domingo, 14 de janeiro de 1996

Rituais

          O pai a levou, menina, para o convento. Tinha doze anos e haviam dito que estava endemoninhada. Era um domingo de Ramos e, antes de chegar ao destino, branco e solitário perto da praia, seu pai  a consolou: Vais ver sempre o mar das janelas.

          E mal as portas se abriram, Sierva Maria, assim se chamava, foi levada para dentro sem tempo de despedidas. A última lembrança que o pai dela teve foi vê-la atravessando a galeria do jardim, o pé machucado, antes de desaparecer no claustro do qual jamais sairia.

          O sentimento do pai foi a esperança de que a menina se virasse para olhar para ele. Foi uma esperança vã como foi, em vão, pouco depois, seu intento de tirá-la dali.

          Era na época em que as terras do Continente pertenciam à Coroa ibérica e em que seus habitantes eram regidos, sobretudo, pelas normas do Santo Ofício.

          À mercê dessas normas, ficou a menina.

          Del amor y otros demonios (Buenos Aires, Sudamericana, 1994) é um livro belíssimo. Feito de uma perfeição narrativa já presente em Crônica de uma morte anunciada, eivado desses “achados” linguísticos que parecem inesgotáveis em todo texto de Gabriel García Márquez, centra-se – já o título o indica – no amor.

          E para tratar do amor, poucos textos foram tão singularmente líricos, expressão luminosa no universo de trevas onde reinavam, impunes, os outros demônios. Neles, a gênese da maldade insana, praticada em nome de leis e de rituais.

          Frágil, inocente, indefesa, maltratada, manietada, Sierva Maria suporta os maus tratos, a falta de liberdade, o isolamento. Acusada de se comunicar com os animais, de encantar, a quem a escutasse, com canções demoníacas, de se tornar invisível.

          Mas, ter o demônio dentro de si, no convento significava a fascinação de uma aventura novidadeira e, apesar do medo, as noviças e as monjas, impelidas pela curiosidade, iam até sua cela pretendendo que servisse de estafeta com o diabo para lhe pedir favores impossíveis. Mas, sobretudo, conduzia aos exorcismos do Santo Ofício.

          No amanhecer do dia 27 de abril foram buscá-la para submetê-la ao ritual. Um ritual que, se não fosse o registro dos historiadores, dir-se-ia uma louca invenção alucinante de ficcionista.

          E o ficcionista, escrevendo o mais cruel de seus livros, a mais triste de suas histórias, evidentemente, ficou ainda, bem longe daquelas que, nos tempos idos, o Continente dos ibéricos presenciou.

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