domingo, 29 de maio de 1994

Caminhos da narrativa

          É a história de um funcionário público que, dentro de vinte e quatro horas, deve saldar sua dívida com o leiteiro sob pena de se ver privado da entrega cotidiana.
          Tu não vês que uma criança não pode passar sem leite... se queixa a mulher ao escutá-lo argumentar que se pode sobreviver sem isso.
          O dia para ele se passa, então, na busca da quantia necessária e só termina, já de madrugada, ao escutar o leiteiro verter o leite no recipiente e sair de sua casa com a quantia a que tinha direito.
          São dessas horas de andanças que Dyonélio Ma­chado faz o seu romance, Os ratos, cuja primeira edição, da Companhia Editora Nacional de São Paulo, é de 1935.
          Uma narrativa encerrada em dois momentos pre­cisos - aquele em que o personagem é posto diante do obstá­culo que deve remover e o momento em que esse obstáculo é desfeito - contidos nas vinte e quatro horas de um dia da vida de Naziazeno Barbosa
          Relato submisso a uma ordem cronológica - as coisas acontecem à medida que o dia avança - onde, por vezes, emergem seqüências que interrompem sua linearidade. É quando no presente, que é o tempo do relato, se insere uma ou outra lembrança da infância ou imagens de um futuro próximo, ilu­sões em que a angústia do personagem se refugia.
          Mas, embora a narrativa obedeça, por vezes, aos sentimentos do personagem, deixando que nela se entrela­cem imagens do passado e desejos do futuro, o registro do presente se enovela ao correr das horas e às nuanças das lu­zes do dia quando ele começa a declinar.
          Primeiramente, as atividades do cotidiano e o ritmo da cidade indicam o passar do tempo. Depois, o caminhar do sol - virando para a tarde, já perdera sua cor doirada e matinal - e os vários tons e cores do entardecer que se mostram alaranjados e distantes sobre os últimos andares dos prédios; logo, amarela e estranha, a luz quando a noite começa a se impor. Então, o domínio é o da luz das vitrinas projetadas nas calçadas que os passeantes pisam com pés ilu­minados.
          Na noite que avança, o tempo passa a ser mar­cado por ruídos - o canto dos galos, o latir prolongado de um cão, os quartos de hora do relógio, o leve chiado e o leve barulho do roer dos ratos - quando, já em casa, Naziazeno Barbosa não consegue dormir. É, apenas com a chegada do lei­teiro, batendo a porta da cozinha, e com o barulho do verter do leite e os passos se afastando que lhe é indicada, final­mente, a hora em que seu dia chegou ao fim e que pode dormir.
          Em artigo do dia 03 de setembro de 1983, pu­blicado pelo “Letras e Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre, Guilhermino Cesar dizia que Dyonélio Machado se integra com pleno direito na fileira seleta dos analistas implacáveis.
         Os personagens de Os ratos e as situações em que se envolvem são expressões perfeitas da mais acurada ob­servação sobre a psiquê dos homens que o autor gaúcho estru­tura em níveis temporais e espaciais na sábia e exata medida que torna o seu romance não somente de impecável leitura mas também de sóbria e tranqüila beleza.

