domingo, 7 de janeiro de 1996

Em tempo de reis magos


Edgar Vasques é um caricaturista de primeira ordem. Dirão os felizes acomodados da vida que suas histórias nos deixam um ressaibo amargo. Claro! Vasques é o campeão do marginal, do homem que sofre de fome crônica. Faz no reino do humorismo o que Josué de Castro fez no da sociologia, isto é, chama a atenção do mundo para o trágico problema dos famintos. Érico Veríssimo.

 
          Em 1970, numa revista de estudantes da Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre, nascia Rango, um personagem que Érico Veríssimo quatro anos mais tarde, define como herói de nosso tempo. O marginal-síntese que de humano conserva apenas o cérebro e a voz como diz seu criador, o gaúcho Edgar Vasques.

          Rango vive no lixo e do lixo. Privado de qualquer uma das mínimas condições de vida num universo de monturo, moscas, sobras da qual fazem parte o Prévio, o Jejum, o Boca 3, o Chaco e o Filho: o que fica sem fala quando deve enunciar verdades, o que tem um apelido que é a síntese de sua vida, o que apareceu para, à semelhança dos outros, não ter o que comer, o que representa a miséria latino-americana e o filho de Rango, observador, passivo e inocente de toda a circunstância.

          Pelas ruas, pelos montes de lixo, ele está sempre perto do pai e na sua ingenuidade – qualidade tão cara aos humoristas – tem nas histórias de Edgar Vasques a importantíssima função de formular perguntas.

          Perguntas que Rango responde fazendo de suas respostas axiomas perfeitos para a época em que vivia e que o passar do tempo não fez envelhecer. São muitas as perguntas e embora insistam no tema da fome e da miséria, se aproximam de outros que, sem dúvida, com a fome e com a miséria estão estreitamente relacionados.

          Se, eventualmente se referem à Paz (o que é incompetência diante da pombinha da paz, voando com pequeno ramo de oliveira) ou à multinacional, identificada a partir de uma definição de Deus (uma entidade que determina a nossa vida e morte, age no silêncio e vive lá por cima), expressões como ecologia, filantropia, democracia, lei, escravidão, estatística, que estão na origem das perguntas, deixam muito próxima a realidade brasileira desses anos.

          E, embora fugazes – o momento era, certamente adverso para determinadas curiosidades – as perguntas sobre viseiras, voto secreto, o torturador.

          E, insistente, repetitivo, o inquirir sobre si mesmo nessa sociedade onde a única oferta é a da rejeição: Paiê, por que a gente não trabalha? Nós somos aleijados? Não. Nós somos alijados. Onde o irreversível é a fome: Paiê, que é que é futuro? É a fome de amanhã.

          A fome que faz ignorar o que é uma uva, um prato, um garfo e que não recebe resposta sobre o momento em que será sanada: Poxa, pai. Tô louco de fome. Quando é que nós vamos comer? Dia, hora, mês e ano? indaga Rango, perguntando na perplexidade de quem não conhece a resposta.

          Embora possa saber outras: que por não marcar o peso do filho, não é a balança que tem defeito; que geograficamente a terra é composta de 3/4 de água e 1/4 de terra e que socialmente é constituída de 1/3 de nutrição e de 2/3 de fome; que o sub-desenvolvimento avança a uma velocidade de 45 crianças por hora.

          Sobretudo, que é um ser humano ainda na categoria de aspirante. Que até pode pensar e perceber o que acontece mas que está condenado a suportar na conformidade e na submissão, as algemas da miséria.

          Mas Rango é um personagem de histórias em quadrinhos.

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