domingo, 1 de agosto de 1993

Entre parêntesis

         Um dos grandes nomes da Literatura venezuelana de hoje, Salvador Garmendia, publicou em 1974 aquele que foi, então, considerado o seu mais brilhante romance: Memorias de Altagracia. Romance feito de histórias justapostas, como que independentes entre si e tendo, todas, como cenário Altagracia, uma pequena cidade interiorana, capital da província
         É nesse espaço que aparece uma verdadeira galeria de personagens, todos mais ou menos estranhos, mostrando-se, por vezes, irreais ao olhar curioso de um menino.
         Transformando-se de acordo com o tempo - o calor de julho, o frio que chega em agosto, os chuvisqueiros, os dias bruscos, os claros dias de abril, as chuvas fortes - ruas e casas e muito da imaginação infantil do narrador são o cenário onde se movem, quase sempre, fugindo às convenções, o tio, o aviador inglês, o castrador de bodes, o andarilho, o coronel.
         O relato que lhe diz respeito é antecedido de um texto cuja autoria não pertence à voz infantil dominante até então, mas à outra que diz ser a hora de molhar a pena nas risonhas tintas da crônica, para narrar os acontecimentos felizes que aconteceram há poucos dias.
         No entanto, a crônica desses acontecimentos felizes não se apresenta tão risonha quanto o prometido, pois as figuras que o povoam são todas, de uma ou outra maneira, degradadas e os sucessos narrados perfeitamente risíveis se considerados apenas uma realidade ficcional.
         Mas, sem dúvida, é de ficção que se trata: a tropa comandada por um general que de tão decrépito deve ser amarrado ao cavalo para não cair e cuja presença é imprescindível para conferir seriedade às ações militares por acontecer. Tropa formada para  combater subversivos revolucio-nários, não os encontrando após os dias de marcha, havia, assim mesmo, sob as ordens do general, livrado a grande batalha final cuja estrondosa vitória foi amplamente divulgada. Lida e colada por toda parte e até sabida de cor por alguns e, posta em música, cantada por outros: O facínora Venancio Contreras foi aniquilado! Depois de quatro horas de sangrenta batalha, as guerrilhas facciosas, dizimadas e desmoralizadas não obstante a sua superioridade numérica, fugiam em debandada, abandonando no campo de batalha 320 mortos, 862 feridos, duas peças de artilharia, 600 fuzis. Asseguram dessa maneira aos exércitos da república a vitória absoluta e definitiva sobre os insensatos e criminais empenhos daqueles que se insurgiram temerariamente contra o bem-estar da pátria.
         Para concluir, um belo desfile cívico cheio de brilho e música e entusiasmo patriótico. Também, uma data para festejar nos anos vindouros.
         No burlesco que domina toda essa crônica que se queria risonha, nos tipos caricaturais e nas situações aparentemente fantasiosas há, sem dúvida, a mesma clara intenção que animou outros ficcionistas do Continente.
         No romance de Salvador Garmendia é um texto que se insere, como o abrir de um parênteses, no insólito mundo infantil recriado. Como que sem intenção. Como que inocentemente.

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