domingo, 22 de maio de 1994

O recurso da comicidade

          Extremamente risível, mas igualmente levado a sério, a figura desse ditador que, ao longo dos anos, deter­minou o destino de tantos países do Continente e inspirou não poucas obras literárias.
          Maten al león é uma delas. Publicado pela primeira vez em 1969, suas várias edições parecem demonstrar tratar-se de um tema inesgotável e que Jorge Ibargüengoitia não se enganou ao optar por reescrever, satiricamente, a His­tória da América.
          Maten al león é um romance construído a par­tir de tragicômicos momentos da História de Arepa, espaço fictício e certamente mimético de todo o Continente.
          República Constitucional, a ilha é governada por um Presidente que já no quarto e último mandato, aspira reeleger-se Presidente vitalício. Cansada de seus desmandos, a pequena elite do país quer apresentar o seu candidato pelo Partido Moderado às eleições que devem, finalmente, ocorrer.
          Chama-se Pepe Cussirat, tem trinta e cinco anos, monta a cavalo, tem um avião, joga golf, mata veados e fala três idiomas e há quinze anos está ausente de seu país, civilizando-se em outras terras.
          Na carta que lhe foi enviada pelos Moderados constou que a decisão de convidá-lo para concorrer à presi­dência, foi baseada ao considerarem as suas altas virtudes cívicas, a austeridade de sua posição política refletida no seu exílio voluntário que se impôs e de seus méritos pesso­ais.
          No entanto, o que foi realmente decisivo nessa opção, expressou-o um dos membros do Partido: Se ele chega em avião, ganhamos as eleições. Porque em Arepa, nin­guém havia visto jamais um avião.
          Uma argumentação tão díspar e mascarando os verdadeiros motivos, se insere na comicidade que aliada à construção dos personagens, à breves descrições de espaço, à fixação de rápidas cenas e ao ritmo de ações enredadas em surpreendentes quiproquós, determinam o tom do romance.
          Assim, o chefe de polícia, Coronel Jimenez tem aspecto de índio,  usa um uniforme prussiano cujo capote o faz enormemente transpirar ao assistir a execução dos que, sem julgamento, o Presidente mandou matar; ou as vãs atitudes de Cussirat, “chefe” da conspiração, que chega de volta a seu país natal a fim de cumprir uma missão política para a qual ficara decidido que seria digno. Faz tolice sobre tolice, é ajudado pelo homem que rotulou de imbecil, salvo por inter­venção de terceiros, parte, em camarote de primeira classe, deixando tudo como está.
          Assim, as referências ao escritório do Presi­dente iluminado por um lustre de contas sob o qual sobressaem o seu próprio retrato segurando a bandeira nacional e o busto em mármore italiano que o imortaliza hercúleo e rejuvenes­cido.Detalhes que estão, verdadeiramente, em acorde com as leis iníquas e sentenças de morte que ali subs­creve e com outras menores. Estas, em harmonia com a ingenui­dade do povo por ele governado perfeitamente esboçada nesta improvisada festa que foi a chegada de Cussirat: Por ordem presidencial e com o objetivo de permitir a aterrissagem fe­liz do Bleriot de Cussirat o Exército tirou as vacas do pasto, cortou um pé de mandioca que havia crescido no meio da várzea e se posicionou em círculos ao redor do campo para evitar que a gurizada se pusesse a brincar e fosse atropelada pelo avião.
          Mas, é sobretudo, nas seqüências em que o plano de matar o Presidente se desenvolve, quando mudanças de atitudes e situações imprevistas se sucedem e se mantém o acelerado ritmo narrativo é que a intenção de provocar o riso se intensifica.
          No capítulo XX, “Dancem todos”, circunstân­cias e caprichos pessoais levam o plano ao fracasso. Morre quem deveria executá-lo e sai ileso da festa - e ainda agra­decendo os bons momentos - aquele que deveria ter morrido. Os tipos criados, sua ágil movimentação, a presença fugaz e ingênua da plebe, o perfeito retrato da elite, um relato dinâmico e engenhoso jamais se afastam do propósito de Maten al león; um romance destinado a fazer rir.
          Certamente, se os habitantes do Continente não cederem à tentação de ler o que é dito nas entrelinhas.

quarta-feira, 18 de maio de 1994

Mario Quintana


Ó céus de Porto Alegre - como fa­rei para levar-vos para o céu?   XlIV Do Caderno H
 
          A Academia Brasileira de Letras por três ve­zes o preteriu, negando-lhe a satisfação desse irrelevante capricho: querer ser imortal em plagas brasileiras.
 
          Agora, ele já não deve mais se importar com essas miudezas que, certamente, não iriam contribuir para torná-lo mais amado do que foi entre aqueles que o amavam.
 
          Tampouco, talvez, com essas homenagens que recebeu livre de conchavos - o título de cidadão Honorário de Porto Alegre, a placa com seus versos na praça da cidade na­tal, a medalha “O negrinho do Pastoreio” do Governo do Rio Grande do Sul, o prêmio “Machado de Assis” da Academia Brasi­leira de Letra, e o do Pen Club - por uma obra que se iniciou com a publicação, em 1940, de A rua dos cataventos e que foi se completando ao longo desse viver tão simples como tão pro­fundamente simples foram os seus versos.
 
          Donaldo Schüler em A poesia no Rio Grande do Sul nota que este primeiro livro de Mário Quintana termina com versos que dizem da admiração da Morte ao fitar no seu manto negro os fios de vida que o poeta urdiu cantando. E ob­serva, ainda, o professor gaúcho que tanta familiaridade com a morte não leva a uma expressão em tons lamuriosos e que o poeta faz da morte um contendor com o qual ele brinca a sério.
 
          Parece ser, realmente o que faz Mário Quin­tana nestes poemas e nestas reflexões que constituem o Ca­derno H, cuja publicação iniciou em 1943 na revista Província de São Pedro, e que, dez anos depois, continuou no Correio do Povo de Porto Alegre.
 
