domingo, 30 de janeiro de 1994

O reverso do ouro

           Após sintetizar e apreciar cada capítulo de O avesso da memória (José Olympio, 1993) de Luciano Figueiredo a professora Laura de Mello e Souza, com a autoridade que seus conhecimentos sobre o assunto lhe conferem, conclui que se trata de uma obra que mostra ser possível esmiuçar práti­cas cotidianas sem perder de vista o contexto em que se en­gastaram, harmonizando a micro-história com a análise mais globalizante.

 
          E, certamente o sub-título - Cotidiano e tra­balho da mulher em Minas Gerais no século XVIII - ao indicar os limites do trabalho não deixa, também, de sugerir prová­veis relações com outras disciplinas.
 
          Partindo de fontes originais e inéditas e de interpretações tradicionais da historiografia nacional, o au­tor desbrava caminhos numa área que permaneceu, muito tempo, estratificada: a imutável identificação da mulher. Ou como  branca, pertencente à elite econômica e acomodada no interior da casa-grande; ou como negra e mulata, liberta ou escrava po­bre, subordinada essencialmente à práticas sexuais para ga­rantir a sobrevivência.
 
          É um universo de injustiças e crueldades, re­velado no cotidiano das escravas e forras dedicadas ao comér­cio ambulante que lhes enseja a prostituição.
 
          Escravas, elas entregam o que auferem do co­mércio do próprio corpo para o seu proprietário. Forras, são impelidas à prostituição diante da impossibilidade de outras fontes de renda. Passa, então, a ser aceitável para elas o que é condenado pela Instituição Civil e pelo Clero.
 
          E, filhas exerciam a prostituição para sus­tentarem os pais e não se negavam a exercê-la, também, espo­sas e irmãs.
 
          Vivendo numa sociedade iníqua e desigual, essas mulheres tiveram de deixar de lado os pruridos morais para poderem sobreviver diz, num de seus trabalhos, a pro­fessora Laura de Mello e Souza. Palavras que Luciano Figuei­redo cita ao se adentrar no dia a dia dessas mulheres que vi­vem nas Gerais do século XVIII.

          E, revelava-se, então, que se trata de um drama bem mais abrangente pois nele cabe toda essa sociedade regida pelo colonialismo usurpador. Economicamente pobre e sem saída - todo um contingente humano em busca de condições de vida - a sua estrutura possibilita, apenas a uns poucos, o usufruto de riquezas ou de bem estar.

          Então, estudando o papel da mulher - sempre tido como secundário - dessa época, Luciano Figueiredo, como ele mesmo diz, fez mais do que um exercício de história. Tanto pelo material com que trabalha (muito do qual é iné­dito), quanto pelas reflexões que esse material origina, ele proporciona condições para que muitas questões possam vir a serem re­vistas.

          E inovar nas linhas de pesquisa e abrir, com isso, caminhos que possam auxiliar o avanço de outros estudos é realmente imprescindível. Sobretudo, num país que pouco tem questionado suas verdades.

domingo, 23 de janeiro de 1994

Guilhermino César: In memoriam

          A Indesejada das gentes, assim a chamou Gui­lhermino Cesar, em janeiro de 1984, quando ela veio em busca de Ligia Morrone Averbuck.A intelectual gaúcha morria aos quarenta e três anos, deixando inconclusa sua tese de doutoramento. Gui­lhermino Cesar dedicou-lhe um artigo no “Letras e Livros” do Correio do Povo, em que louva o extraordinário trabalho que ela realizara à frente do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul e suas qualidades como pesquisadora.
 
          Dez anos se passaram e, agora, neste último dezembro, foi sua vez: a Indesejada das gentes levou-o aos oitenta e cinco anos, a maior parte dos quais passados no Rio Grande do Sul onde chegou vindo de Minas Gerais, em setembro de 1943.
 
          E o Rio Grande teve, então, o privilégio de usufruir nesses anos todos do impecável, entusiasta e brilhante trabalho intelectual de Guilhermino Cesar, que não se limitou à publicação de uma vintena de livros mas a essa constante presença no suplemento cultural do Correio do Povo de Porto Alegre.
 
          Presença do poeta - o magnífico “Já desço” foi publicado em 26 de março de 1983; presença de um articu­lista de muitos interesses mas voltado, sobretudo, para a Li­teratura e para a História do Rio Grande do Sul.
 
          Artigos que não se constituem apenas fontes de informação ou de interpretações críticas como refletem as preocupações de um professor e de um pesquisador que pensa e que trabalha, acreditando que na Universidade assim é que deve ser.
 
          Como pesquisador, Guilhermino Cesar parte das fontes primárias que, no Brasil, nunca foram suficientemente estudadas; como crítico se aproxima, somente, das obras que lhe proporcionam prazer: Nunca li para não gostar. Leio, ao contrário, para gostar, para compreender e louvar a obra alheia, escreveu em 23 de julho de 1983.
 
