A Vila de Nossa Senhora do
Passo do Rosário era formada por uma dúzia de famílias de posse que moravam em
casas com feitio de estância estendidas
ao longo dum chapadão, de onde se avistava um belo rio, de margens arenosas. O
resto era rancherio.
E nos ouvidos dos que
moravam nos ranchos nunca chegaram os rumores que circularam anos, num ir e vir
medroso, jamais falado em voz alta: a presença de um homem emponchado e de
chapéu que se aproximou da janela do quarto de Dona Luzia quando todos sabiam
que o marido estava ausente.
Luzia, de elogiados olhos
negros, mãe de cinco meninas e, depois, de um temporão que alguns da vila e ela
mesma ignoravam quem fosse o pai. Seu nome era Brandino e muitos dos que
pularam, naqueles meses de seca, a janela do quarto de Luzia imaginavam se dele
não eram o pai.
Mimado pela mãe e pelas
irmãs e por esses possíveis olhares paternos que sobre ele se pousavam, Brandino
vivia feliz. Em torno dele, de sua
pacífica vida se constrói O príncipe da
vila, romance de Cyro Martins, publicado em 1992.

Sem plano preconcebido, escrevendo, simplesmente, como ele
disse para Abrão Slavutzky na longa entrevista, origem do livro Para início de conversa, é, no entanto,
um romance habilmente estruturado.
Já disse o escritor Luiz
Antonio de Assis Brasil que Brandino é uma exceção nesse meio ambiente machista
e conservador da pequena cidade: veste-se bem, é educado, fala corretamente,
não corre atrás de saias e não é visto no bordel.
Mas, sua mãe, também, foge
ao estereótipo feminino nesse limitado universo onde vivem. E, não menos excepcional
é esse acordo tácito e silencioso, estabelecido entre aqueles que, em alguma
noite fortuita, usufruíram dos favores de Luzia.
Esses seus eventuais amores,
vividos nos seis meses da grande seca enquanto o marido cuidava da estância
se constituem um episódio construído a partir de um ponto de vista em que a
onisciência do narrador - esse poder que lhe é conferido de, absolutamente,
tudo conhecer de seus personagens - é cerceada, limitada pela própria
ignorância da verdade que domina os personagens envolvidos.
Ataliba, Alberto, Serafim,
Juca e cada qual a sua maneira não rejeitam esse filho ocasional e desejariam
ver elucidada a grande dúvida que, ao longo dos anos, os acompanha. De certa
maneira, assumem a paternidade ao presentear Brandino continuamente e por
qualquer motivo, sobretudo por ocasião de seu casamento quando um oferece a
festa, outro o assado de terneira, outro o fogão.
Mas, interrupções de
conversas e respostas evasivas protegem o assunto
proibido e o deixam intocável pois, com
a honra duma pessoa não se bole, inda mais duma senhora. E, embora o
narrador, onisciente, possa saber que o Ataliba considera essa aventura de uma
noite como campeirada macanuda ou que se dá conta de certa
qualidade de Luzia; ou também como o bravo
pulo janela adentro de Serafim foi conseqüência desse riso de luz que passa entre o corpo de um homem e de uma mulher; ou
a maneira de Alberto ser atraído até a casa de Luzia para lhe dar consolo - ele
é vencido pelas barreira femininas.
Luzia se embaraça diante de
certa inconseqüente pergunta do filho; sente uma batida no peito ao pensar que
a última filha da casamenteira não puxou pelo pai; sabe que os presentes dados
ao filho lhe são devidos; vagamente recorda aqueles tempos bons de gente boa
quando se podia dormir com a janela aberta ou apenas encostada; e, com
remorso, lembra sua peraltice com o padre José: um olhar, um gesto ambíguo e,
principalmente, tê-lo enganado confessando-lhe tudo pela metade.
Se ela sabe ou não quem é o
pai de seu filho, isso não a apoquenta. E o narrador não lhe surpreende os pensamentos.
Onisciente em relação aos outros personagens (sabe mais do que eles), em
relação a Luiza, ao saber menos do que ela, torna-se eqüisciente.
E mal a esboçando, mal se
ocupando dela, cria um acabado tipo de mulher que não se deixou dominar por
princípios ou por verdades religiosas mas que em aparência a eles se
submetendo, mansamente, foi sendo feliz.
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