          Notações de leitura, maliciosas observações sobre a mediocridade imperante, meditações sobre o destino dos homens e sobre esses seus dias povoados de pequeníssimas grandes coisas - um grilo cantando num terreno baldio, a pe­quena rã que um dia cruzou o seu caminho, um cachorro sem dono que lhe acompanha os passos na madrugada, algo da paisa­gem entrevisto pela janela.
 
          E, como nota que se repete em diferentes nu­anças, a Morte e seus mistérios.
 
          Então, ele se diverte um pouco imaginando esse morto que volta sempre para a primeira reunião fami­liar. E sorri entre aliviado e agradecido quando descobre que estão falando noutras coisas; ou, constatando que são mui­tos os que morrem antes, outros depois; o mais difícil é acertar a hora; ou, opinando que cada um deveria ter um céu que ele próprio escolhesse... Mais ou menos de seu agrado.
 
          Que os deuses lhe concedam aquele céu que de­sejou.

domingo, 8 de maio de 1994

Esperanças vãs

          Jorge Ibargüengoitia nasceu em Guanajuato, México, em 1928. Autor de ensaios, crônicas, críticas, dramas e romances iniciou sua carreira literária em 1967 com um li­vro de contos La ley de Herodes y otros cuentos. A ele se se­guiram vários romances dois dos quais receberam o Prêmio Casa de las Américas, El atentado (1963) e Los relámpagos de agosto (1964).


          Maten al león é de 1969 quando, embora cons­tante, talvez repetitivo na Literatura Latino-americana, o tema não deixou de ser oportuno ao girar em torno da figura de um ditador.
          Consta que Jorge Ibargüengoitia reescreve a história hispano-americana satirizando-a. E uma bela sátira é este seu romance todo feito das peripécias de Cussirat, que, desastradamente, tenta matar o Presidente de Arepa.
          A pequena ilha de Arepa se situa no Caribe, é habitada por brancos, índios e pretos e exporta frutos da terra. Colonizada por espanhóis, tornou-se independente em 1898, passando a ser, em 1926, uma República Constitucional.
          Com esses dados que antecedem o primeiro ca­pítulo, se inicia Maten al león, consigna que irá guiar suas páginas.
          Fictícia, a ilha de Arepa se assemelha ou é idêntica a muitos espaços do Continente. De seus duzentos e cinqüenta mil habitantes, a maioria não possui condições para formular julgamentos a respeito de seu dirigente e a reduzida elite a ele está, evidentemente, presa, pelos privilégios que, ao apoiá-lo, continua a usufruir.
          O Presidente grosseiro, truculento, insen­sível  e que ignora qualquer lei, não tem medidas para limi­tar seus quereres que em Arepa são plenamente obedecidos.
          Apenas um pequeníssimo grupo deseja a ele se opor, uma vontade que se aglutina em torno de um arepano que havia partido e que regressara para disputar as eleições pre­sidenciais.
          O Presidente que está terminando seu mandato, o último previsto por lei e que deseja se perpetuar no Poder - para facilitar as coisas já mandara matar o candidato que se apresentara para a sua sucessão - precisando neutralizar mais este que acaba de chegar, lhe oferece um ministério.
          Antes, porém de dar-lhe uma resposta, Cussi­rat, ao presenciar a cerimônia que todos os anos se realizava para festejar a independência de Arepa, já se dera conta que jamais o venceria numa eleição. Não apenas o Presidente con­tinua sendo a figura principal dos festejos como assim é con­siderado pelos que dançam durante horas, sob o sol, diante do Corpo Diplomático até a sua chegada em meio a vivas e ao es­trondo das bandas marciais: Contra esse homem não se pode lutar nas eleições. É preciso matá-lo, decide. Após uns ins­tantes de surpresa lhe pergunta o interlocutor: Sim, claro! Mas como?
          Resposta, sem dúvida, difícil de responder. Cussirat, primeiramente, quer agir sozinho. Põe uma bomba no banheiro presidencial, entra armado em palácio para matá-lo à queima roupa.
          Tentativas que falham e o levam a aceitar o auxílio dos demais conspiradores. Ainda, assim, os planos fracassam mas não aquele que - ninguém resiste ao dinheiro - o coloca a salvo num barco pronto para deixar a ilha.
          Já, então, Cussirat se arrependera do caminho empreendido quando diz ao homem que o escondera depois da sua última e falhada tentativa: Sou um fracassado. Tentei matá-lo três vezes. A primeira custou a vida dos opositores; a se­gunda, de minha noiva; a terceira, do meu empregado que foi um dos homens mais extraordinários que já conheci e meu grande amigo de infância. Eu, que sou o responsável, me salvo, venho me meter neste rancho, vejo pobres pela primeira vez, durmo mal e descubro que, apesar de tudo, os pobres vão continuar sendo pobres e os ricos, ricos. Se eu tivesse sido Presidente, teria feito muitas coisas mas não teria me ocor­rido lhes dar dinheiro. Assim, que importância tem que o Pre­sidente seja um assassino ou não seja?A resposta que escuta - A mim isso nunca ti­nha me importado - é uma resposta que se refere aos vários anos de crimes e injustiças praticados por um Ditador masca­rado de Presidente.
          Uma resposta que, magnificamente, sintetiza a relação que se estabelece entre o governante e os governados que não sabem que podem ser cidadãos, aceitando com tranqui­lidade, um círculo vicioso que os mantém, sempre, na condição de vítimas.
          No relato, o conflito se dissolve com a morte do Presidente. No entanto, torna a se instaurar no mesmo ce­nário onde se movem os mesmos personagens com a assunção do Vice-Presidente.
          Uma explícita desesperança no futuro do Con­tinente não fosse a persistência de Ângela uma conspiradora que não esmorece diante da derrota de Cussirat, a quem inci­tara à ação, mas que persiste nas suas patrióticas maquina­ções.
          Sobretudo, se não fosse o suceder de ações hilariantes que no melhor estilo de um filme de Cantinflas - mudar pelo riso - fazem do Presidente e de seu opositor per­sonagens de comédia.
          Este riso, porém que as páginas do romance provocam não são suficientes para diluir uma realidade tão própria do Continente: o claro e funesto uso da perpetuação e da imutabilidade do Poder.

