domingo, 30 de abril de 1995

Última página 4


           Provavelmente tirado de um jornal da época, diz Ricardo Latchman na Introdução que escreveu quando da publicação de Eloy pela Editorial Universitária em 1967, essa relação dos objetos encontrados nos bolsos de Eloy e que aparece como epígrafe do romance e o deixam preso a um fato real: a perseguição e a morte de Eloy. Um real, reiterado na expressão In memoriam que precede suas primeiras linhas e na foto de Eloy, ferido e morto, estampada na capa da edição espanhola.
 
           Consta, na edição da Seix Barral de Barcelona, que se trata de uma foto da imprensa. Cobre a capa inteira em tons de cinza que vão escurecendo até o preto. Próximo à cabeça inclinada para um lado onde os olhos, ainda abertos se fixam no alto, o cano da espingarda. Manchas de sangue sujam-lhe uma parte do rosto e da roupa e um cobertor, talvez o seu poncho, o envolve ou está jogado sobre o peito.
 
           Essa mesma foto será estampada na edição brasileira de Eloy (Codecri, 1981). Mas, apenas a cabeça e o cano da espingarda, encerrados num pequeno círculo – a letra O do título – se inscrevem, juntamente com quatro pingos vermelhos no campo violeta onde, além do título do romance, do nome do autor, em branco, aparece o texto: Pôs a cara de lado para sentir a umidade que o aliviava e se lhe comunicava e impregnava o cheiro do sangue, o cheiro das violetas.
 
           Texto que sublinha a sugestão da capa, enlaçando a crueza de sua morte, crivado de balas, ao lirismo com que essa morte é contada na ficção de Carlos Droguett.
 
           Já muito ferido e débil, quase morrendo, Eloy ainda está ligado à vida também pelo perfume das violetas que o envolve. A aproximação da morte talvez pressentida, o arraigo à vida alimentado de lembranças, de planos para o futuro que não quer acreditar incerto e esse aspirar do perfume que se lhe oferece unem seus últimos momentos de vida.
 
           Nas últimas linhas do romance, o perfume se lhe amontoa no rosto e lhe parece forte e suave e persistente. Porém, mais que sentir o perfume, Eloy se agarra nas flores, tem o rosto coberto por elas e os ombros e as costas e as mãos. São boas, diz para si mesmo e na fadiga que o domina, perdendo o sentido da realidade está ou não coberto de flores que parecem cair sobre ele lhe fazendo crer que o abrigariam no breve descanso que deseja. Imagina que as flores continuam a cair, a crescer sobre as árvores, a subir com o nevoeiro. Já pouco entende do que vê ou escuta. Chegam-lhe as lembranças do passado e, novamente, o perfume das violetas se lhe amontoa nas narinas. Logo, um outro pensamento e a morte.Ao reescrever o romance e publicá-lo na sua versão definitiva, em 1994, pela Editorial Universitária de Santiago do Chile, Carlos Droguett conserva intactas essas duas frases escritas na versão de 1954, publicada pela Seix Barral em 1959. Mas, entre elas se inserem vários acréscimos.
 
           No primeiro texto, o de 1954, esse perfume que chega até Eloy lhe parece forte e suave e persistente e as flores se lhe afiguram boas. No texto definitivo, de 1994, o perfume que lhe invade as narinas nunca foi tão inteiro, leal, nobre, franco e persistente, fino e humilde. As flores, por sua vez, se lhe afiguram muito boas.
           Mas, não é somente o qualificar o perfume com sete adjetivos que, inclusive, são próprios para qualificar seres humanos e aumentar a qualidade das flores com o advérbio muito que registra ter-se intensificado o relacionamento de Eloy com as violetas e o perfume que delas emana. É sobretudo nos três verbos acrescentados – recebendo-as, aceitando-as, impregnando-se com elas – que se expressa uma afetividade talvez explicada pela solidão em que se encontra Eloy, ao entender que é, unicamente nas violetas e no seu perfume que ele encontra o seu último refúgio na terra dos homens.
 
           Porque deles, de suas mãos é que lhe está chegando a morte.

domingo, 23 de abril de 1995

Última página 3

          A edição francesa de Eloy, publicada pela Maspero de Paris, em 1977, tem na capa uma gravura. Em fundo branco, desenhada em traços pretos, uma cabeça de cavalo. Na edição de Eloy da Editorial Universitária que apareceu em julho de 1994 no Chile, a capa, em fundo branco, reproduz um fragmento de “Al galope sobre la tierra” de José Venturelli: dois cavaleiros, de poncho e chapéu de abas, lançam com ímpeto os cavalos por montanhas e bosques. Um deles, segura uma carabina.

