domingo, 30 de maio de 1993

Uma teoria do romance no romance

          Uma experiência decisiva para a evolução da narrativa argentina deste século, diz o crítico uruguaio Emir Rodriguez Monegal sobre Museo de la novela de la Eterna. Foi publicada em 1967, quinze anos depois da morte de seu autor e sete anos antes da publicação de sua irmã gêmea Adriana Buenos Aires. Ao contrário dela que traz como subtítulo último romance ruim, Museo de la novela de la Eterna é rotulada por seu autor de Primeiro romance bom (Primera novela buena).
          Recusando-se a fazer Literatura como algo de concluído, Macedônio Fernández escreve uma obra aberta que, não apenas oferece ao leitor diferentes possibilidades de leitura, mas que deseja fazer dele um co-autor. Assim, ao longo de Museo de la novela de la Eterna, é instado a fazer opções
         No primeiro prólogo, dos 57 que antecedem o romance propriamente dito, Lo que nace y lo que muere (O que nasce e o que morre) é dada ao leitor a escolha do gênero de sua predileção: ou o romance bom ou o romance ruim. Uma pseudo liberdade de escolha, porque, no intuito de impedir a escolha de uma em detrimento da outra obra, o autor determina que seja obrigatória a venda das duas juntas. A seguir, o leitor será solicitado, mais ou menos imperativamente, a colaborar no sentido de desconfundir o bom texto do mau. Pois, escrevendo os dois romances ao mesmo tempo, usando idêntico tipo de papel e de tinta e idêntica qualidade de idéias, numerando de maneira igual as páginas que escrevia todos os dias e se esforçando para ser inteligente em ambas as obras, o autor ficava perplexo quando o vento fazia voar os manuscritos. E, sofria, por não conseguir identificar se uma página brilhante pertencia ao último romance mau ou ao primeiro romance bom.
          Como se brincadeira fosse, fica então, inserido nesse primeiro prólogo uma problemática literária que desafia críticos e historiadores da Literatura: o julgamento de valor de uma obra. Um tema retomado nos textos dirigidos diretamente aos críticos pois eles são, certamente, parte desse processo que é sua meta discutir: a fatura da obra literária, no caso, o romance.
          E Macedonio Fernández busca discuti-la jocosa e ludicamente numa abordagem em que leitor, personagem, narrador e assunto adquirem um status que se afasta do convencional, levando à construção de um ensaio cujos pressupostos continuam válidos apesar dos anos transcorridos.
          O que, aliás, parecia ser esperado pelo autor e que ficou perfeitamente claro no “Prólogo final” de sugestivo título: Ao que deseje escrever este romance onde conselhos e explicações se acrescentam às teorias romanescas enunciadas e postas em prática nesse primeiro romance bom. Deixo, assim, a teoria perfeita do romance, uma imperfeita peça de sua execução e um perfeito plano de execução. Deixa, também, autorização para que seu romance seja corrigido e editado por qualquer escritor que deseje fazê-lo, mencionando ou não título da obra e autor. Embora não aspire à autoria de uma obra definitiva e a ofereça como caminho a percorrer, o situar-se como elemento intermediário lhe assegura um papel igualmente imprescindível no processo criativo que está sempre em repetida mutação.
          E mais do que ninguém, dela Macedônio Fernández soube fazer a síntese: Tudo foi escrito, tudo foi dito, tudo foi feito, escutou Deus que lhe diziam e ainda não tinha criado o mundo, ainda não existia nada. Isso também já me disseram, replicou, talvez da velha fenda Nada. E começou.
          Uma frase de música do povo uma rumena me cantou e logo a encontrei dez vezes em diferentes obras e autores dos últimos quatrocentos anos. É inegável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo. Prólogo à eternidade. Museo de la novela de la Eterna.

