domingo, 21 de janeiro de 1996

O personagem:Sierva María de Todos los ngeles

          No dia 26 de outubro de 1949, as criptas da capela do Convento de Santa Clara, onde jaziam bispos e abadessas e outros principais, foram desocupadas para, como todo o conjunto arquitetônico, dar lugar a um hotel de cinco estrelas.

          Aos golpes de picareta, quebrando a lápide de uma das criptas, surgiu a massa de cabelos cor de cobre, longa e abundante, que se esparramou por vinte e dois metros e onze centímetros no chão da igreja. Legível, na pedra do túmulo, apenas um nome: Sierva Maria de Todos los Angeles.

          A atribulada história dos poucos anos que viveu é contada por Gabriel García Márquez no seu romance de 1994: Del amor y de otros demonios.

          Sierva Maria nasceu de sete meses no dia 7 de dezembro, filha do marquês de Casalduero e de uma mestiça da chamada aristocracia de balcão. Quase estrangulada pelo cordão umbilical, a convicta previsão da parteira garantiu que não viveria. Então, uma das escravas da casa, que a iria curar, prometeu aos santos que, se ela vivesse, cortaria os cabelos somente no dia do casamento.

          Renegada pela mãe, esquecida pelo pai, a pequena marquesa cresceu entre os escravos, branca, franzina, os dentes perfeitos, os olhos azuis, os cabelos cada vez mais longos.

          No pátio dos escravos aprendeu três línguas africanas, dançar e cantar, esfolar coelhos, tomar sangue de galo em jejum. Andava descalça, com o turbante vermelho das escravas e os dezesseis colares que elas lhe haviam posto no pescoço sobre o escapulário.

          Quando, aos doze anos foi mordida por um cão raivoso, tentou curar-se com as práticas medicinais africanas. Para o pai e para o médico então chamado, escondeu a origem da ferida mas, ainda assim, foi entregue aos mais absurdos tratamentos e a eles se submeteu com uma espantosa submissão.

          A mesma submissão com que se deixou vestir com trajes de rainha e levar para o convento. E suportar a incompreensão, o isolamento e as práticas a que foi condenada sob a suspeita de estar possuída pelo demônio.

          Mas, antes da sexta sessão de exorcismos a encontraram morta na cela em que estava presa e de sua cabeça raspada nasciam os cabelos cor de cobre.

          Uma inesquecível personagem. Pequena e indefesa figura, verdadeiramente ímpar, que se move no cenário dos trópicos regido pelo Santo Ofício.

          Sierva Maria é parte de dois mundos antagônicos que se entrelaçam. É vista, ouvida e julgada e não mais do que desses elementos dispõe o narrador para, na solidão, no abandono em que foi criada e sob a torpe e insensata rigidez das leis, apresentá-la cheia de matizes.

          Assim, são relatados os conhecidos fatos e circunstâncias que foram conduzindo seu destino e feito o registro do que ela diz e faz: o silêncio em que se compraz diante dos que lhe são estranhos ou as mentiras que inventa para, igualmente, se proteger. A sua passividade e seus gestos de agressão. A recusa em aprender a ler – não entendia as letras – e a tocar instrumentos e o seu auto-nominar-se Maria Mandinga, reafirmando o lugar no mundo que fora levada a escolher.

          De branca só tem a cor, dissera a mãe antes de enviá-la a viver com os escravos. Não é deste mundo explicava a professora ao não conseguir que aprendesse música. É como uma tigresa, tem os olhos do diabo, é um presente envenenado, dizem dela no convento. E nas atas que precedem o exorcismo, a relação do que fizera e do que imaginavam ter feito: falar a língua dos negros e dos animais; ser a causa, pela simples presença, da morte de animais do jardim; fascinar a criadagem com canções demoníacas. Ter se tornado invisível.

          Do que sentia – medo, dor, tristeza, alegria – é sabido apenas pelo que não pode esconder: o palpitar tumultuado do coração, um efêmero brilho nos olhos, um choro repentino, um breve sorriso, um tremor na voz.Por dizer, ficou o sofrimento. A solidão em que morreu, menina.

          Que o romancista, eludiu para, magistralmente, tornar a tristeza mais sombria e irreparável.

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