          E a carabina foi a escolha de Eloy na noite chuvosa em que, trabalhando como sapateiro, presenciou a invasão da casa pela polícia em busca de seu amigo.

          Os gritos de pavor, os horríveis gritos feridos e cheios de sangue o levaram a uma decisão como que determinada por esse cavalo que de repente estava diante de sua janela. Teve somente que espichar a mão para pegar a arma dependurada na sua sela e atirar. Acossado anos depois pela polícia, pensa nesse cavalo, parado diante de sua janela, batendo com os belfos no vidro, que o tinha chamado: Esse cavalo tinha vindo me buscar, balbuciou, tinha parado para me esperar lá fora e quando me salpicou com um pouco de chuva e um pouco de baba era para me chamar a atenção e me fazer entender.

          Assim diz o texto de 1959. Quando Carlos Droguett reescreveu Eloy, na sua edição definitiva, esse chamado significa mais, como se fosse uma predestinação: Esse cavalo vinha me buscar, a mim – se persignou – e a ninguém mais, se plantou como o destino lá fora e quando me salpicou com um pouco de chuva e um pouco de baba foi para chamar a minha atenção e fazer com que eu entendesse.

          Daí a impossibilidade de fugir, de recusar o caminho proposto, o caminho definido. Mas, permanece nos dois textos o mesmo chamado à compreensão.A compreensão de que não era suficiente essa vida de decência no seu humilde e terreno ofício nas aforas da cidade.

          Havia sentido medo. Talvez, desejado ajudar ou vingar o amigo perseguido. E foi o momento em que optou por uma vida antagônica àquela que embora vivendo dentro da lei não o isentava de presenciar violências, nem de temer.

          Nas últimas linhas do livro que lhe conta a história, edição de 1959, quando está ferido e rodeado por soldados, mais do que na escolha que mudou sua vida pensa no cavalo que o veio chamar empurrando o focinho contra o vidro e que, no seu entender, a determinou.

          Na versão definitiva do romance, publicada em 1994, esse chamado mais incisivo e extraordinário – o cavalo chegou batendo e chamando com o focinho – reforça a imagem do homem marcado, escolhido.

          Escolhido para ser fiel a si mesmo, enfrentando os perigos que ameaçam a todos os que vivem longe do rebanho.

          E quantas vezes o rebanho não sabe fazer distinções.

domingo, 16 de abril de 1995

Última página 2



Agora havia mais botas perto dele, seriam vários pares, tantos como havia naquela noite na oficina, perto da janela [...] eram botas novas e firmes e estavam embarreadas, havia muitas, uns três ou quatro pares.
 
Agora havia mais botas perto dele, eram muitas, pareciam exageradas, uma quantidade de pares, não podia contá-las, eram, no mínimo, tantas como as que havia, naquela noite na oficina, alinhadas elegantemente na janela, refletindo-se nos vidros [...] eram potentes e estavam molhadas e embarreadas, as outras, mais distantes e mais antigas, eram dóceis e limpas e tinham saído de suas mãos, caminhando ou voando, não era um par nem dois mas muitas, tampouco demais, três ou quatro, talvez seis ou sete, sete podiam ser, as outras se dissimulavam e se adivinhavam na sombra [...]. 


        Crivado de balas, ele está caído no chão, vai perdendo as forças mas, ainda, pode perceber os pares de botas que estão perto. São vários pares, tantos como havia naquela noite na oficina, perto da janela.

           Referência a um passado, a um momento determinado, a um determinado espaço que se entrelaçam ao presente, tendo como elo, as botas. As que percebe a seu redor, novas e firmes, embarreadas. Se não consegue saber-lhes o número, havia muitas, uns três ou quatro pares, as outras se perdiam na sombra, está convicto de que aqueles que as calçavam as abandonaram ali perto dele, sentiram medo e foram embora, disse para si mesmo, foram embora, em silêncio para que eu não os escute, tiraram as botas para fugir, as deixaram perto de mim para que as veja e não os persiga.

          Pensar que enxergava completamente as botas, que entendia o que estava ocorrendo e que logo iria poder contá-las, é uma certeza imprescindível para se manter vivo nesse tempo que ainda permanece com vida. Era-lhe muito importante acreditar que ainda era aquele que provocava medo e que, se recuperando, teria condições de poder contar quantas botas estavam ao seu redor. O que não chegou a fazer porque, logo, encostando o rosto na terra se perdeu sem saber que somente sua morte permitiu a coragem dos que o perseguiam. Assim, Agora se moveram as botas. a última frase do romance sintetiza o confronto que acompanhou sua vida, por fim definido na  expressão encostou o rosto na terra e se perdeu

          E a violência da cena – o término de uma luta desigual em que um homem ferido jaz por terra, cercado de muitos outros calçados de botas novas e firmes – se esconde nas figuras de linguagem que, então, conferem ao texto um grande poder de sugestão.

