domingo, 9 de maio de 1993

Triste vaticínio

           Há vinte anos atrás era publicado em Buenos Aires Dormir al sol de Adolfo Bioy Casares, exatamente quarenta anos depois de seu primeiro romance Luis Greve muerto.
 
           Nascido em 1914, o ficcionista é considerado um artífice da literatura fantástica argentina que, partindo de um tom metafísico, evoluiu para uma visão cada vez mais humorística e irônica da realidade onde o surpreendente e o sobrenatural atuam como um elemento a mais da vida cotidiana.
 
           Tal apreciação com que o Diccionario de autores iberoamericanos dirigido por Pedro Shimose sintetiza a obra do romancista argentino se mostra exemplificada em Dormir al sol.
 
           Trata-se de uma longa narrativa  dividida em duas partes perfeitamente desiguais. A primeira, feita por Lucio Bordenave é a história de pequenos nadas cujos significados são por ele interpretados de forma a constituir uma ambigüidade. Ambigüidade que, num crescendo alcançará as suas últimas palavras sem que a ela se acrescentem outros elementos passíveis de esclarecê-la. São duzentas e vinte e duas páginas em que o simples cotidiano de um casal se vê dissolvido diante da ausência da mulher.

           Com a sua simples e corriqueira vida de relojoeiro de bairro, girando exclusivamente em torno de sua bela mulher, de repente é dela privado quando permite a sua internação numa estranha clínica para doentes mentais.Ao ser “liberada” após o tratamento, o cotidiano se refaz mas, então, é o próprio narrador que se vê internado.De seu quarto clausurado, sem possibilidade de se comunicar com o exterior e às escondidas, ele tenta pedir ajuda a Felix Ramos, velho conhecido de infância.Sua história se interrompe e a segunda parte do livro - menos de cinco páginas - é constituído pelas palavras de seu destinatário.
 
           No relato de Lucio Bordenave à falsa compreensão de palavras ou gestos, ou simples e habituais mal-entendidos do trato familiar se contaminam de algo inexplicavelmente indefinido ao qual se opõem fatos que se afastam dos usualmente estabelecidos.

           As fronteiras entre o real e o imaginário aparecem difusas nessa visão de mundo deslocada que, sem dúvida, comanda cada ação do narrador. E, assim, ele é presa fácil da organização que no melhor estilo da ficção científica põe em prática métodos pouco ortodoxos de tratamento e cura de desajustes mentais.
          Antes de ser submetido ao "tratamento", Lucio Bodenave interrompe a narrativa deixando-a inconclusa. Suas últimas palavras que informam sobre a situação em que se encontra oferecem multiplas leituras. A que nega a esperança de voltar a ver sua mulher como era antes do tratamento e da certa impossibilidade de sair da clínica.

          A seu silêncio segue-se a voz de Felix Ramos que muito brevemente esclarece como recebeu o maço de papel assinado por Lucio Bordenave e informa sobre fatos para ele sem importância mas que oferecem a conclusão irreversível e sem dúvida feliz, se não forem considerados os métodos empregados - para a nova vida de Lucio Bordenave e sua mulher.
 
          Felix Ramos ignora o alcance de suas palavras, um típico narrador que sabe menos sobre aquilo que está contando do que o leitor.
 
          Lucio Bordenave, por sua vez, narra o que lhe acontece e o que pensa então. Propicia ao leitor um conhecimento único e limitado que, no entanto, se amplia a partir das sugestões que emergem da ingenuidade do relato. Daí ser o leitor, aquele que finalmente possui maiores condições de entender o que se passa. E de usufruir do humor que se desprende da narrativa. O humor que irá definir tanto o pequeno mundo de subúrbio onde se inscreve o drama de Lucio Bordenave como esse terrível mundo de experiências científicas que se servem de seres humanos para atingir bons ou maus objetivos.

         Mescla tragicômica feita num tempo em que a ficção científica descrevia o inverossímil. Mas, o tempo fez de Dormir al sol mais do que uma fantasiosa história, um triste vaticínio.

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