domingo, 23 de maio de 1993

Mordacidade trocista

          Na história da literatura argentina, os anos vinte foram marcados por uma vanguarda que, reagindo contra o conceito de realismo e de realidade, quis ver-se livre para novos caminhos.
          Em Buenos Aires, privada das tradições indígenas enraizadas em outros espaços do Continente e interessada pelo que acontecia na literatura européia e pelo moderno e aspirando ser um eixo cultural que ultrapasse fronteiras, os escritores se inspiravam em Joyce, em Proust e nos dadaístas e nos surrealistas.
          Entre eles, Macedonio Fernández procurando novos estilos e novas técnica.  Viveu entre 1874 e 1952 em Buenos Aires. Suas obras completas foram editadas tardiamente, em 1974, quando se completava um século de seu nascimento, pela Corregidor de Buenos Aires. Reúne poemas, cartas, miscelâneas, relatos, fragmentos de biografia e romances.São escritos que deslizam entre os gêneros com extrema facilidade e, assim, tornam difícil a sua classificação. Alguns, ele decide que sejam romances: Novela de la eterna e Adriana Buenos Aires, obras gêmeas que ele desejava fossem publicadas juntas. Tal não aconteceu. A Novela de la eterna foi publicada em 1967 e Adriana Buenos Aires apenas sete anos depois. Escrita em 1922, foi revisada em 1938 quando recebeu capítulos,  as páginas prévias e algumas notas de rodapé. Tem como subtítulo “Última novela mala” (último romance ruim) e sua fatura foi, segundo o autor, uma verdadeira proeza disciplinar porque ele teve que resistir à incessante tentação de corrigir as muitas inocências artísticas, as ridículas interjeições e as frases sentimentais, as casualidades e os prodígios da sorte.
          Adriana Buenos Aires é um romance que trata do amor a partir de uma espécie de insólito triângulo amoroso. Na verdade, não são os amorios de Adriana e Adolfo e o amor de Don Eduardo por Adriana o cerne do livro. Sim, as considerações de Don Eduardo sobre o amor; o amor que alimenta a alma dos outros personagens e o que alimenta a sua própria alma.


          Mas, no quase nada que acontece ao longo da obra, feita sobretudo de diálogos, se inserem verdadeiramente preciosas reflexões do narrador sobre Medicina, Morte, o jogo da roleta, a alimentação da criança.
          De uma troça mordaz, o monólogo em que tece considerações sobre os filmes norte-americanos: Fora Chaplin, diz, que é um caso de gênio, os ianques-homens são horríveis e somente alguma jovem artista revela talento dramático. Os ianques parecem todos acrobatas aposentados. Nunca se lhes vê o rosto quando é preciso expressar alguma coisa e se não lhes põem um cavalo entre as pernas, um revólver na mão e um abismo ou um ou dois mares perto das patas do cavalo não se distingue na expressão deles se andam procurando a árvore para se enforcar ou se estão brabos por terem ganho, pela manhã na loteria. Por que comprou então o bilhete, amigo, e se expôs a esse desgosto?
          Deixa logo as generalidades para comentar o filme que assiste e que estava interessando sobremaneira a Suzana. Ela chorava e ria com as peripécias do filme enquanto o narrador, lúcido, não se deixa enganar sobre a imprestável interpretação do artista principal: O príncipe que não se sairia mal como valete de príncipe - na cozinha real devem estar sentindo sua falta - declara seu amor, e eu acreditando que apenas estava a lhe oferecer um guardanapo.
         E Don Eduardo tampouco pode se impedir de constatar a relação que se estabelece entre a imagem cinematográfica e a impressão de um público - no caso, feminino - incapaz de perceber o significado exato do que lhe é dado assistir, porque está atento unicamente às próprias emoções e o espetáculo não é mais do que um ponto de apoio para sua imaginação e sentimento, o que lhe permite permanecer alheio à estultice dos assuntos e dos atores.
          Mas, com isso, Macedônio Fernández não elabora um texto político - até se salvaguarda, indagando como na terra de Emerson, Poe, Thoureau, Mark Twain, William James, Walt Whitman esses artistas são suportados.
          E se limita a acrescentar que face à sensibilidade de Adriana, um grande drama e um grande ator lhe encheria a alma das grandezas da arte que jamais ela conheceu. Ficaria, então, ao leitor o trabalho de concluir sobre o significado de uma alienação que direcionou desde essa época o gosto e a visão de mundo de várias gerações.

         Porém, o destino de Adriana Buenos Aires foi o de permanecer inédito por mais de cinqüenta anos.
         No entanto, desobediente aos cânones técnicos novelescos, construído a partir de um monólogo em que se expressam ora os personagens, ora o autor, nutrido de ironias e troças sobre o pequeno mundo de uma pequena classe média, se constitui um divertido jogo que solicita a participação do leitor, é, no dizer do crítico César Moreno, o marco inaugural da grande mudança consciente da literatura latino-americana deste século.




domingo, 16 de maio de 1993

O rio

          Ele foi autor de teatro e de ensaios. Escreveu roteiros de cinema, romances e contos. Porque disseram que era rebelde e agitador, antes de seus quinze anos, foi para um reformatório, depois preso em Islas Marias e preso outras tantas vezes. E, com apenas vinte e nove anos recebia o Prêmio Nacional de Literatura: José Revueltas, nascido no México em 1914.

