No dia 26 de outubro de
1949, as criptas da capela do Convento de Santa Clara, onde jaziam bispos e abadessas
e outros principais, foram desocupadas para, como todo o conjunto
arquitetônico, dar lugar a um hotel de cinco estrelas.
Aos golpes de picareta,
quebrando a lápide de uma das criptas, surgiu a massa de cabelos cor de cobre,
longa e abundante, que se esparramou por vinte e dois metros e onze centímetros
no chão da igreja. Legível, na pedra do túmulo, apenas um nome: Sierva Maria de
Todos los Angeles.
A atribulada história dos
poucos anos que viveu é contada por Gabriel García Márquez no seu romance de
1994: Del amor y de otros demonios.
Sierva Maria nasceu de sete
meses no dia 7 de dezembro, filha do marquês de Casalduero e de uma mestiça da
chamada aristocracia de balcão. Quase
estrangulada pelo cordão umbilical, a convicta previsão da parteira garantiu
que não viveria. Então, uma das escravas da casa, que a iria curar, prometeu
aos santos que, se ela vivesse, cortaria os cabelos somente no dia do
casamento.
Renegada pela mãe, esquecida
pelo pai, a pequena marquesa cresceu entre os escravos, branca, franzina, os
dentes perfeitos, os olhos azuis, os cabelos cada vez mais longos.
No pátio dos escravos
aprendeu três línguas africanas, dançar e cantar, esfolar coelhos, tomar sangue
de galo em jejum. Andava descalça, com o turbante vermelho das escravas e os
dezesseis colares que elas lhe haviam posto no pescoço sobre o escapulário.
Quando, aos doze anos foi
mordida por um cão raivoso, tentou curar-se com as práticas medicinais
africanas. Para o pai e para o médico então chamado, escondeu a origem da
ferida mas, ainda assim, foi entregue aos mais absurdos tratamentos e a eles se
submeteu com uma espantosa submissão.
A mesma submissão com que se
deixou vestir com trajes de rainha e levar para o convento. E suportar a
incompreensão, o isolamento e as práticas a que foi condenada sob a suspeita de
estar possuída pelo demônio.
Mas, antes da sexta sessão
de exorcismos a encontraram morta na cela em que estava presa e de sua cabeça
raspada nasciam os cabelos cor de cobre.
Uma inesquecível personagem.
Pequena e indefesa figura, verdadeiramente ímpar, que se move no cenário dos
trópicos regido pelo Santo Ofício.
Sierva Maria é parte de dois
mundos antagônicos que se entrelaçam. É vista, ouvida e julgada e não mais do
que desses elementos dispõe o narrador para, na solidão, no abandono em que foi
criada e sob a torpe e insensata rigidez das leis, apresentá-la cheia de
matizes.
Assim, são relatados os
conhecidos fatos e circunstâncias que foram conduzindo seu destino e feito o registro
do que ela diz e faz: o silêncio em que se compraz diante dos que lhe são
estranhos ou as mentiras que inventa para, igualmente, se proteger. A sua
passividade e seus gestos de agressão. A recusa em aprender a ler – não entendia as letras – e a tocar
instrumentos e o seu auto-nominar-se Maria Mandinga, reafirmando o lugar no
mundo que fora levada a escolher.
De branca só tem a cor,
dissera a mãe antes de enviá-la a viver com os escravos. Não é deste mundo explicava a professora ao não conseguir que
aprendesse música. É como uma tigresa, tem os olhos do diabo, é um presente envenenado,
dizem dela no convento. E nas atas que precedem o exorcismo, a relação do que
fizera e do que imaginavam ter feito: falar a língua dos negros e dos animais;
ser a causa, pela simples presença, da morte de animais do jardim; fascinar a
criadagem com canções demoníacas. Ter se tornado invisível.
Do que sentia – medo, dor,
tristeza, alegria – é sabido apenas pelo que não pode esconder: o palpitar tumultuado
do coração, um efêmero brilho nos olhos, um choro repentino, um breve sorriso,
um tremor na voz.Por dizer, ficou o
sofrimento. A solidão em que morreu, menina.
Que o romancista, eludiu
para, magistralmente, tornar a tristeza mais sombria e irreparável.

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