Há vinte anos atrás era
publicado em Buenos Aires Dormir al sol
de Adolfo Bioy Casares, exatamente quarenta anos depois de seu primeiro romance
Luis Greve muerto.
Nascido em 1914, o
ficcionista é considerado um artífice da literatura fantástica argentina que,
partindo de um tom metafísico, evoluiu para uma visão cada vez mais humorística
e irônica da realidade onde o surpreendente e o sobrenatural atuam como um
elemento a mais da vida cotidiana.
Tal apreciação com que o Diccionario de autores iberoamericanos
dirigido por Pedro Shimose sintetiza a obra do romancista argentino se mostra
exemplificada em Dormir al sol.
Trata-se de uma longa
narrativa dividida em duas partes
perfeitamente desiguais. A primeira, feita por Lucio Bordenave é a história de
pequenos nadas cujos significados são por ele interpretados de forma a
constituir uma ambigüidade. Ambigüidade que, num crescendo alcançará as suas
últimas palavras sem que a ela se acrescentem outros elementos passíveis de
esclarecê-la. São duzentas e vinte e duas páginas em que o simples cotidiano de
um casal se vê dissolvido diante da ausência da mulher.
Com a sua simples e
corriqueira vida de relojoeiro de bairro, girando exclusivamente em torno de
sua bela mulher, de repente é dela privado quando permite a sua internação numa
estranha clínica para doentes mentais.Ao ser “liberada” após o
tratamento, o cotidiano se refaz mas, então, é o próprio narrador que se vê
internado.De seu quarto clausurado,
sem possibilidade de se comunicar com o exterior e às escondidas, ele tenta
pedir ajuda a Felix Ramos, velho conhecido de infância.Sua história se interrompe e
a segunda parte do livro - menos de cinco páginas - é constituído pelas
palavras de seu destinatário.
No relato de Lucio Bordenave
à falsa compreensão de palavras ou gestos, ou simples e habituais
mal-entendidos do trato familiar se contaminam de algo inexplicavelmente
indefinido ao qual se opõem fatos que se afastam dos usualmente estabelecidos.
As fronteiras entre o real e
o imaginário aparecem difusas nessa visão de mundo deslocada que, sem dúvida,
comanda cada ação do narrador. E, assim, ele é presa fácil da organização que
no melhor estilo da ficção científica põe em prática métodos pouco ortodoxos de
tratamento e cura de desajustes mentais.
Antes de ser submetido ao "tratamento", Lucio Bodenave interrompe a narrativa deixando-a inconclusa. Suas últimas palavras que informam sobre a situação em que se encontra oferecem multiplas leituras. A que nega a esperança de voltar a ver sua mulher como era antes do tratamento e da certa impossibilidade de sair da clínica.
A seu silêncio segue-se a
voz de Felix Ramos que muito brevemente esclarece como recebeu o maço de papel
assinado por Lucio Bordenave e informa sobre fatos para ele sem importância mas
que oferecem a conclusão irreversível e sem dúvida feliz, se não forem
considerados os métodos empregados - para a nova vida de Lucio Bordenave e sua
mulher.
Felix Ramos ignora o alcance
de suas palavras, um típico narrador que sabe menos sobre aquilo que está
contando do que o leitor.
Lucio Bordenave, por sua
vez, narra o que lhe acontece e o que pensa então. Propicia ao leitor um
conhecimento único e limitado que, no entanto, se amplia a partir das sugestões
que emergem da ingenuidade do relato. Daí ser o leitor, aquele que finalmente
possui maiores condições de entender o que se passa. E de usufruir do humor que
se desprende da narrativa. O humor que irá definir tanto o pequeno mundo de
subúrbio onde se inscreve o drama de Lucio Bordenave como esse terrível mundo
de experiências científicas que se servem de seres humanos para atingir bons ou
maus objetivos.
Mescla tragicômica feita num tempo em que a ficção científica descrevia o inverossímil. Mas, o tempo fez de Dormir al sol mais do que uma fantasiosa história, um triste vaticínio.
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