domingo, 1 de junho de 1997

Trocar de estrelas

            É apenas um episódio de Libro de navios y borrascas de Daniel Moyano. Na história de uma travessia sem encantos, a dos sul-americanos do Cone-sul partindo de Buenos Aires para Barcelona, exilados, o momento em que mudam de hemisfério.

            Não é preciso tomar tão a sério, mudar de estrelas é como mudar de casa, uma mudança, nada mais, disse um dos personagens. E outro faz uma descrição do céu que iriam ver daí em diante como se fizesse a da casa em que iriam morar.

            Claro, houve aqueles que muito pouco tinham se fixado no céu do Continente. Também, aqueles que olharam pela primeira vez para o Cruzeiro do Sul. Mas, saber que desapareceriam as suas estrelas para, no lugar delas, aparecer Cástor ou Pólux era a reafirmação da realidade do exílio a que eram destinados esses indesejáveis do Sistema.

Tentam prolongar a imagem do seu céu, tentam fazer uma cerimônia de adeus regada a vinho, tentam fazer o brinde de feliz céu novo enquanto o barco navega para o norte e a constelação do Cruzeiro do Sul vai desaparecendo.

            Para o romancista Daniel Moyano, ele próprio um exilado dessa década de 70, a desgarradora perda de um céu estrelado faz parte de um todo de muitos sofrimentos.

            O capítulo X do romance se inicia com a frase Ontem à noite as estrelas começaram a mudar. Mas, imediatamente passa o narrador a falar do caderno no qual ele  anotou a sua frase, passa a falar de lembranças de família, para, então, repetir, com uma leve mudança a frase: A noite em que as estrelas começaram a mudar. Outra vez se dispersa, lembrando os antigos gaúchos argentinos para, então, tornar ao tema numas poucas linhas –já está tão pequenininho o Cruzeiro do Sul, é preciso trazer mais mate e mais vinho, acordem as crianças para que se despeçam –e, de novo, mudar de assunto ao narrar a mudança de casa de um dos viajantes e mais uma vez voltar a essa despedida: alguém lembra de trocar de signo de zodíaco, alguém lembra que teve um filho morto pela repressão, alguém vê descobertas as marcas de tortura no seu corpo.

            E na melancolia de um céu perdido, contidos os dramas maiores num tecer romanesco feito de ricos e imprevistos recursos. A narrativa se faz em meandros e a ela se acrescem pedaços de histórias mostrando um mundo cruel – o pai procurando fugir da dor pela morte do filho, o olhar do menino para seu universo desfeito cabendo num caminhão de mudança, o querer esconder a marca da tortura – expressão de tudo o que a repressão ensejou: perseguições, seqüestros, prisões, torturas, morte.

            Então, mudar de estrelas significou a salvação. Para os navegantes, deixar para trás uma vida inteira e sob um novo céu e sobre uma nova terra, tentar viver o exílio. Ainda que alimentado de saudades, de tristezas, inseguranças e de medos.

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