domingo, 15 de junho de 1997

As líricas memórias de Loreina

          A coleção chama-se “Aquí y ahora” (Aqui e agora) e, sob a rubrica da Universidade de Puerto Rico, quer mostrar a produção de poesia, ensaio, teatro e narrativa dos autores porto-riquenhos sejam eles novos ou consagrados, residam ou não na Ilha.
          Número 12 da coleção, Este ojo que me mira (Este olho que me olha) cuja autora, Loreina Santos Silva, além da Cátedra de Literatura, exerce, já há muito, o belo ofício de poeta.
          Publicado em dezembro de 1996 esta sua última obra é um livro de memórias. Elas começam já na capa onde dois pequenos retratos da autora se mostram; um, repetido quatro vezes, enlaçando o outro, no centro, inserido num círculo, lembrando um olho. As memórias continuam na dedicatória, uma explicação da gênese do livro: a partir dos rostos do artista Sam Francis, que viu na exposição, ela traça os seus próprios rostos sob o impulso da palavra. A partir de então, é uma construção que se faz, pouco a pouco, em pequenos textos, aprofundando-se nesses retalhos de vida que ela, como poeta, expressa liricamente.
          O primeiro texto chama-se “Golpeando-se el vacio” e o olho que me olha, que inicia cada um dos relatos, a vê recém-nascida, ainda com os olhinhos fechados e os fiapos de cabelo aloirado. Vê os que a rodeiam nessa hora mas é ela, agora, já de posse de sua vida, que reflete sobre a dor de nascer, de ser jogada nesses punhais invisíveis que assentam os golpes da dor e da alegria.
          E assim serão essas memórias: um narrar de episódios cotidianos – o café da manhã com os primos, a espera dos Reis Magos, o encontro com a madrasta, as travessuras – e do momento sentido. Então, suas palavras se intensificam e delas emerge um comovente mundo infantil todo feito de emoções: a raiva de ser retratada ao lado da pequena inimiga; a humilhação pelas palmadas da mãe, castigando a brincadeira inocente; as lágrimas da orfandade; o medo de uma aparição; o horror diante da obrigação de tomar vermífugo; a indignação ao ouvir a proposta atrevida; a vergonha pela acusação injusta; os desejos do futuro; a tristeza de ter perdido os poemas da mãe; a desilusão de um reencontro passados os anos.
          Cada texto é uma peça a compor a alma infantil que não foi poupada pelo sofrimento – o abandono do pai, a morte da mãe – mas que se constrói, subjugada pela atração que a vida nela exerce.
          Este ojo que me mira é um emocionado poema em prosa que não esconde as hipocrisias religiosas ou a submissão de seu país aos Estados Unidos e onde reina a inigualável ânsia de viver de Loreina Santos Silva.
          Seus olhos se extasiam diante dos mares e montanhas do país, diante do avermelhado fulgor das amapolas; seus ouvidos se alegram com a voz dos grilos e dos sapos, com a orquestra de pássaros matinais; seu olfato se delicia com os odores da cozinha, esse lugar mágico onde se assam bananas verdes e batatas e onde pairam os aromas de orégano, alho, cominho e patchuli; seu paladar se lembra do bacalhau com beringelas, recheado de queijo e passas, amêndoas e picadinho de ovo; e se lembra da canjica e do arroz doce. Seu rosto, sendo feliz com o roçar do vento.
          E, entregando-se a cada sentir, a criança que é vista por esse olho que olha descobre o mundo e vai se preparando para viver. Um aprendizado que lhe permitiu acabar sendo o que um dia sonhou: a professora amorosamente cheia de bondade e essa mulher, alimentada pelo segredo da poesia.

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