Edgar Vasques é um
caricaturista de primeira ordem. Dirão os felizes acomodados da vida que suas
histórias nos deixam um ressaibo amargo. Claro! Vasques é o campeão do
marginal, do homem que sofre de fome crônica. Faz no reino do humorismo o que
Josué de Castro fez no da sociologia, isto é, chama a atenção do mundo para o
trágico problema dos famintos.
Érico
Veríssimo.
Em 1970, numa revista de
estudantes da Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre, nascia Rango, um
personagem que Érico Veríssimo quatro anos mais tarde, define como herói de
nosso tempo. O marginal-síntese que de humano conserva apenas o cérebro e a voz
como diz seu criador, o gaúcho Edgar Vasques.
Rango vive no lixo e do
lixo. Privado de qualquer uma das mínimas condições de vida num universo de
monturo, moscas, sobras da qual fazem parte o Prévio, o Jejum, o Boca 3, o
Chaco e o Filho: o que fica sem fala quando deve enunciar verdades, o que tem
um apelido que é a síntese de sua vida, o que apareceu para, à semelhança dos outros,
não ter o que comer, o que representa a miséria latino-americana e o filho de
Rango, observador, passivo e inocente
de toda a circunstância.
Pelas ruas, pelos montes de
lixo, ele está sempre perto do pai e na sua ingenuidade – qualidade tão cara
aos humoristas – tem nas histórias de Edgar Vasques a importantíssima função de
formular perguntas.
Perguntas que Rango responde
fazendo de suas respostas axiomas perfeitos para a época em que vivia e que o
passar do tempo não fez envelhecer. São muitas as perguntas e embora insistam
no tema da fome e da miséria, se aproximam de outros que, sem dúvida, com a
fome e com a miséria estão estreitamente relacionados.
Se, eventualmente se referem
à Paz (o que é incompetência diante da pombinha da paz, voando com pequeno ramo de
oliveira) ou à multinacional, identificada a partir de uma definição de Deus (uma entidade que determina a nossa vida e morte, age no silêncio e vive lá por
cima), expressões como ecologia, filantropia, democracia, lei, escravidão,
estatística, que estão na origem das perguntas, deixam muito próxima a realidade
brasileira desses anos.
E, embora fugazes – o
momento era, certamente adverso para determinadas curiosidades – as perguntas
sobre viseiras, voto secreto, o torturador.
E, insistente, repetitivo, o
inquirir sobre si mesmo nessa sociedade onde a única oferta é a da rejeição: Paiê, por que a gente não trabalha? Nós
somos aleijados? Não. Nós somos
alijados. Onde o irreversível é a fome: Paiê, que é que é futuro? É a
fome de amanhã.
A fome que faz ignorar o que
é uma uva, um prato, um garfo e que não recebe resposta sobre o momento em que
será sanada: Poxa, pai. Tô louco de fome.
Quando é que nós vamos comer? Dia,
hora, mês e ano? indaga Rango, perguntando na perplexidade de quem não
conhece a resposta.
Embora possa saber outras:
que por não marcar o peso do filho, não é a balança que tem defeito; que geograficamente
a terra é composta de 3/4 de água e 1/4 de terra e que socialmente é
constituída de 1/3 de nutrição e de 2/3 de fome; que o sub-desenvolvimento avança
a uma velocidade de 45 crianças por hora.
Sobretudo, que é um ser
humano ainda na categoria de aspirante.
Que até pode pensar e perceber o que acontece mas que está condenado a suportar
na conformidade e na submissão, as algemas da miséria.
Mas Rango é um personagem de
histórias em quadrinhos.
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