora da educação; ou, de pessoas ligadas a entidades como a Asociación de Ex Detenidos Desaparecidos, Madres de la Plaza de Mayo, Instituto de Estudios y Acción Social, Centro de Estudios Legales y Sociales, Comisión Nacional por el Derecho a la Identidad, Abuelas de la Plaza de Mayo. Principamente, são as vozes de jovens que perderam seus pais na guerra suja em que, durante tantos anos, esteve mergulhada a Argentina.
          Daqueles que hoje trabalham na investigação do que, então, acontecia, daqueles que hoje querem impedir que tudo caia no olvido é a voz que registra, que discute. Espontânea, embargada, a dos filhos ao narrar uma experiência de vida que mais do que à realidade histórica dos fatos parece pertencer a uma diabólica ficção.
          São jovens que ou não conheceram seus pais ou que mal os conheceram ou que deles foram privados, sendo, ainda, muito crianças ou adolescentes porque os pais desapareceram, vítimas da repressão.

           Recolhidos por parentes, em geral pelos avós, foram criados como órfãos de pais sem sepultura e rodeados de um silêncio prolongado até que se formou “Hijos”, grupos de filhos de desaparecidos que se reúnem para falar, procurar, saber. Para, mutuamente, tentar se ajudar.

            Então, para eles, pela primeira vez, há uma possibilidade de expressão e o que fora calado pode ser dito. E o que pode ser dito significa perguntar, nessa ânsia de querer saber quem foram, verdadeiramente, esses pais quase desconhecidos e o que lhes aconteceu.

             Rompem, assim, o silêncio que imperou durante muito tempo porque a família tinha medo, ainda, da repressão, tinha medo do sofrimento que a verdade – os pais torturados, os pais assassinados na cadeia – poderia causar.

domingo, 1 de março de 1998

O grande risco

           É uma leitura árdua: extenso relatório colmado de nomes e de siglas e decretos e negociações. Noticias de un secuestro, um milhão de exemplares vendidos somente em espanhol                 

           Em outubro de 1993, Maruja Pachón propôs a Gabriel García Márquez que escrevesse um livro sobre a sua experiência de seis meses como seqüestrada do narcotráfico e das diligências de seu marido para libertá-la. Ponto de partida de um livro que, no dizer do escritor colombiano, foi o mais difícil e triste de sua vida, uma história real contada pelos protagonistas que viveram o drama.

            O livro se inicia com o seqüestro de Maruja Pachón às sete e cinco da tarde numa Bogotá de céu turvo e triste. Mas, Gabriel García Márquez não irá contar somente o que a ela aconteceu a partir desse momento até aquele em que foi libertada, conforme seus relatos, mas, também, o que conseguiu saber dos outros nove que, igualmente, foram seqüestrados na época.

             Assim, no livro se entremeiam os textos que narram o que foi para Maruja Pachón e suas companheiras, Marina Montoya e Beatriz Villamizar de Guerrero, o cativeiro e os que tratam das negociações para conseguir-lhes a liberdade.       

             Gabriel García Márquez não se permite recursos de estilo e busca, apenas, a objetividade de um texto cuja proposta é a informação.

              Porém, para falar da situação de um país que somente se deu conta de sua importância no tráfico mundial de drogas quando os traficantes irromperam na ala política do país pela porta as fundos, primeiro com seu crescente poder de corrupção e depois com aspirações próprias foi necessário possuir uma gama de dados tão grande como aquela imprescindível para tratar do motivo principal da guerra iniciada pelos narcotraficantes: o terror diante da possibilidade de ser extraditado aos Estados Unidos onde poderiam ser julgados por delitos ali cometidos e, então,  passíveis de sofrer penas muito grandes.

              Assim, na sua grande maioria, o texto de Noticias de un secuestro registra o longo itinerário que persegue não apenas uma solução satisfatória para a libertação dos reféns mas, também, aquela que atenda as pretensões dos narcotraficantes.

             Breves tréguas, o perfil que o romancista traça de Rafael Pardo, designado pelo Presidente da Colômbia para ser o mediador entre o governo e a família dos reféns ou o de Marina Montoya que, depois de meses de cativeiro, foi condenada à morte. Tanto o seu estar na prisão como os últimos momentos em que nela passa são de uma grande dramaticidade, cujos tons se reforçam diante da impossibilidade de saber se teve ou não consciência de estar sendo conduzida a seu fim ou se morreu acreditando que a agraciavam com a liberdade.

            No texto que antecede Noticias de un secuestro, Gabriel García Márquez agradece aqueles que, de alguma forma, o ajudaram a realizar a obra e expressa a esperança de que nunca mais suceda o que foi motivo de seu livro. Mas, qualquer que tenha sido a sua intenção, ao escrever a obra, não foi julgado inocente pelos narcotraficantes. Cada vez que vai a Colômbia, três guarda-costas vigiam pela sua segurança.

           Parece que, ao dizer que o grande risco na América Latina é estar vivo, ele sabe do que está falando. E quem toma conhecimento da sua frase e não ignora o que ocorre no cotidiano do Continente, não pode, tampouco, dela discordar.