          Publicado na Espanha, em 1954, somente em 1967 é que o romance de Carlos Droguett aparece, finalmente, no Chile pela Editorial Universitária de Santiago. A mesma editora que em julho de 1994, depois de tantas edições em diferentes países e em diferentes idiomas, torna a publicar Eloy, então como versão definitiva, fruto de lenta revisão de cada uma de suas páginas.

          Três meses depois, Carlos Droguett faria 82 anos. No exílio desde 1975, voltar a esse romance escrito há tantos anos atrás lhe confere outros significados.

          Comparando o texto do romance publicado em 1959 com o da edição de 1994 constata-se que as mudanças não se limitaram às estruturas lingüísticas. Na última página de Eloy entre agora havia mais botas perto dele e agora se moveram as botas, todas as seqüências relacionadas com botas foram modificadas.

          O que havia sido uma suposição no primeiro texto seriam vários pares, passa a ser uma afirmativa: eram muitas e o indefinido de vários pares continua indefinido, uma quantidade de pares. Porém, reiteradamente expressa, a quantidade de botas: não poderia contá-las, não queria contá-las, eram, no mínimo, tantas como as que havia naquela noite na oficina,/ não era um par nem dois, senão muitas, tampouco eram demasiadas, três ou quatro talvez seis ou sete, sete poderiam ser.

          Preciso, no entanto, continua sendo o lugar onde estavam as botas que Eloy fazia como sapateiro, seu real ofício: na oficina, perto da janela, no primeiro texto. Na oficina, alinhadas elegantemente na janela, refletindo-se nos vidros, no segundo, valorizadas tanto pelo advérbio como por esse refletir-se que as repetem e se distanciam mais das que, no presente, Eloy tem diante dos olhos: potentes, molhadas, embarreadas. Dois adjetivos determinando estados originados de circunstâncias e uma qualidade que expressa força e poder. Ao associá-las, imediatamente às botas que tinha feito outrora, distantes, antigas, dóceis, limpas, marca o espaço de tempo transcorrido a partir do instante em que abandonou o ofício de sapateiro para assumir a vida de transgressões que foi a sua a partir de então, como a partir dos adjetivos dóceis, limpas, estabelece diferenças entre as botas que fazia e as que o estão cercando. Essas que acredita terem sido abandonadas por seus perseguidores para fugir, em silêncio, no intuito de não serem por ele seguidos e que no texto de 1994 parecem fazê-lo duvidar: tiraram as botas para fugir, as deixaram – quando o texto se afasta da primeira versão para continuar – aqui, a meu lado, para que as veja e compreenda e tenha certeza e não os persiga, vi-as perfeitamente e se dava conta de tudo isso lentamente e muito bem, queria estar certo, compreender que se dava conta e que não se enganava [...]

          Na verdade, em ambos os textos, o de 1954 e o de quarenta anos depois, Eloy permanece o mesmo na sua ligação com o passado, no esforço para sobreviver, nas suas certezas. E as botas continuam fugazmente a unir seu passado com o presente, a significar o elemento de repressão que ele pensa vencer. E a mudança de adjetivos para classificá-las, a insistência em desejar entender o que certamente já percebera, talvez possam ser entendidos como expressão de um olhar agora mais profundo sobre o destino daquele que ousa – porque a isso é levado ou porque assim o deseja – transgredir.

domingo, 9 de abril de 1995

Última página 1

          No dia 28 de janeiro de 1992, às 23:30 horas, em Berna, na Suissa, Carlos Droguett dá por terminado seu romance Eloy.  
         Um caminho longo fora percorrido desde que, num dia de neblina, ele soubera que o chileno perseguido tinha sido cercado e morto pela polícia.
 
        Em 1954, três anos haviam se passado. Carlos Droguett deixa emergir a emoção que ainda guardava e num ímpeto de torrente, escreve em quinze dias o que imagina tenham sido os últimos momentos desse homem encurralado. Eloy, publicado cinco anos depois, seria considerado pela crítica argentina como um dos três melhores romances da década de 60.
 
        Sua primeira edição foi pela Seix Barral de Barcelona e a ela se seguiram as edições argentina, chilena e cubana e aquelas da Dinamarca, Alemanha, Holanda, Polônia, Itália, França e Tchecoslováquia.
 
        E, em junho de 1994, pela Editorial Universitária de Santiago, a primeira edição da versão definitiva publicada quarenta anos depois de ter sido escrito.

