domingo, 31 de agosto de 1997

Vozes da narrativa. Os escravos

           Entre cenas familiares, descrições de costumes, identidades ocultas e o relato dos amores de Leonardo Camboa e Cecilia Valdés, desfilam páginas onde se mesclam sensualismo, ciúmes, crueldades, vingança, caprichos e a evolução da sociedade cubana, nos primeiros anos do século XIX, para fazer de Cecilia Valdés uma obra revolucionária tanto no sentido literário quanto político.

          Embora no prólogo do romance Cirilo Villaverde confesse dívidas para com Walter Scott e Alessandro Manzoni, em muitos momentos do livro se torna evidente o rechaço dos modelos europeus. Por exemplo, nesse intento de criar um personagem distante do protótipo literário de então: Cecilia Valdés, a vênus de bronze, que não somente se diferencia das loiras personagens de olhos claros pela cor, como pela sua classe social bem longe da aristocracia a qual soem pertencer as heroínas românticas.
           Politicamente, ao criticar a submissão de Cuba à Espanha e as questões raciais e ao relatar a paixão de uma jovem mulata por um homem branco, seu romance se afasta dos moldes europeus e passa a ser considerado uma obra anti-escravagista.

           As relações entre as famílias enriquecidas pela prática da escravidão e que se querem aristocratas, com os mulatos e com os negros escravos se estabelecem, no romance, a partir de desencontros, desprezos, injustiças: os homens consideram as moças negras e mulatas como objetos sexuais; os donos de escravos são inumanos no trato que lhe dão; os escravos que recuperam a liberdade e tentam se educar continuam sendo vítimas do preconceito; no negócio negreiro, durante uma tempestade, é preferível, perder a “carga”, jogando-a no mar, do que perder o navio.
           No capítulo VI de Cecilia Valdés o diálogo entre Cándido Camboa e sua mulher Rosa é, desse comportamento, uma síntese. Trata-se da chegada de “Veloz”, o barco negreiro de sua propriedade. Próximo de la Habana, corre o risco de ser preso pelos ingleses e dona Rosa se exaspera por não entender porque a Inglaterra se opõe ao tráfico de escravos e não ao transporte de azeite, passas e vinho da Espanha.

           Quando o marido lhe conta que para fugir do barco inglês, o capitão deu ordem de jogar ao mar os negros que viajavam no convés, ela se horroriza, como se horroriza ao saber que os que estavam no porão, apertados como sardinha, quase sem ar, poderiam morrer sufocados. Ao que o marido responde: Nada disso, mulher. Estou acreditando que tu achas que os sacos de carvão sentem e padecem como nós. Não é assim. E para exemplificar diz das condições em que são trazidos os negros no barco. Diante da piedade da mulher pelas crianças que, igualmente, foram jogadas na água para aligeirar o barco e de sua preocupação por essas mortes sem batismo, argumenta que é uma blasfêmia considerar que o que ele chama de fardos da África possam ter alma e que, assim sendo, entre eles e um fardo de fumo não existe a mínima diferença.
          A conversa é interrompida pela chegada de um personagem e o narrador onisciente, observa que, assim o queira ou não o rico Cándido Camboa, a sua carga é composta de seres humanos.
         É a voz da razão que estará sempre presente no romance e que, juntamente com os fatos narrados – espancamento de escravos, ameaças constantes de surras e castigos, separação de uma escrava de sua filha por tê-la amamentado junto com a filha do amo, golpes cruéis por qualquer ninharia e sempre, sempre, o látego, seja qual for a razão – irá traçar as intenções primeiras de Cirilo Villaverde.
          Ao querer a liberdade para seu país – foi por isso preso, condenado à morte e conseguindo fugir passou a vida inteira nos Estados Unidos – e a dignidade para seu povo, se antecipou, como um arauto, às decisões que, muito mais tarde, transformariam a História de Cuba onde a Abolição da Escravatura se deu no ano de 1886 e a libertação da Espanha em 1892. O primeiro tomo de Cecilia Valdés foi publicado em 1839.
         

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