 

domingo, 1 de maio de 1994

O universo de cada um

          No texto “Algunas ideas sobre la narración como arte y sobre lo que ella puede tener como documento his­tórico” publicado, em La soledad y la creación literária, Juan Morosoli observa que muitos dos que temem os colonialis­mos políticos ou econômicos não se dão conta ao exaltar as literaturas forâneas, ignorando ou desprezando aquela que é produzida em seu próprio país - que estão pondo em prática o pior deles, o colonialismo cultural.
 
          Refere-se, principalmente, aos críticos cujos parâmetros são pautados por obras estrangeiras em que não ca­bem - e o exemplo é o de seu país, o Uruguai - a produção li­terária presa aos limites do realismo e da história.
 
          Exatamente, encerrando-se nesses limites é que Juan Morosoli busca a sua expressão. Deseja contar, de maneira simples, um fato verdadeiro, deseja evocar um homem conhecido e, profundamente, deseja olhar a realidade a seu redor. Ou seja, submeter-se à narração que mostra, descreve, apreende o acontecer e o tempo de algumas criaturas, as detém na vida, salvando-as da morte.
 
          E, assim, foi com Rodriguez do conto “Los amigos”. Desde pequeno, ele desejou guiar um carro de bons cavalos. Mas não pôde ser responsável pelo carro do armazém porque não sabia ler nem escrever e misturava os pacotes. Foi, então, para o povoado onde trabalhou como lixeiro, car­regador. Acabou empurrando um carrinho onde transportava la­vagem e, com essa carga, atravessava o povoado.   Até que um dia o patrão lhe deu de presente um carro velho. Raspou, lavou e, sem as velhas crostas, apa­receram as boas madeiras de que era feito. Deu-lhes uma nova pintura.  De pura pena, alguém lhe ofereceu um cavalo velho. Cuidou dele e, na primavera, já lhe nascia pelagem. Pôs no carro uma bandeira que não era de nenhum país e que cheia de cores o enfeitava. Começou a fazer mudanças, trans­portar coisas, levar malas para a estação.
 
          Um dia, voltou para o pago e ali, perto de um arroio, acampou. À noite, acendia o fogo, caminhava longe para admirar o carro que luzia mais bonito que de dia. E, pensava:  Isto parece um quadro. Parece mentira que eu te­nha tudo isto. Que seja dono de tanta coisa .
 
          Essa emoção, tão ingenuamente humilde, foi fixada por um autor que, sem dúvida, é um homem do Conti­nente.  Um homem cheio de razões ao considerar que não há temas fatalmente ficcionais como tampouco há aqueles fatalmente inúteis para o romancista.
 
          Assim, a pequena e tímida vida de Rodriguez pode interessar ou não; pode emocionar, ou não. Mas é feita de sentimentos, como inúmeras outras, e parte dessa classe de deserdados que a vida não consegue vencer, que a morte lança no esquecimento e cuja existência Juan Morosoli procura pro­longar.
 
          Porque sabe que narrar grandes feitos é mais fácil do que entrar nessas vidas para vê-las na sua grandeza elementar isto é na sua grandeza original onde não entra nada que já não esteja dentro do homem.