          Seu primeiro romance, Los muros de agua, fruto de sua experiência na prisão, foi publicado em 1941. Seguiram-se muitos outros e entre eles dois livros de contos, Dios en la tierra e Dormir en tierra.

          Dormir en tierra foi publicado em 1960. É formado por oito relatos dos quais o último dá título ao livro. Conta sobre dois mundos que se entrelaçam: o imóvel mundo do povoado e o que, vindo das águas, lhe dá parca e efêmera vida. Elo vagaroso e pesado, o rio Coatzacoalcos. Paralelo a seu curso, as miseráveis ruelas. Perto do cais, as tavernas e os prostíbulos quietos sob o sol, o calor paralisando pessoas e animais. Então, só os olhos das prostitutas se estendiam para o rio, olhando o rebocador que manobrava, a espera da tripulação que desceria à terra.

          Para uma delas, no entanto, a chegada do barco significava menos o desejo de ganho do que a esperança de afastar, do povoado e de sua vida, o filho que não podia cuidar.
          O drama se instala na beira do cais e no velho barco. O menino espera, imóvel, que o levem para longe da miséria e da vergonha; o contra mestre luta para permanecer surdo ao desesperado apelo do olhar infantil.
          Em terra, a pobreza e a humilhação da prostituta; no barco, o sofrimento e a injustiça de que são vítimas os tripulantes.
          José Revueltas, militante de esquerda desde muito jovem, como ficcionista, optou por um realismo dialético - assim ele o define - que, sem o afastar de suas convicções políticas, lhe permite uma criação que tampouco renuncia a suas buscas estéticas.
          Uma ficção, diz o professor norte-americano Johan S. Brushwood ao escrever sobre a história do romance no México, que se funda mais na condição do homem do que num protesto político ou social.
          Sem dúvida, no conto “Dormir en tierra”, é extremamente doloroso esse universo de pobreza em que se detém a narrativa. No entanto, não embota o drama individual da prostituta que deve afastar o filho e o drama do contramestre que não deve, por sua vez, permiti-lo a bordo, embora não fique dúvida que a origem do dilema esteja na defeituosa estrutura social a que tanto um como outro pertencem como elementos menos favorecidos.
          E, se vivem, profundamente, o sofrimento é porque assim é a realidade do Continente. Dela é que José Revueltas alimenta uma ficção que, certamente, não foi escrita dentro de uma campânula de vidro mas é fruto dessa responsabilidade em relação ao próprio universo que - seja como militante da esquerda revolucionária, ideólogo do marxismo ou ficcionista - ele acredita imprescindível para servir a seu povo.
          O que não o fará abdicar de se deter generosamente, apaixonadamente, profundamente, nos meandros e abismos da alma humana.

domingo, 9 de maio de 1993

Triste vaticínio

           Há vinte anos atrás era publicado em Buenos Aires Dormir al sol de Adolfo Bioy Casares, exatamente quarenta anos depois de seu primeiro romance Luis Greve muerto.
 
           Nascido em 1914, o ficcionista é considerado um artífice da literatura fantástica argentina que, partindo de um tom metafísico, evoluiu para uma visão cada vez mais humorística e irônica da realidade onde o surpreendente e o sobrenatural atuam como um elemento a mais da vida cotidiana.
 
           Tal apreciação com que o Diccionario de autores iberoamericanos dirigido por Pedro Shimose sintetiza a obra do romancista argentino se mostra exemplificada em Dormir al sol.
 
           Trata-se de uma longa narrativa  dividida em duas partes perfeitamente desiguais. A primeira, feita por Lucio Bordenave é a história de pequenos nadas cujos significados são por ele interpretados de forma a constituir uma ambigüidade. Ambigüidade que, num crescendo alcançará as suas últimas palavras sem que a ela se acrescentem outros elementos passíveis de esclarecê-la. São duzentas e vinte e duas páginas em que o simples cotidiano de um casal se vê dissolvido diante da ausência da mulher.

           Com a sua simples e corriqueira vida de relojoeiro de bairro, girando exclusivamente em torno de sua bela mulher, de repente é dela privado quando permite a sua internação numa estranha clínica para doentes mentais.Ao ser “liberada” após o tratamento, o cotidiano se refaz mas, então, é o próprio narrador que se vê internado.De seu quarto clausurado, sem possibilidade de se comunicar com o exterior e às escondidas, ele tenta pedir ajuda a Felix Ramos, velho conhecido de infância.Sua história se interrompe e a segunda parte do livro - menos de cinco páginas - é constituído pelas palavras de seu destinatário.
 
