Eu, o Supremo Ditador da República ordeno que ao acontecer a minha
morte, meu cadáver seja decapitado; a cabeça posta num poste por três dias na
Praça da República onde o povo será convocado pelo bater dos sinos. Todos os
meus servidores civis e militares serão condenados à forca. Seus cadáveres
serão enterrados em potreiros fora dos muros da cidade sem cruz nem marca que
lembre seus nomes. No fim de tal prazo, mando que meus restos sejam queimados e
as cinzas lançadas no rio. Augusto Roa Bastos
Em 1974, no Continente em
que vários países viviam sob a ditadura, Augusto Roa Bastos publicava Eu o supremo construído ao redor da
figura de Dr. Gaspar Rodriguez Francia que de 1816 a 1840 governou o Paraguai.
Reinou, diz Marcel Niedergang no seu Les
20 Amériques Latines (Paris, Seuil, 1969) ao falar dele como um estranho
homem cujas estranhas leis, baseadas em textos europeus, eram cegamente
cumpridas no país bloqueado que era o Paraguai de então, território de onde
ninguém saía e onde ninguém entrava.
Ele próprio, que se
auto-intitulava Ditador, aí vivia clausurado e escondido. Multidões de guardas
o protegiam e, no fim de seus dias, medroso, ele somente se atrevia a passar
pelas ruas de Assunção após elas se tornarem desertas diante do anúncio de sua
passagem.
O romance de Augusto Roa
Bastos se inicia com um escrito anônimo pregado na porta da Catedral de
Assunção. Expressa a vontade de Gaspar Rodriguez Francia em relação a seus
despojos mortais e ao destino dos funcionários da República.
Com todos os inimigos presos
ou enterrados, com o país inteiro vigiado, a presença do pasquim ao clarear do
dia afixado em lugar público, não somente é motivo de um incomensurável espanto
por parte do Ditador, como origem de inacreditáveis ordens: rastrear a letra do pasquim em todos os
expedientes. Mais os de acordos, desacordos, contra-acordos. Comunicações
internacionais. Tratados. Letras promissórias. Todas as faturas dos comerciantes
portugueses-brasileiros, uruguaios. A papelada da sisa, dízimo, alcavala.
Imposto. Arquivo. Vendas. Registro de importação e exportação. Guias de
embarque remetido, recebido. Correspondência total dos funcionários do mais
baixo ao mais alto escalão. Código de espiões, agentes dos diferentes serviços
de inteligência. Tudo. O mais mísero pedaço de papel escrito. Ou seja, umas
quinhentas mil folhas devem ser examinadas por 7234 escrivães que, trabalhando
por turnos, darão conta do trabalho em 25 anos. Situação que é sabiamente
contornada pela Ditador ao ordenar que o pasquim seja picado em tantos pedaços
e pedacinhos que possam ser distribuídos entre os que irão examinar a papelama.
Daí advirá também a vantagem do texto se tornar ilegível no seu total e,
portanto, desconhecido de todos.
E, assim, escudado no
segredo (ou na mentira) o Ditador se acredita seguro. O poder dos governantes está fundado na ignorância, na domesticada
mansidão do povo. O poder tem por base a fraqueza. Esta base é firme porque sua
maior segurança está em que o povo
seja fraco, argumenta num dos longos diálogos com o seu secretário
Policarpo Patiño.
Interlocutor submisso, ele,
eventualmente, recebe a palavra e ajuda a completar esse imenso discurso que o
velho e decrépito Gaspar Rodriguez Francia lhe dirige embora lhe dedicando o
seu soberano desprezo.
Um desprezo que, aliás, o
Supremo Ditador da República dedica a todos que o rodeiam e que são os que lhe
obedecem. Apenas dele emanam as leis e apenas dele, a autoridade para executá-las.
Gaspar Rodriguez Francia
ordena o que quer e o que lhe sugerem as leituras dos autores franceses que só
ele possui e que só ele pode ler no país.Perfeitamente convicto de ser o
Supremo, em certo momento irá perguntar a Policarpo Patiño: Não achas que de mim se poderia fazer uma fabulosa história?
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