domingo, 30 de novembro de 1997

Singular República

           Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu numa segunda feira, 13 de maio de 1881. Por ironia do destino, no mesmo dia em que anos depois ocorreria a Abolição da Escravatura o que, como é sabido, não tornou os escravos livres mas os agrilhoou, na sua maior parte, ao longo do tempo, numa como que intransponível miséria. Quanto a ele, jamais se libertaria dos sentimentos que a cor de sua pele fez emergir e que iriam marcar-lhe a vida e, indelevelmente, a obra.
                                 
            Nos fragmentos de seu Diário íntimo, que a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de publicar na “Série pequenas grandes obras”, a brevíssima amostragem dos textos selecionados é rica em exemplos de quanto o não ser branco lhe amargurou os dias.
                                  
           Deveras melancólico é ver esse debater-se entre a pobreza mesquinha, o sofrimento por ser mestiço e as aspirações de glória que uma obra de valor poderia lhe dar.
           Lima Barreto não suporta sua casa (nela nunca me acomodei), a sua família (Há em minha gente toda uma tendência baixa, vulgar, sórdida), a doença de seu pai (O meu pai delira constantemente e seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare), o comportamento da irmã (minha irmã [...] deve ter um certo recato, uma certa timidez). Então, cola retratos e figuras nas paredes de seu quarto para torná-lo mais garrido, pretende dar ao pai melhores condições de vida, evita dissabores com a irmã por aceitar toda espécie de namoros mais ou menos mal intencionados e foge sempre para a rua, procurando um ambiente menos hostil.
           Mas, embora se fixe na natureza exuberante do Rio de Janeiro – nesses fragmentos várias vezes nela se detém em descrições onde abundam as cores -, as pessoas que observa ou com as quais se encontra, igualmente, o importunam. Como, também, o ambiente militar (onde se sente deslocado) em que trabalha ou os literatos (incrível a ignorância dos nossos literatos) e os críticos da época (até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto de crítica, injuriar o autor?).
          Mais do que tudo, porém, grandemente, o importunam a sua condição de mulato – ainda que descubra que seus olhares possam interessar as damas; ainda que pretenda escrever um romance em que se descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda; ainda que possa confessar ter amor pela gente negra – e, a tal ponto, que se permite dizer: É triste não ser branco.
                                 
            Sobretudo, se vive numa sociedade que se ufana de não ser racista mas onde aparecem, constantes, as manhas da segregação.
                                  
           Quando Lima Barreto recebeu um convite para assistir à partida da esquadra americana em visita ao Brasil, a bordo de um navio do Lloyd, se deu conta que, na prancha, para embarcar, a não ser a ele, não pediam o convite para mais ninguém; ao ir à Secretaria de Estado das Relações Exteriores tratar de assunto relacionado com seu trabalho, mesmo acreditando ser um cidadão brasileiro, foi maltratado pelos contínuos enfardelados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados.

             E, sabendo que a nomeação de um negro para professor do Colégio Militar fora sustada, ele faz reflexões sobre essa República tão pouco liberal que se proíbe dar um lugar de professor para um negro. Conclui: É singular essa República.

            Que é, ainda, a República dos brasileiros.

domingo, 23 de novembro de 1997

Reflexões de Maximilien

           Professor de Literatura da Universidade de Laval, Quebec, no Canadá, Maximilien Laroche é autor de Sémiologie des apparences, La double scène de la représentation, La découverte de l’Amérique pour les Américains, L’avenemement de la Littérature haitienne. Recentemente, acaba de publicar Bizango, essai de mythologie haitienne, número 14 da coleção Essais, da Grelca, uma edição da Universidade de Laval.

           Um artigo de Jean Pouillon, publicado na Nouvelle Revue de psychanalyse (6, 1972), lhe inspira a estrutura do livro cujos três capítulos tem por título “Manières de table”, “Manières de lit”, “Manières de dire”.  “Manières de table” (Maneiras à mesa), se inicia falando do livro L’année de toutes les duperies de Robert Malval, o atual best-seller da edição haitiana. Como se trata das memórias de um diplomata, a política é o seu tema dominante. Mas, o que atraiu a atenção de Maximilien Laroche foi o que ele chama de um detalhe à primeira vista talvez insignificante ou sem demasiada importância que ele mesmo se questiona não se tratar de uma frivolidade nele se ater: o lugar da refeição, os convites para jantar na estratégia política do diplomata.

             Fixar-se em tal detalhe, porém, se explica muito bem: o Haiti é uma sociedade da fome. A frase é de Claude Souffrant, no seu livro Sociologie prospective d’Haiti. Maximilien Laroche não pode deixar de lembrá-la como tampouco as primeiras páginas do romance Compère genéral soleil, de Jacques Alexis, a evocação alucinante da corrida desesperada de um homem faminto, perseguido por uma matilha de policiais.

            E a relação vem de per si: um país de famintos e que pede o que comer recebendo como resposta apenas palavras vãs; servem-lhe palavras para os ouvidos quando estão privados dos alimentos para o estômago.

