domingo, 23 de maio de 1993

Mordacidade trocista

          Na história da literatura argentina, os anos vinte foram marcados por uma vanguarda que, reagindo contra o conceito de realismo e de realidade, quis ver-se livre para novos caminhos.
          Em Buenos Aires, privada das tradições indígenas enraizadas em outros espaços do Continente e interessada pelo que acontecia na literatura européia e pelo moderno e aspirando ser um eixo cultural que ultrapasse fronteiras, os escritores se inspiravam em Joyce, em Proust e nos dadaístas e nos surrealistas.
          Entre eles, Macedonio Fernández procurando novos estilos e novas técnica.  Viveu entre 1874 e 1952 em Buenos Aires. Suas obras completas foram editadas tardiamente, em 1974, quando se completava um século de seu nascimento, pela Corregidor de Buenos Aires. Reúne poemas, cartas, miscelâneas, relatos, fragmentos de biografia e romances.São escritos que deslizam entre os gêneros com extrema facilidade e, assim, tornam difícil a sua classificação. Alguns, ele decide que sejam romances: Novela de la eterna e Adriana Buenos Aires, obras gêmeas que ele desejava fossem publicadas juntas. Tal não aconteceu. A Novela de la eterna foi publicada em 1967 e Adriana Buenos Aires apenas sete anos depois. Escrita em 1922, foi revisada em 1938 quando recebeu capítulos,  as páginas prévias e algumas notas de rodapé. Tem como subtítulo “Última novela mala” (último romance ruim) e sua fatura foi, segundo o autor, uma verdadeira proeza disciplinar porque ele teve que resistir à incessante tentação de corrigir as muitas inocências artísticas, as ridículas interjeições e as frases sentimentais, as casualidades e os prodígios da sorte.
          Adriana Buenos Aires é um romance que trata do amor a partir de uma espécie de insólito triângulo amoroso. Na verdade, não são os amorios de Adriana e Adolfo e o amor de Don Eduardo por Adriana o cerne do livro. Sim, as considerações de Don Eduardo sobre o amor; o amor que alimenta a alma dos outros personagens e o que alimenta a sua própria alma.


          Mas, no quase nada que acontece ao longo da obra, feita sobretudo de diálogos, se inserem verdadeiramente preciosas reflexões do narrador sobre Medicina, Morte, o jogo da roleta, a alimentação da criança.
          De uma troça mordaz, o monólogo em que tece considerações sobre os filmes norte-americanos: Fora Chaplin, diz, que é um caso de gênio, os ianques-homens são horríveis e somente alguma jovem artista revela talento dramático. Os ianques parecem todos acrobatas aposentados. Nunca se lhes vê o rosto quando é preciso expressar alguma coisa e se não lhes põem um cavalo entre as pernas, um revólver na mão e um abismo ou um ou dois mares perto das patas do cavalo não se distingue na expressão deles se andam procurando a árvore para se enforcar ou se estão brabos por terem ganho, pela manhã na loteria. Por que comprou então o bilhete, amigo, e se expôs a esse desgosto?
          Deixa logo as generalidades para comentar o filme que assiste e que estava interessando sobremaneira a Suzana. Ela chorava e ria com as peripécias do filme enquanto o narrador, lúcido, não se deixa enganar sobre a imprestável interpretação do artista principal: O príncipe que não se sairia mal como valete de príncipe - na cozinha real devem estar sentindo sua falta - declara seu amor, e eu acreditando que apenas estava a lhe oferecer um guardanapo.
         E Don Eduardo tampouco pode se impedir de constatar a relação que se estabelece entre a imagem cinematográfica e a impressão de um público - no caso, feminino - incapaz de perceber o significado exato do que lhe é dado assistir, porque está atento unicamente às próprias emoções e o espetáculo não é mais do que um ponto de apoio para sua imaginação e sentimento, o que lhe permite permanecer alheio à estultice dos assuntos e dos atores.
          Mas, com isso, Macedônio Fernández não elabora um texto político - até se salvaguarda, indagando como na terra de Emerson, Poe, Thoureau, Mark Twain, William James, Walt Whitman esses artistas são suportados.
          E se limita a acrescentar que face à sensibilidade de Adriana, um grande drama e um grande ator lhe encheria a alma das grandezas da arte que jamais ela conheceu. Ficaria, então, ao leitor o trabalho de concluir sobre o significado de uma alienação que direcionou desde essa época o gosto e a visão de mundo de várias gerações.

         Porém, o destino de Adriana Buenos Aires foi o de permanecer inédito por mais de cinqüenta anos.
         No entanto, desobediente aos cânones técnicos novelescos, construído a partir de um monólogo em que se expressam ora os personagens, ora o autor, nutrido de ironias e troças sobre o pequeno mundo de uma pequena classe média, se constitui um divertido jogo que solicita a participação do leitor, é, no dizer do crítico César Moreno, o marco inaugural da grande mudança consciente da literatura latino-americana deste século.




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