Morreu trinta anos depois, sem
filhos e sem homem[...]. Zulmira Pacheco, a cozinheira. No romance Pedra da memória, um capítulo lhe é dedicado.
Viera para um cabaré-restaurante do porto do Rio Grande e lá exercia a mais
antiga das profissões. Por não aceitar as excentricidades de um comandante
holandês, foi, de comum acordo com o patrão, para a cozinha fritar peixe. O
começo de uma aprendizagem que a levou, primeiro para a cozinha do melhor hotel da cidade e daí para
o Castelo da Condessa. O castelo que dá título à trilogia de Luiz Antonio de
Assis Brasil, Um castelo no pampa,
da qual a Mercado Aberto, de Porto Alegre já publicou, em 1992, Perversas famílias e neste ano, Pedra da memória, título originado dos
versos de Vitorino Nemésio e Carlos Drummond de Andrade, citados em epígrafe.
Na primeira página é narrada a
chegada do Doutor Olímpio a um Rio de Janeiro recém republicano. Nas demais, a
sua trajetória política no Rio Grande do Sul, dividido entre republicanos e
federalistas.
Interrompem, muitas vezes, o
narrador, as memórias de Proteu, a voz de Astor que se dirige a dois
interlocutores para contar-lhes suas múltiplas aventuras e, também, a de Páris
no registro de momentos de sua vida. Entremeadas a essas narrativas, as que
tratam do que o Editor chama de pequenas-grandes vidas dos servidores do
Castelo: a da copeira,a do
jardineiro, a da governanta, a da cozinheira, a da ama. Pequenas vidas somente
justificadas por viverem a serviços das outras, as grandes, assim tidas porque
amparadas em imensas fortunas latifundiárias. Daí o constar nesses esboços de
biografia, essencialmente, o aprendizado útil que, partindo de circunstâncias
eventuais, vai se concretizando. E atinge apreciáveis qualidades. A copeira
aprende a dizer Mesdames et messieurs, le diner est servi ; o
jardineiro a adaptar tulipas ao clima do país: a cozinheira aprendendo por si
mesma a fazer massa folhada, essa coisa
temerária e improvável, apenas acessível a quem atinge os píncaros da ciências
culinária. Aptos, portanto, a repetirem os rituais europeus, introduzidos
pela Condessa austríaca nesse pedaço do país onde veio parar.
No ritmo do romance, estes cinco
capítulos são como pausas entre os episódios que, sem obedecer a ordens
cronológicas, vão-se acrescentando, cada
um a seu modo, como que independentes uns dos outros, na construção de uma ficção
que se alimenta da História do Rio Grande do Sul.
Pedra
da memória é, assim um interrogar-se sobre o passado rio-grandense, um
questionar-se sobre a elite que o conduziu, um permitir-se notar essas vidas
menores de imprescindível presença; também, uma procura estrutural na
multifacetada voz que, em meandros, conduz
a narrativa.
Luiz Antonio de Assis Brasil
inscreve este seu romance num Rio Grande do Sul que ainda se apresenta tão
instigador como já o fora, há décadas passadas, para um Érico Veríssimo de O tempo e o vento ou para um Cyro
Martins de Porteira fechada,
reconhecidos antecessores, se assim considerada for, a homenagem que, em meio à
narrativa, lhes é prestada. E tanto na obra do ficcionista como na Literatura
do Rio Grande do Sul, Pedra da memória
é o continuar de uma trajetória.
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