           Daí esse refletir de Maximilien Laroche sobre a disparidade das mesas no Haiti: Nós não comemos igual no Haiti, se é que comemos! Porque o critério de classe divide, compartimenta, separa e diferencia os haitianos desde a primeira refeição do dia. Quando, alguns só podem tomar um caldo de milho, grosseiramente moído, outros se deliciam com um arroz cada vez mais fino, cada vez mais Uncle Sam.

             Resta a Maximilien Laroche preconizar uma estética, visando essa unificação que parece tão somente sonho de poetas: que todo mundo tenha seu pão.

            Certamente, é algo muito simples. No entanto, parece ter sido sempre algo de inalcançável, também, no Continente.

domingo, 16 de novembro de 1997

As descobertas


           No verão de 1953 foi criada, em Paris, The Paris review com o objetivo de publicar trabalhos ficcionais e poéticos em vez da escrita sobre a escrita. Além da publicação de trabalhos originais, a proposta era registrar as palavras dos próprios escritores sobre as suas obras o que originou reportagens com mais de duzentos romancistas, poetas e dramaturgos contemporâneos.

          Passados alguns anos, em 1996, a editora El Ateneo de Buenos Aires selecionou as reportagens sobre escritores latino-americanos para publicar Confesiones de escritores, Escritores latinoamericanos, no qual estão presentes Adolfo Bioy Casares, Jorge Luiz Borges, Guillermo Cabrera Infante, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda, Octávio Paz, Manuel Puig, Mario Vargas Llosa.

           Com exceção da entrevista de Adolfo Bioy Casares, realizada em 1995, as demais são menos recentes. A que foi feita com Jorge Luiz Borges, por exemplo, data de 1966 e, as demais, de 1970, 1981, 1989, 1990 e 1993. Não tratam, então, das últimas obras publicadas, mas determinadas questões – sobre o método de trabalho do escritor, sobre suas leituras, sobre o fenômeno da criação, sobre a gênese de certas obras – conferem à Confesiones de escritores características curiosas e instigantes. Ainda que, por vezes, as perguntas versem a propósito de algo da vida pessoal do escritor (momentos amorosos de Adolfo Bioy Casares ou o que ocasionou a ruptura entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez) ou tenham sido anteriormente respondidas.

           Assim, Mario Vargas Llosa já havia dito antes que La guerra del fin del mundo é a sua obra mais importante. Reitera a afirmação, nessa entrevista de 1990, ao comentar que, na sua origem, o tema não estava destinado a um romance mas a um filme de Rui Guerra que seria produzido pela Paramount de Paris.Foi conversando com o cineasta, cuja idéia era filmar uma história relacionada com Canudos que ouviu, pela primeira vez, falar no assunto. Para realizar o roteiro, que lhe havia sido encomendado, passou a ler sobre a Guerra dos Canudos e uma de suas leituras iniciais foi Os sertões.Essa obra de Euclides da Cunha, diz, foi, para ele, uma das grandes revelações. Como o fora a leitura de Os três mosqueteiros quando criança ou Guerra e Paz, Madame Bovary e Moby Dick já adulto.

          Atônito, se dá conta de ter lido um dos melhores livros já escritos na América Latina e que a ele deve La guerra del fin del mundo. E, então, se deixa fascinar, também, pelas demais obras sobre Canudos. Quando o projeto cinematográfico foi interrompido, continuou pesquisando, num entusiasmo que o fez trabalhar dez a doze horas por dia. O resultado foi o romance que, no seu entender, chegou mais perto do que ele chama o romance total (expressão usada para classificar Cien años de soledad quando, em 1971, escreveu García Márquez: historia de un deicidio), aquele romance que descreve, desde o nascimento até a morte, um mundo fechado e tudo aquilo que o compõe seja o individual, o coletivo, o legendário, o histórico, o cotidiano, o mítico.

          Além disso, confessa que o tema de Canudos lhe propiciou o que sempre desejara: escrever um romance de aventura profundamente ligado às questões históricas e sociais. Sobre elas, Mario Vargas Llosa trabalhou durante quatro anos, partindo, pela primeira vez na sua vida de escritor, de um universo desconhecido. Foi levado não somente a entendê-lo mas a perceber o quanto faz parte da História deste Continente o fanatismo e a intolerância.

           Tal relação, como aquelas feitas, muitas vezes, pelos demais autores entrevistados, contribui para dar vigência a essas confissões que os anos passados, a partir da data em que foram feitas, não alcançaram diluir.

          Até porque já é um fato aceito pelos latino-americanos só tomar conhecimento de certos acontecimentos muitos anos depois de eles terem se passado. Um atraso que também marca a distância entre o Primeiro Mundo, produtor científico, cultural e ideológico e os outros que lhe seguem, colonizadamente, os passos.

domingo, 9 de novembro de 1997

O homem solitário

           Inicia Graciela Mántara o seu livro, Francisco Espínola: época, vida e obra (Ediciones de la Casa del Estudiante, Montevideo, s/d) dizendo que, na curta história da Literatura uruguaia, um número excessivo de escritores foi convertido em mito o que, no seu entender, pode significar algo de positivo ou de negativo: positivo, quando afirma e prova a existência de valores permanentes de uma obra ou da figura humana que a produziu; negativo, ao dizer da existência de valores sem submetê-los à prova ou a revisões periódicas, deixando, assim, os escritores e suas obras congelados como estátuas de bronze que obrigam à homenagem e à reverência como aconteceu com Zorrilla de San Martin, Delmira Agustini, Juana de Ibarbourou, Fernán Silva Valdés pois, embora possam aparecer críticos dispostos a uma revisão séria e objetiva para situar os valores nos seus justos termos, eles acabam por não transcender os círculos intelectuais e o Ensino continua a manter intocados os seus bronzes.

