sexta-feira, 14 de agosto de 1992

Eu, o supremo


Eu, o Supremo Ditador da República ordeno que ao acontecer a minha morte, meu cadáver seja decapitado; a cabeça posta num poste por três dias na Praça da República onde o povo será convocado pelo bater dos sinos. Todos os meus servidores civis e militares serão condenados à forca. Seus cadáveres serão enterrados em potreiros fora dos muros da cidade sem cruz nem marca que lembre seus nomes. No fim de tal prazo, mando que meus restos sejam queimados e as cinzas lançadas no rio. Augusto Roa Bastos


Em 1974, no Continente em que vários países viviam sob a ditadura, Augusto Roa Bastos publicava Eu o supremo construído ao redor da figura de Dr. Gaspar Rodriguez Francia que de 1816 a 1840 governou o Paraguai. Reinou, diz Marcel Niedergang no seu Les 20 Amériques Latines (Paris, Seuil, 1969) ao falar dele como um estranho homem cujas estranhas leis, baseadas em textos europeus, eram cegamente cumpridas no país bloqueado que era o Paraguai de então, território de onde ninguém saía e onde ninguém entrava.

Ele próprio, que se auto-intitulava Ditador, aí vivia clausurado e escondido. Multidões de guardas o protegiam e, no fim de seus dias, medroso, ele somente se atrevia a passar pelas ruas de Assunção após elas se tornarem desertas diante do anúncio de sua passagem.

O romance de Augusto Roa Bastos se inicia com um escrito anônimo pregado na porta da Catedral de Assunção. Expressa a vontade de Gaspar Rodriguez Francia em relação a seus despojos mortais e ao destino dos funcionários da República.

Com todos os inimigos presos ou enterrados, com o país inteiro vigiado, a presença do pasquim ao clarear do dia afixado em lugar público, não somente é motivo de um incomensurável espanto por parte do Ditador, como origem de inacreditáveis ordens: rastrear a letra do pasquim em todos os expedientes. Mais os de acordos, desacordos, contra-acordos. Comunicações internacionais. Tratados. Letras promissórias. Todas as faturas dos comerciantes portugueses-brasileiros, uruguaios. A papelada da sisa, dízimo, alcavala. Imposto. Arquivo. Vendas. Registro de importação e exportação. Guias de embarque remetido, recebido. Correspondência total dos funcionários do mais baixo ao mais alto escalão. Código de espiões, agentes dos diferentes serviços de inteligência. Tudo. O mais mísero pedaço de papel escrito. Ou seja, umas quinhentas mil folhas devem ser examinadas por 7234 escrivães que, trabalhando por turnos, darão conta do trabalho em 25 anos. Situação que é sabiamente contornada pela Ditador ao ordenar que o pasquim seja picado em tantos pedaços e pedacinhos que possam ser distribuídos entre os que irão examinar a papelama. Daí advirá também a vantagem do texto se tornar ilegível no seu total e, portanto, desconhecido de todos.

E, assim, escudado no segredo (ou na mentira) o Ditador se acredita seguro. O poder dos governantes está fundado na ignorância, na domesticada mansidão do povo. O poder tem por base a fraqueza. Esta base é firme porque sua maior segurança está em que o povo seja fraco, argumenta num dos longos diálogos com o seu secretário Policarpo Patiño.

Interlocutor submisso, ele, eventualmente, recebe a palavra e ajuda a completar esse imenso discurso que o velho e decrépito Gaspar Rodriguez Francia lhe dirige embora lhe dedicando o seu soberano desprezo.

Um desprezo que, aliás, o Supremo Ditador da República dedica a todos que o rodeiam e que são os que lhe obedecem. Apenas dele emanam as leis e apenas dele, a autoridade para executá-las.

Gaspar Rodriguez Francia ordena o que quer e o que lhe sugerem as leituras dos autores franceses que só ele possui e que só ele pode ler no país.Perfeitamente convicto de ser o Supremo, em certo momento irá perguntar a Policarpo Patiño: Não achas que de mim se poderia fazer uma fabulosa história?

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