domingo, 8 de agosto de 1993

Fábula moderna

          Em 1980, o Prêmio do Livro Infantil da Espanha foi outorgado à obra A pedra arde.
          A partir de uma idéia de Arkadi Gaidar, é o primeiro escrito de Eduardo Galeano dirigido às crianças. Na Espanha foi publicado pela editora Lóquez de Salamanca e no Brasil, pelas edições Loyola de São Paulo.  
           A pedra arde é uma breve história que envolve dois personagens: o menino Carassuja e o velho.
          Ao tentar roubar maçãs e escorregar muro abaixo, Carassuja encontra-se com o velho, guarda do pomar. Não recebeu dele reprimendas mas cuidados nos arranhões que se fizera ao cair.
          Outra arte - a de se perder no bosque - o leva a encontrar a pedra do rejuvenescimento. Carassuja quis tornar o velho feliz e lhe oferece o achado pois quem quebrasse a pedra em pedacinhos voltaria à juventude.
 
          Para sua indignada tristeza, porém, o velho não aceitou ficar jovem outra vez embora andasse curvado e fosse manco; embora tivesse no rosto uma cicatriz e dentes quebrados e o nariz torto.
 
 
          Mas, não se recusou a romper o silêncio de tantos anos para explicar a Carassuja o porquê de não querer mudar: Estes dentes não cairam sozinhos. Foram arrancados à força. Esta cicatriz que marca meu rosto não vem de um acidente. Os pulmões... a perna... Quebrei a perna quando escapei da prisão ao saltar um muro alto. [...] Se quebro a pedra, estas marcas somem. E elas são meus documentos, compreendes? Meus documentos de identidade. Olho-me no espelho e digo: “Esse sou eu” e não sinto pena de mim. Lutei muito tempo. A luta pela liberdade é uma luta que nunca acaba. Ainda agora, há outras pessoas, lá longe, lutando como eu lutei. Mas minha terra e minha gente ainda não são livres e eu não quero esquecer. Se quebro a pedra cometo uma traição, compreendes?
          E, assim, se entrelaçaram o mundo da fábula - o menino que se perde no bosque, a solução encontrada para reencontrar o caminho que, para Carassuja foi rasgar a roupa e deixar pedaços pendurados nas árvores, o achado de uma pedra com poderes excepcionais - e o real, terrível mundo das torturas e prisões e mortes políticas que era, então, o mundo de muitos países latino-americanos.
          E, contrariando o desfecho da fábula, em que o mágico tudo soluciona e torna feliz aquele que recebeu seus benefícios, esse rejuvenescer sempre tão procurado pelos humanos, ao longo do tempo, foi desprezado em nome de princípios: não negar a marca da vida por cruel que ela tenha sido; não esquecer o destino dos seus que ainda continuam lutando pelos seus ideais.
          O final feliz da história se apresenta com o que, aparentemente há de mais simples: o menino e o velho caminhando pelo bosque de mãos dadas. E é a mão do velho que aquece a mão do menino e são suas palavras as que lhe transmitem uma visão de mundo dominada pela coerência diante de si mesmo e pela solidariedade.
          Reafirmações de crenças e de esperanças num texto cujas ilustrações do espanhol Luis de Horna criam, por sua vez, um encantador mundo feérico feito de belas plantas estilizadas, de flores, de animais risonhos e tranqüilos.
          Harmonia perfeita. Desejadamente instigadora ao se construir também, ou,  sobretudo da História do Continente que negada e escondida durante tantos anos, hoje, começa a ser finalmente contada.

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