          Para a  autora uruguaia  não foi o que se verificou com Francisco Espínola, igualmente, uma figura-mito da Literatura de seu país. Críticos deslindaram erros e acertos, valores permanentes e elementos perecedouros na sua obra. E retoma essas apreciações para continuar com um trabalho de aproximação crítica cuja qualidade, além da extrema clareza de exposição, é a minuciosa análise de dois contos de Francisco Espínola – “Rodriguez” e “Qué lástima!” – verdadeiramente dignos de figurar nas melhores antologias do gênero. E reconhece, como um paradoxo, não fossem as válidas razões, que a figura de Francisco Espínola como ser humano continua –sendo exemplarmente mítica pois seus amigos e discípulos tanto disseram e tanto escreveram sobre ele que essa gama de testemunhos já se incorporou à memória da comunidade.

          Quando ela fala nessas facetas que em Francisco Espínola coexistiram – o amigo, o professor, o conversador incansável e brilhante, o escritor de vários gêneros, o leitor sensível e penetrante das obras alheias, o militante político – mostra-se, em cada episódio, algo de curioso, de inesperado, de comovente.
          Assim, esse testemunho que Francisco Espínola dá sobre a gênese de um conto; assim, essa tardia adesão ao Partido Comunista; assim, essa experiência de se ver privado de liberdade.
          Foi no Levante contra Gabriel Terra, em janeiro de 1935. Presidente do Uruguai havia assumido quatro anos antes e logo negara a Constituição. Contra ele se posicionou um grupo para destituí-lo do Poder. No Passo Morlán, em Colonia, houve um encontro entre governistas e rebeldes que deixou três baixas e alguns prisioneiros. Um deles, Francisco Espínola.
          Quando, diante da Delegacia desceu da viatura, na calçada, um homem o cumprimenta, reconhecendo nele o autor de Sombras sobre la tierra, romance que havia publicado em 1933.Logo, o deixam sair da cela porque o homem que o reconhecera, confessando-se um admirador, dispõe-se a preparar-lhe uma comida especial. Francisco Espínola se comove com o gesto mas recusa e volta, contente para junto dos companheiros. Diante das perguntas que lhe fazem, responde: Ai, é uma pena que vocês não tenham me ajudado a escrever Sombras sobre la tierra. A esta hora estaríamos todos jantando.

domingo, 2 de novembro de 1997

Sonetos de luz


           Publicou Verde que se oye em 1971 e Palabras cruzadas em 1977. Quinze anos depois, pela Fundación Instituto Superior de Estudios Lingüísticos y Literarios (Buenos Aires), Alumbramiento de los dias, um conjunto de sonetos. Em epígrafe, um texto de Enrique Larreta busca a definição do soneto, esse poema de engenhosa geometria que não tolera o prestígio meramente verbal, mas busca o sentido pleno da espiritualidade.Presos nos quatorze versos, o milagre de um cárcere mais livre que o ar de seus decassílabos, o sentir de Maria Judith Molinari.

          Sentir abrasado pelos pequenos milagres do cotidiano: o cheiro da chuva, o brotar dos jasmins, o bater dos sinos, o círculo de pássaros no céu, a serena claridade da janela, o desfolhar de uma árvore. Sentir onde pulsa a emoção das lembranças. As manhãs, as tristes ausências, a memória da felicidade que perduram onde o desejo do outro se esboça nas expressões que a ele se dirigem: Meu amor te abraça, quando o vento chama teu nome, pensando em ti, desamparada, Eu sei que me traçaste este caminho, As vezes me pergunto dos motivos / que me levam a nomear-te em cada verso.
           Principalmente, um sentir que emerge na busca de si mesma. Maria Judith Molinari se compraz em se procurar, em se encontrar, em se saber poeta. E os jogos de palavras que estabelece são cheios de cores – é o verde, o negro, o azul, o ocre e o marrom, o vermelho. É o branco do lírio e da magnólia, é o amarelo das acácias. Que também remetem à simplicidade de sentidos plenos de um espaço exterior (lua, rosas, laranjais, estrelas, sol, água, crepúsculos de espuma) e a uma paisagem interior plena de fé e de esperança, de um confiar na palavra, de um confiar no poema, oração de cada manhã.

           Nas palavras que antecedem em Alumbramiento de los dias os seus sonetos, Maria Judith Molinari se confessa uma aprendiz indisciplinada. No entanto, é no soneto que ela aprisiona seus versos tão cheios de luz.