domingo, 16 de abril de 1995

Última página 2



Agora havia mais botas perto dele, seriam vários pares, tantos como havia naquela noite na oficina, perto da janela [...] eram botas novas e firmes e estavam embarreadas, havia muitas, uns três ou quatro pares.
 
Agora havia mais botas perto dele, eram muitas, pareciam exageradas, uma quantidade de pares, não podia contá-las, eram, no mínimo, tantas como as que havia, naquela noite na oficina, alinhadas elegantemente na janela, refletindo-se nos vidros [...] eram potentes e estavam molhadas e embarreadas, as outras, mais distantes e mais antigas, eram dóceis e limpas e tinham saído de suas mãos, caminhando ou voando, não era um par nem dois mas muitas, tampouco demais, três ou quatro, talvez seis ou sete, sete podiam ser, as outras se dissimulavam e se adivinhavam na sombra [...]. 


        Crivado de balas, ele está caído no chão, vai perdendo as forças mas, ainda, pode perceber os pares de botas que estão perto. São vários pares, tantos como havia naquela noite na oficina, perto da janela.

           Referência a um passado, a um momento determinado, a um determinado espaço que se entrelaçam ao presente, tendo como elo, as botas. As que percebe a seu redor, novas e firmes, embarreadas. Se não consegue saber-lhes o número, havia muitas, uns três ou quatro pares, as outras se perdiam na sombra, está convicto de que aqueles que as calçavam as abandonaram ali perto dele, sentiram medo e foram embora, disse para si mesmo, foram embora, em silêncio para que eu não os escute, tiraram as botas para fugir, as deixaram perto de mim para que as veja e não os persiga.

          Pensar que enxergava completamente as botas, que entendia o que estava ocorrendo e que logo iria poder contá-las, é uma certeza imprescindível para se manter vivo nesse tempo que ainda permanece com vida. Era-lhe muito importante acreditar que ainda era aquele que provocava medo e que, se recuperando, teria condições de poder contar quantas botas estavam ao seu redor. O que não chegou a fazer porque, logo, encostando o rosto na terra se perdeu sem saber que somente sua morte permitiu a coragem dos que o perseguiam. Assim, Agora se moveram as botas. a última frase do romance sintetiza o confronto que acompanhou sua vida, por fim definido na  expressão encostou o rosto na terra e se perdeu

          E a violência da cena – o término de uma luta desigual em que um homem ferido jaz por terra, cercado de muitos outros calçados de botas novas e firmes – se esconde nas figuras de linguagem que, então, conferem ao texto um grande poder de sugestão.

          Publicado na Espanha, em 1954, somente em 1967 é que o romance de Carlos Droguett aparece, finalmente, no Chile pela Editorial Universitária de Santiago. A mesma editora que em julho de 1994, depois de tantas edições em diferentes países e em diferentes idiomas, torna a publicar Eloy, então como versão definitiva, fruto de lenta revisão de cada uma de suas páginas.

          Três meses depois, Carlos Droguett faria 82 anos. No exílio desde 1975, voltar a esse romance escrito há tantos anos atrás lhe confere outros significados.

          Comparando o texto do romance publicado em 1959 com o da edição de 1994 constata-se que as mudanças não se limitaram às estruturas lingüísticas. Na última página de Eloy entre agora havia mais botas perto dele e agora se moveram as botas, todas as seqüências relacionadas com botas foram modificadas.

          O que havia sido uma suposição no primeiro texto seriam vários pares, passa a ser uma afirmativa: eram muitas e o indefinido de vários pares continua indefinido, uma quantidade de pares. Porém, reiteradamente expressa, a quantidade de botas: não poderia contá-las, não queria contá-las, eram, no mínimo, tantas como as que havia naquela noite na oficina,/ não era um par nem dois, senão muitas, tampouco eram demasiadas, três ou quatro talvez seis ou sete, sete poderiam ser.

          Preciso, no entanto, continua sendo o lugar onde estavam as botas que Eloy fazia como sapateiro, seu real ofício: na oficina, perto da janela, no primeiro texto. Na oficina, alinhadas elegantemente na janela, refletindo-se nos vidros, no segundo, valorizadas tanto pelo advérbio como por esse refletir-se que as repetem e se distanciam mais das que, no presente, Eloy tem diante dos olhos: potentes, molhadas, embarreadas. Dois adjetivos determinando estados originados de circunstâncias e uma qualidade que expressa força e poder. Ao associá-las, imediatamente às botas que tinha feito outrora, distantes, antigas, dóceis, limpas, marca o espaço de tempo transcorrido a partir do instante em que abandonou o ofício de sapateiro para assumir a vida de transgressões que foi a sua a partir de então, como a partir dos adjetivos dóceis, limpas, estabelece diferenças entre as botas que fazia e as que o estão cercando. Essas que acredita terem sido abandonadas por seus perseguidores para fugir, em silêncio, no intuito de não serem por ele seguidos e que no texto de 1994 parecem fazê-lo duvidar: tiraram as botas para fugir, as deixaram – quando o texto se afasta da primeira versão para continuar – aqui, a meu lado, para que as veja e compreenda e tenha certeza e não os persiga, vi-as perfeitamente e se dava conta de tudo isso lentamente e muito bem, queria estar certo, compreender que se dava conta e que não se enganava [...]

          Na verdade, em ambos os textos, o de 1954 e o de quarenta anos depois, Eloy permanece o mesmo na sua ligação com o passado, no esforço para sobreviver, nas suas certezas. E as botas continuam fugazmente a unir seu passado com o presente, a significar o elemento de repressão que ele pensa vencer. E a mudança de adjetivos para classificá-las, a insistência em desejar entender o que certamente já percebera, talvez possam ser entendidos como expressão de um olhar agora mais profundo sobre o destino daquele que ousa – porque a isso é levado ou porque assim o deseja – transgredir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário