domingo, 16 de janeiro de 1994

Pequenas grandes vidas

            Morreu trinta anos depois, sem filhos e sem homem[...]. Zulmira Pacheco, a cozinheira. No romance Pedra da memória, um capítulo lhe é dedicado. Viera para um cabaré-restaurante do porto do Rio Grande e lá exercia a mais antiga das profissões. Por não aceitar as excentricidades de um comandante holandês, foi, de comum acordo com o patrão, para a cozinha fritar peixe. O começo de uma aprendizagem que a levou, primeiro para  a cozinha do melhor hotel da cidade e daí para o Castelo da Condessa. O castelo que dá título à trilogia de Luiz Antonio de Assis Brasil, Um castelo no pampa, da qual a Mercado Aberto, de Porto Alegre já publicou, em 1992, Perversas famílias e neste ano, Pedra da memória, título originado dos versos de Vitorino Nemésio e Carlos Drummond de Andrade, citados em epígrafe.

            Na primeira página é narrada a chegada do Doutor Olímpio a um Rio de Janeiro recém republicano. Nas demais, a sua trajetória política no Rio Grande do Sul, dividido entre republicanos e federalistas.
            Interrompem, muitas vezes, o narrador, as memórias de Proteu, a voz de Astor que se dirige a dois interlocutores para contar-lhes suas múltiplas aventuras e, também, a de Páris no registro de momentos de sua vida. Entremeadas a essas narrativas, as que tratam do que  o Editor chama de pequenas-grandes vidas dos servidores do Castelo:  a da copeira,a do jardineiro, a da governanta, a da cozinheira, a da ama. Pequenas vidas somente justificadas por viverem a serviços das outras, as grandes, assim tidas porque amparadas em imensas fortunas latifundiárias. Daí o constar nesses esboços de biografia, essencialmente, o aprendizado útil que, partindo de circunstâncias eventuais, vai se concretizando. E atinge apreciáveis qualidades. A copeira aprende a dizer Mesdames et messieurs, le diner est servi ; o jardineiro a adaptar tulipas ao clima do país: a cozinheira aprendendo por si mesma a fazer massa folhada, essa coisa temerária e improvável, apenas acessível a quem atinge os píncaros da ciências culinária. Aptos, portanto, a repetirem os rituais europeus, introduzidos pela Condessa austríaca nesse pedaço do país onde veio parar.
            No ritmo do romance, estes cinco capítulos são como pausas entre os episódios que, sem obedecer a ordens cronológicas,  vão-se acrescentando, cada um a seu modo, como que independentes uns dos outros, na construção de uma ficção que se alimenta  da  História do Rio Grande do Sul.
            Pedra da memória é, assim um interrogar-se sobre o passado rio-grandense, um questionar-se sobre a elite que o conduziu, um permitir-se notar essas vidas menores de imprescindível presença; também, uma procura estrutural na multifacetada voz que, em meandros, conduz   a narrativa.
            Luiz Antonio de Assis Brasil inscreve este seu romance num Rio Grande do Sul que ainda se apresenta tão instigador como já o fora, há décadas passadas, para um Érico Veríssimo de O tempo e o vento ou para um Cyro Martins de Porteira fechada, reconhecidos antecessores, se assim considerada for, a homenagem que, em meio à narrativa, lhes é prestada. E tanto na obra do ficcionista como na Literatura do Rio Grande do Sul, Pedra da memória é o continuar de uma trajetória.

           

Nenhum comentário:

Postar um comentário