domingo, 3 de abril de 1994

A incógnita

          A Vila de Nossa Senhora do Passo do Rosário era formada por uma dúzia de famílias de posse que moravam em casas com feitio de estância estendidas ao longo dum chapa­dão, de onde se avistava um belo rio, de margens arenosas. O resto era rancherio.
 
         E nos ouvidos dos que moravam nos ranchos nunca chegaram os rumores que circularam anos, num ir e vir medroso, jamais falado em voz alta: a presença de um homem emponchado e de chapéu que se aproximou da janela do quarto de Dona Luzia quando todos sabiam que o marido estava au­sente.
 
         Luzia, de elogiados olhos negros, mãe de cinco meninas e, depois, de um temporão que alguns da vila e ela mesma ignoravam quem fosse o pai. Seu nome era Brandino e muitos dos que pularam, naqueles meses de seca, a janela do quarto de Luzia imaginavam se dele não eram o pai.
 
         Mimado pela mãe e pelas irmãs e por esses possíveis olhares paternos que sobre ele se pousavam, Bran­dino vivia feliz.   Em torno dele, de sua pacífica vida se cons­trói O príncipe da vila, romance de Cyro Martins, publicado em 1992.

         Sem plano preconcebido, escrevendo, simples­mente, como ele disse para Abrão Slavutzky na longa entre­vista, origem do livro Para início de conversa, é, no en­tanto, um romance habilmente estruturado.
 
         Já disse o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil que Brandino é uma exceção nesse meio ambiente ma­chista e conservador da pequena cidade: veste-se bem, é edu­cado, fala corretamente, não corre atrás de saias e não é visto no bordel.
 
         Mas, sua mãe, também, foge ao estereótipo fe­minino nesse limitado universo onde vivem. E, não menos ex­cepcional é esse acordo tácito e silencioso, estabelecido en­tre aqueles que, em alguma noite fortuita, usufruíram dos fa­vores de Luzia.

         Esses seus eventuais amores, vividos nos seis meses da grande seca enquanto o marido cuidava da estância se constituem um episódio construído a partir de um ponto de vista em que a onisciência do narrador - esse poder que lhe é conferido de, absolutamente, tudo conhecer de seus persona­gens - é cerceada, limitada pela própria ignorância da ver­dade que domina os personagens envolvidos.
 
         Ataliba, Alberto, Serafim, Juca e cada qual a sua maneira não rejeitam esse filho ocasional e desejariam ver elucidada a grande dúvida que, ao longo dos anos, os acompanha. De certa maneira, assumem a paternidade ao presen­tear Brandino continuamente e por qualquer motivo, sobretudo por ocasião de seu casamento quando um oferece a festa, outro o assado de terneira, outro o fogão.
 
         Mas, interrupções de conversas e respostas evasivas protegem o assunto proibido e o deixam intocável pois, com a honra duma pessoa não se bole, inda mais duma senhora. E, embora o narrador, onisciente, possa saber que o Ataliba considera essa aventura de uma noite como campeirada macanuda ou que se dá conta de certa qualidade de Luzia; ou também como o bravo pulo janela adentro de Se­rafim foi conseqüência desse riso de luz que passa entre o corpo de um homem e de uma mulher; ou a maneira de Alberto ser atraído até a casa de Luzia para lhe dar consolo - ele é vencido pelas barreira femininas.

         Luzia se embaraça diante de certa inconse­qüente pergunta do filho; sente uma batida no peito ao pensar que a última filha da casamenteira não puxou pelo pai; sabe que os presentes dados ao filho lhe são devidos; vagamente recorda aqueles tempos bons de gente boa quando se podia dor­mir com a janela aberta ou apenas encostada; e, com remorso, lembra sua peraltice com o padre José: um olhar, um gesto am­bíguo e, principalmente, tê-lo enganado confessando-lhe tudo pela metade.
 
         Se ela sabe ou não quem é o pai de seu filho, isso não a apoquenta. E o narrador não lhe surpreende os pen­samentos. Onisciente em relação aos outros personagens (sabe mais do que eles), em relação a Luiza, ao saber menos do que ela, torna-se eqüisciente.
 
         E mal a esboçando, mal se ocupando dela, cria um acabado tipo de mulher que não se deixou dominar por prin­cípios ou por verdades religiosas mas que em aparência a eles se submetendo, mansamente, foi sendo feliz.

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