domingo, 28 de janeiro de 1996

Uvas em campo de neve


             Para Carmen Barlcells banhada em lágrimas.

 
          Carmen Barlcells é a agente literária de Gabriel García Márquez e a ela foi dedicado o seu romance El amor e otros demonios (Buenos Aires, Sudamericana, 1994). Uma dedicatória que, talvez, seja possível supor, tenha tido sua origem na emoção provocada pela leitura dos originais: a compaixão por Sierva Maria de Todos los Angeles.

          Se preconceitos, ignorância, obscurantismo religioso a condenaram, menina, a práticas e a rituais medonhos, o fato do narrador ter eludido o sofrimento por eles causado faz com que seja mais comovente o seu breve destino. Tão comovente como os poucos momentos em que Sierva Maria foi surpreendida feliz.

          Uma felicidade sempre interrompida pela chegada de alguém, sempre limitada pelo implacável passar do tempo.

          Quando ela se entretém com a música e com o canto, os cabelos soltos espalhados no chão, a chegada do pai, e da abadessa quebram a sua espontaneidade e ela se cala.

          Ao posar, coberta de jóias, para um pintor chegado no Continente com o séquito do vice-rei, obediente, ela permanece quieta as nove horas em que durou o trabalho. Depois, contemplou, sem pressa, o quadro e nele se reconheceu no esplendor de seus anos. Caminhando com a mesma graça com que sabia dançar, volta para a cela que fora transformada a pedido dos vice-reis: o colchão era novo, os lençóis de linho, o travesseiro de pena e tinham posto utensílios para o asseio cotidiano e o banho do corpo. A luz do mar entrava pela janela sem grades e resplandecia nas paredes recém caiadas.

          Uma cela que mais do que tudo, porém, ficara diferente pelas horas, já então felizes, que vivia Sierva Maria desde que o amor lhe fora revelado na figura daquele que a deveria preparar para o exorcismo. Tempo que o amanhecer limitava na despedida urgente de quem devia fugir para não ser descoberto. Quando isso aconteceu, Sierva Maria, sem saber porque lhe fora impossível escalar os muros do convento, nas noites que se seguiram, já estava sem forças pelos dias de jejum e pelos rituais de exorcismo. Voltou, então, a ter o seu sonho premonitório: na paisagem nevada e nos grãos dourados de uva ela reconhecia a morte.

          Só um sapientíssimo e sutil mágico das letras poderia criar um personagem tão radioso e forte na sua debilidade. Vítima que não foi vencida pelo mal que lhe fizeram mas pela falta do amor que, afortunadamente, teve tempo de saber que poderia existir. E por ele morreu.

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