          E, assim procede, elogiando as obras que lhe agradam, ainda que esquecidas ou ignoradas pelos críticos e pela mídia e, calando sobre as que não o emocionam.
 
          Como professor, porém, não perdoa essa crí­tica que define como palavrosa que a nada conduz e esse im­portado tecnicismo pedante que substitui o ensino guiado pela emoção.
 
          O seu confessar preferir sempre ao invés do alienígena tudo quanto venha marcado antes de mais nada por expressão afetiva nossa esteve coerente com as pesquisas e trabalhos que realizou. Era fervilhante de idéias e dominado por um contínuo desejo de abrir caminhos para futuros estu­dos. E aos seus artigos cabem o que uma vez disse sobre as crônicas de Rubem Braga: são um ato necessário.
 
          Em novembro de 1983, ao fazer o necrológio de seu amigo o pesquisador gaúcho Abeillard Vaz Dias Barreto, também se referiu à morte como à “Indesejada das Gentes”, aquela que não perdoa a ninguém; e vai ceifando sem parar, aqui e ali, talvez com o intuito de nos lembrar que a cláu­sula final não é um castigo, mas um prêmio.
 
          Como todo mortal, ao prêmio e ao castigo ele se submeteu. Mas dele ficaram vivos, os versos e as palavras. Rastros luminosos prolongando o seu viver.

domingo, 16 de janeiro de 1994

Pequenas grandes vidas

            Morreu trinta anos depois, sem filhos e sem homem[...]. Zulmira Pacheco, a cozinheira. No romance Pedra da memória, um capítulo lhe é dedicado. Viera para um cabaré-restaurante do porto do Rio Grande e lá exercia a mais antiga das profissões. Por não aceitar as excentricidades de um comandante holandês, foi, de comum acordo com o patrão, para a cozinha fritar peixe. O começo de uma aprendizagem que a levou, primeiro para  a cozinha do melhor hotel da cidade e daí para o Castelo da Condessa. O castelo que dá título à trilogia de Luiz Antonio de Assis Brasil, Um castelo no pampa, da qual a Mercado Aberto, de Porto Alegre já publicou, em 1992, Perversas famílias e neste ano, Pedra da memória, título originado dos versos de Vitorino Nemésio e Carlos Drummond de Andrade, citados em epígrafe.

            Na primeira página é narrada a chegada do Doutor Olímpio a um Rio de Janeiro recém republicano. Nas demais, a sua trajetória política no Rio Grande do Sul, dividido entre republicanos e federalistas.
            Interrompem, muitas vezes, o narrador, as memórias de Proteu, a voz de Astor que se dirige a dois interlocutores para contar-lhes suas múltiplas aventuras e, também, a de Páris no registro de momentos de sua vida. Entremeadas a essas narrativas, as que tratam do que  o Editor chama de pequenas-grandes vidas dos servidores do Castelo:  a da copeira,a do jardineiro, a da governanta, a da cozinheira, a da ama. Pequenas vidas somente justificadas por viverem a serviços das outras, as grandes, assim tidas porque amparadas em imensas fortunas latifundiárias. Daí o constar nesses esboços de biografia, essencialmente, o aprendizado útil que, partindo de circunstâncias eventuais, vai se concretizando. E atinge apreciáveis qualidades. A copeira aprende a dizer Mesdames et messieurs, le diner est servi ; o jardineiro a adaptar tulipas ao clima do país: a cozinheira aprendendo por si mesma a fazer massa folhada, essa coisa temerária e improvável, apenas acessível a quem atinge os píncaros da ciências culinária. Aptos, portanto, a repetirem os rituais europeus, introduzidos pela Condessa austríaca nesse pedaço do país onde veio parar.
            No ritmo do romance, estes cinco capítulos são como pausas entre os episódios que, sem obedecer a ordens cronológicas,  vão-se acrescentando, cada um a seu modo, como que independentes uns dos outros, na construção de uma ficção que se alimenta  da  História do Rio Grande do Sul.
            Pedra da memória é, assim um interrogar-se sobre o passado rio-grandense, um questionar-se sobre a elite que o conduziu, um permitir-se notar essas vidas menores de imprescindível presença; também, uma procura estrutural na multifacetada voz que, em meandros, conduz   a narrativa.
            Luiz Antonio de Assis Brasil inscreve este seu romance num Rio Grande do Sul que ainda se apresenta tão instigador como já o fora, há décadas passadas, para um Érico Veríssimo de O tempo e o vento ou para um Cyro Martins de Porteira fechada, reconhecidos antecessores, se assim considerada for, a homenagem que, em meio à narrativa, lhes é prestada. E tanto na obra do ficcionista como na Literatura do Rio Grande do Sul, Pedra da memória é o continuar de uma trajetória.

