Sessenta e seis obras
inéditas concorreram e o juri, composto por Agripino Grieco, Gastão Cruls,
Gilberto Amado, Herbert Moses, Moacyr Deabreu e Monteiro Lobato, entendeu que,
dos quatro romances classificados, nenhum deles se destacava tanto dos demais
que justificasse premiar apenas um deles. Distribui-lo entre os quatro autores,
dignos do Primeiro Lugar, foi a decisão tomada que, não somente dividia, entre
os autores, o valor material do Prêmio mas, também, lhes publicava a obra.
Assim, em 1935, apareceram: Música ao longe de Érico Veríssimo, Marafa de Marques Rebello, Totonio Pacheco de João Alphonsus e Os ratos de Dyonélio Machado.Este escritor gaúcho já
havia publicado, em 1927, um livro de contos, Um pobre homem e, embora em 1942 tenha aparecido o seu segundo
romance, O louco do Cati, foi sua
obra premiada a que se tornou mais conhecida.
Os ratos - aqueles que desaparecem diante de quem pretende pedir um favor ou os
que procuram, a qualquer custo, conseguir o dinheiro que lhes falta ou,
simplesmente, os que durante a noite denotam a presença na casa com seus
pequenos barulhos de roedores - se inicia e termina com a entrega do leite de
manhã cedo na casa de Naziazeno Barbosa. Entre essas duas chegadas, o seu
esforço no intuito de conseguir a quantia necessária para pagar o leiteiro.
Funcionário público, ganha a
vida confinado numa sala compartilhada com outros, cada um executando rotineira
tarefa.Pressionado pela ameaça do
leiteiro, procura obter a quantia que lhe deve e nisso passa o seu inglório e
fracassado dia, lutando contra a vergonha, o medo, a submissão à vontade
alheia.Uma verdadeira peregrinação
pelas ruas da cidade, pelos cafés, procurando a solução que não lhe é dada nem
pela casa de penhores, nem pela mesa de jogo, nem pelos pedidos de empréstimo.
Somente muito tarde, num
complicado arreglo com outros dois ou três acostumados a viverem de expediente,
consegue a importância necessária e um pouco mais, que lhe permite comprar um
pacote de manteiga, um pedaço de queijo, um brinquedo para o filho.
Ao chegar, finalmente, em
casa, janta e num verdadeiro e ingênuo ritual coloca o dinheiro para o pagamento
do leite bem próximo à panela onde, na manhã seguinte, ele será vertido. Mas,
já na cama, sua luta continua, ainda, no pesadelo que o atormenta noite
adentro.
É apenas quando percebe que
o leiteiro encontra o dinheiro e derrama o leite no recipiente e com cuidado
fecha a porta e o portão é que ele consegue dormir.
As vinte e quatro horas que
se passaram são o limite em que se encerra a narrativa, na aparência submissa
ao modelo tradicional do relato onde - diz Regina Zilberman - há um conflito central que motiva a ação do
protagonista, caracterizado então como herói-buscador. E seu desenvolvimento
culminará no sucesso da empresa e a dissolução do conflito.
Deste padrão, no entanto, o
relato de Dyonélio Machado se afasta, continua Regina Zilberman ao dele tratar
no seu livro A Literatura no Rio Grande
do Sul, uma vez que o conflito do protagonista apenas repete situações anteriores
- no decorrer da ação ele é referido como o que não paga ninguém - e o
ter resgatado a dívida com o leiteiro somente significa um protelamento pois
se compromete com outros e logo tudo irá recomeçar.
Esse domínio narrativo, que
permite ampliar-se o universo ficcional, irá igualmente se mostrar nas repentinas
e brevíssimas lembranças de infância de Naziazeno Barbosa e nas breves e
repentinas imagens que, vez por outra, se lhe impõem nesse seu dia de andanças.
Da infância, esse momento mencionado
a meias em que se vê figurinha marrom, no
colo da mãe, encolhida, debulhada num
pranto impotente e trágico por ter que, durante um ano, andar vestido de
Santo Antonio para pagar a promessa feita por ela. E em que ouve uma voz, certamente
feminina, dizendo: Mas tu não vês que é
pior o sofrimento que tu dás a essa criança com semelhante coisa? Olha, se
fosse meu filho, eu tirava já-já essa roupa, Deus que me perdoasse...
Lembrança que abre caminho para uma outra. A dessa noite, dum escuro fosforescente e sem mistério cheio de gritos de crianças. Olhava as brincadeiras dos guris na esquina e queria ir lá brincar mas é impedido pela mãe que o obriga primeiro a tomar leite. Quando chega a ir já não encontra mais ninguém no canto da rua onde naquele momento possuiu o repouso feliz, o aconchego humano, seguro, imutável que ele jamais encontrou no seu mundo.
Irreversível vergonha, irreparável solidão que o irão acompanhar nas deambulações em busca do dinheiro.
Sabe-se diferente dos outros, dos que pagam suas contas. Quisera ser igual. Ver-se sentado à mesa de toalha branca e, alimentado, ficar feliz. Quisera poder pagar o leiteiro e começar outra vida de “cara aberta e exposta”.
Pedaços de passado e futuro, vislumbrando um oscilar de fugidios claros-escuros, ampliando a dimensão do personagem que exibe, então, outras facetas.
Definido por suas ações - velhaco, medroso, jogador -, as imagens do passado dizem de sua fragilidade; as imagens de suas aspirações - tão pequenas -, dizem desta impossibilidade de usufruir de um mínimo imprescindível.
Na paisagem urbana de uma Porto Alegre levemente esboçada, Naziazeno Barbosa persegue, por rotas escusas, soluções sempre adiadas. No passado, o doloroso preço pago para saldar a dívida materna espreita, impedindo o futuro de cara aberta e exposta, faz de seu presente um caminho marginal.
Personagem que certamente hoje não se sentiria tão longe de seus iguais.

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