           No relato de Lucio Bordenave à falsa compreensão de palavras ou gestos, ou simples e habituais mal-entendidos do trato familiar se contaminam de algo inexplicavelmente indefinido ao qual se opõem fatos que se afastam dos usualmente estabelecidos.

           As fronteiras entre o real e o imaginário aparecem difusas nessa visão de mundo deslocada que, sem dúvida, comanda cada ação do narrador. E, assim, ele é presa fácil da organização que no melhor estilo da ficção científica põe em prática métodos pouco ortodoxos de tratamento e cura de desajustes mentais.
          Antes de ser submetido ao "tratamento", Lucio Bodenave interrompe a narrativa deixando-a inconclusa. Suas últimas palavras que informam sobre a situação em que se encontra oferecem multiplas leituras. A que nega a esperança de voltar a ver sua mulher como era antes do tratamento e da certa impossibilidade de sair da clínica.

          A seu silêncio segue-se a voz de Felix Ramos que muito brevemente esclarece como recebeu o maço de papel assinado por Lucio Bordenave e informa sobre fatos para ele sem importância mas que oferecem a conclusão irreversível e sem dúvida feliz, se não forem considerados os métodos empregados - para a nova vida de Lucio Bordenave e sua mulher.
 
          Felix Ramos ignora o alcance de suas palavras, um típico narrador que sabe menos sobre aquilo que está contando do que o leitor.
 
          Lucio Bordenave, por sua vez, narra o que lhe acontece e o que pensa então. Propicia ao leitor um conhecimento único e limitado que, no entanto, se amplia a partir das sugestões que emergem da ingenuidade do relato. Daí ser o leitor, aquele que finalmente possui maiores condições de entender o que se passa. E de usufruir do humor que se desprende da narrativa. O humor que irá definir tanto o pequeno mundo de subúrbio onde se inscreve o drama de Lucio Bordenave como esse terrível mundo de experiências científicas que se servem de seres humanos para atingir bons ou maus objetivos.

         Mescla tragicômica feita num tempo em que a ficção científica descrevia o inverossímil. Mas, o tempo fez de Dormir al sol mais do que uma fantasiosa história, um triste vaticínio.

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domingo, 2 de maio de 1993

Uma farpa apenas


     Em epígrafe, palavras de Simone Weil anulando-se diante da perfeição das coisas. Depois, numerados, oitenta e cinco poemas de Maria Elisa Carpi.

     
São poemas de alguém que se contempla. Voz que não interroga ou se interroga mas decreta verdades que, sem dúvida, são lapidarmente verdadeiras. Enoveladas em significados que se prendem aos destinos do Homem, mas que estão libertas de rotas já traçadas.

    
Uma verdade amadurecida pela mulher que, ultrapassando o momento egocêntrico das descobertas, percebe um sentido inusual no encontro com o homem e para o ato de parir. E, madura, pode mensurar e aceitar uma entrega que sabe imperfeita, como sabe, também, que ela é um ser que sempre estará livre, em busca do “mar alto”.
 
      Nesse livro que acaba de publicar, Vidência e acaso (Movimento, Porto Alegre, 1992), Maria Elisa Carpi mergulha no mistério que rege o caminhar dos homens e se encarcera na dialética que o título da obra define. Como que ignora a reles condição do cotidiano, embora dele não esteja a salvo.
E no poema cinco há uma inesperada assunção do mundo dos homens, moldados na rigidez das castas. São versos do nós, exceção em poemas feitos de metáforas e de signos, que surge ligada ao que, inegavelmente, reina num grupo social incapaz de conhecer a própria alienação. As palavras que o constroem são plenas de uma contundente ironia, expressa, já no primeiro verso: Ai que seria de nós sem os pobres. Depois, aflorando, a distorção dos excessos - e as roupas e a comida – a  sintetizar o pensamento dessa conhecida velha classe social para  finalizá-lo, na repetição do primeiro verso: Ave dentro da moita, água dentro / da pedra, coração dentro dos ossos, / ai que seria de nós sem os pobres! 
     
 
      Uma insistência que dirime qualquer dúvida sobre a intenção do poema que, em meio aos demais sempre voltados para o âmago das coisas, é um lampejo insinuado de outro olhar. Aquele que traz a farpa de uma crítica e, nela, a certeza de que Maria Elisa Carpi está atenta a seu tempo e a seu espaço.