           

domingo, 9 de janeiro de 1994

Lá, longe

          Conhecereis a verdade e a verdade os fará livres. São João VIII, 32. São as palavras finais de Allá, lejos que, em 1992, recebeu o Prêmio Hammeth Internacional de Gijón, Espanha.

          Seu autor, o uruguaio Daniel Chavarría é pro­fessor de Línguas e Literaturas clássicas, etnólogo, tradutor e roteirista.

          Segundo a editora que lançou o seu livro em 1993, a Graffiti & Cal y Canto, de Montevidéu, trata-se de um romance de aventura e espionagem que se constrói num ritmo vertiginosamente cinematográfico.

          É um romance que abarca muitos anos e nesse longo espaço de tempo, sucessivamente, vão aparecendo um sem número de personagens e suas breves histórias.

          O primeiro é José Gamos de Andrade, vulgo Zé Bonitinho e o episódio em que atua tem como data, março de 1970. O último conta a origem de uma casa construída por Frank Lloyd Wright em 1913.

          Entre eles, muitos anos e a distância que me­deia entre Santarém, no Brasil e Langley na Virgínia, Estados Unidos. Uma distância tão grande quanto pode ser a diferença que separa o destino de um caboclo brasileiro daquele reser­vado ao grande arquiteto norte-americano.

          E, nada teriam em comum, não fossem esses episódios que se acumulam, livres das amarras de datas e es­paços geográficos, acompanhando um itinerário: o achado de uma planta de poderosos efeitos e as experiências originadas do afã de sua exploração.

          Muitos deles tratam das atividades falangis­tas na Espanha de Franco e das atividades de organizações alienígenas no Continente. Garras que se cravam aquém e além mas acobertadas por ideologias ou por muitíssimos dólares. Planos para dominar e destruir se delineiam. E os relatórios das pesquisas, se sucedem cheios de evidências sobre o des­respeito à vida e sobre o jogo de interesses que as norteiam.

          Conscientes ou não do que fazem, esses perso­nagens, que povoam as trezentas páginas do romance agem como fantoches. E os fios que lhe dão vida não são escamoteados movidos por uma CIA de reconhecível presença. Perniciosa pre­sença cujos atos são por demais conhecidos no Continente e inexplicavelmente tolerados.

 

domingo, 2 de janeiro de 1994

Aquém do jardim

          Lembranças do passado contadas tantas vezes quanto necessário seja  para repetir a emoção de um momento. E com­prendendo, perdoando ou até perseguindo as variações, as omissões, as mentiras. Um tema, sem dúvida, fascinante.
 
          É uma voz feminina de jovem mulher. Após anos de ausência, aquela que narra, retorna à cidade onde passou a infância. Seus pontos de referência se perderam. Na verdade, ela não volta em busca do passado, mas para que o marido co­nheça esse mundo em que, menina, foi descobrindo coisas.
 
          Por acaso, eles tem acesso a uma velha casa vazia. Suas lembranças afloram - risíveis, gentis, inconse­quentes - e essa meninice que, então, torna a existir, emerge também para o marido. Ele toma posse de um mundo feito só de palavras - portanto cambiante - pois quem as profere, ao con­tar para os amigos sua aventura de revisitar o passado,  acrescenta-lhe detalhes que não ocorreram.
 
          Ulalume González de León publicou seu conto “Intercambios”, com outros onze, no livro A cada rato lunes, em 1970, pela chancela da Joaquin Mortiz, do México.
 

Nascida em Montevidéu, de pai diplomata, fez seus estudos em Paris e foi viver no México.Tradutora, ensaísta, como autora de ficção se expressa numa prosa espontânea e clara e luminosa que sugere distância com o sombrio que predomina no Continente.
Em “Intercambio” é o reencontro de alguém com aquele ser que fora quinze anos antes e que duas voltas de chave na porta da casa que desejara ver, bastam para que lhe nasçam as lembranças.Fixadas em detalhes que reconstroem a velha casa, elas narram aventuras infantis, estreitamente ligadas a um espaço que perdera seus contornos para se refazer em ou­tro.
Mais tarde, a narradora inventaria lembranças ligadas a imagens de ambas as casas: a verdadeira, onde transcorreu sua infância e a que visitou e que lhe fez revi­ver essa infância e outra vez recriá-la .

         A estrita verdade dos fatos ou a importância deles não é, para a narradora, essencial. Pois não é de pre­tensos fatos inesquecíveis que se faz o passado. Um besouro com as asas quebradas sobre uma folha seca pode dar sentido a um determinado dia. E se essa lembrança for amada, ela per­manecerá viva.
 
          “Intercambio” é um breve conto que brinca de reconstruir um universo fechado - os espaços, os jogos infan­tis, as lembranças - que se basta a si mesmo. Uma expressão que se volta apenas para a sua própria realidade, ainda que inventada, e que, talvez, tenha também outros significados. 
         Porque nem todos tem a coragem ou se sentem no dever de encarar o que se passa além de seu jardim.