        Aos oitenta anos, Carlos Droguett já pode dispor, como dono absoluto, de seu tempo. E o exílio, já agora irreversível – na Suissa estão os restos de sua mulher – certamente tornou mais forte e irreprimível a necessidade de voltar a Eloy que foi perseguido e morre encurralado.
 
        O cotejo da última página do romance, edição de 1959 da Seix Barral com o texto correspondente da edição de 1994 se mostra extremamente sugestivo.
 
        Numerosas são as modificações efetuadas: substituídos por vírgulas, alguns pontos finais foram eliminados; trocadas de lugar, uma ou outra palavra; muitas, eliminadas ou substituídas. E, acrescentadas.
 
        Na verdade, deveras expressivo, o número de acréscimos. São palavras, expressões, frases inteiras que se inserem ao longo do texto buscando precisar, reforçar, modificar um gesto, um sentir do personagem nos momentos que antecedem a sua morte.
 
        Analisar cada uma dessas mudanças levará, a múltiplas constatações que irão oscilar entre a aparentemente simples e inexplicável opção lingüística e aquela relacionada com a elaboração do personagem nesse universo no qual ele se inscreve.
 
        Nenhuma delas, evidentemente, será prescindível na tentativa de compreender a gênese do texto e os seus motivos.

domingo, 2 de abril de 1995

De boa cria

 
          Romancista dos campos gaúchos, assim o chama Carlos Jorge Appel, lembrando que, nos poemas que antecederam o seu romance Memórias do coronel Falcão, ele havia se preocupado em mostrar os aspectos básicos da vida do campo.
          Sem dúvida, foi com emoção que Aureliano de Figueiredo Pinto procurou fixar as lides e as virtudes do gaúcho em versos que durante muito tempo circularam apenas entre amigos. Somente em 1959, enfim, consentiu em vê-los publicados. Saíram sob a chancela da Editora Globo reunidos num volume que chamou Romances de estância e querência. Com subtítulo, "Marcas do tempo", remetendo a um passado que não pode ser esquecido e que, certamente, adquire os tons do saudosismo idealizador, origem da poesia gauchesca feita pelo homem da cidade.

          Em Romances de estância e querência a emoção desse voltar-se para o passado, cristaliza imagens e tipos e sentimentos que não se ensombrecem mesmo quando o tema assim o poderia exigir: o velho só e desamparado, aproximando-se do fim; a decadência do tropeiro que perdeu o juízo; o drama da morte do herói (ou da vítima) da revolução.

          Quadros dos trabalhos campeiros, desejo de fixar um objeto, uma lenda. E, inserindo-se nessa tradição literária evocadora, um ou outro momento de situações degradadas: a tristeza do que nasceu e viveu em campo alheio e um dia é mandado embora; ou daqueles que por algo menor - um furto, uma briga - se viram encerrados no Presídio Municipal.

          E, um ou outro momento em que velhos valores são expressos por uma figura feminina.

          Num longo poema, "A oração do posteiro", conselhos são lembrados pela voz do filho que, em visita ao túmulo da mãe, pede a sua ajuda para continuar, ainda que pobre, a conduzir seus filhos nos princípios que dela recebeu, norteados pela lealdade e pela coragem.

          Noutro, é o relato da proeza de um guri. Como os outros, procura fazer o trabalho do pai ausente, lutando na revolução e se faz de domador. Mas, agüentou pouco e Lá pelo oitavo corcovo, / se foi de ponta-cabeça, / escalavrando a carita, / maneando no tirador, / e o braço esquerdo quebrado.

          A mãe, ao encanar-lhe o braço com taquaritas foi falando de manso que logo que estivesse bom ele iria domar outra vez até aprender a não cair. Porque o pai, ao voltar, não iria querer ter um filho fraco e covarde que ande a cair do cavalo.

O poema se chama "De boa cria" e na orientação dada pela mãe, está expresso um dos valores mais cultivados pelos gaúchos: a valentia. Sem dúvida, imprescindível no universo de trabalhos duros e de constantes lutas que os homens desses primeiros anos de formação do país deviam empreender.

          Mas que, sobretudo, se transformaria numa visão de mundo cuja origem, no dizer de Euclides da Cunha, estaria nesse viver em planícies imensas e devastadas que impedem esconderijos e negam a proteção, levando a enfrentar de peito aberto os perigos.

          Síntese dessa visão de mundo que no livro de Aureliano de Figueiredo Pinto está na pequena quadra: Que medo que a pobre tem / que o filho morra na guerra! / Mas o temor que a soterra / o pavor, que é o seu segredo, / é que o filho tenha medo / de ser valente na guerra.