domingo, 2 de agosto de 1992

A colheita dos dias

                         Fechando os olhos, apertando bem as pálpebras eu partia para outros mundos.
 
          Jogo de ninguém sabido, inventado no escuro do porão em horas de castigo e da infância medrosa, levado para a vida. E a vida que lhe foi dada encerrou-se na proteção que lhe deram e naquela que ela buscou, recusado olhar o seu mundo de frente.
 
          Leticia. Enjaulada entre o mundo do pai e o do marido, persegue uma liberdade que nem sabe que lhe é devida e que jamais poderá possuir.
 
          O mundo do pai, ela deixa para trás ao atirar o buquê da noiva na igreja e partir pelo braço do noivo. Nesse mundo se misturavam um exacerbado rigor, as palavras duras de um idioma que não era o seu, os castigos no porão e as palavras gritadas no rádio que adentrava na casa, vindo do outro lado do mar: as palavras do homem louco, repetidas no escuro da sala na língua atravessada que era a de seus antepassados.

          E o mundo no qual ela ingressa  lhe ata as mãos para o trabalho e não a deixa se ocupar dos filhos: não devia engomar as camisas do marido para não deixar as negras abusadas, negligentes no serviço. Não devia brincar com os filhos porque isso tirava a única serventia dos filhos dos agregados.
 
          Encerrada no viver fictício que lhe foi preparado, entendeu apenas as perdas sucessivas e, sozinha diante dos dias que lhe restavam, somente lhe restou submeter-se, outra vez, à vontade alheia.

          Para um interlocutor que não pode responder, Leticia refaz esse caminho. É’ sua a voz de A colheita dos dias que a Movimento de Porto Alegre acaba de lançar.
 
          Segundo livro de Valesca de Assis - o primeiro, A valsa da Medusa, foi publicado em 1990 também pela Movimento - em breves páginas não apenas reconstrói um angustiante universo feminino, feito só de fracassos como esse desencontro com o qual deve se enfrentar a personagem Leticia. Oriunda de uma família germânica, o casamento a introduz numa família de estancieiros que a acolheram com a vaga simpatia que os nobres dispensam aos ligeiramente inferiores.
 
          No monólogo, em que fatos de um passado recente se alternam com outros situados em vários momentos de um passado remoto, sobrepõe-se essa inércia de Letícia diante das circunstâncias e das situações que fazem a sua vida se diluir em ausências. Ao recordá-los, ingenuamente, faz também constar na sua história, os motivos que regem a sociedade em que viveu. Aparecem com rápidas centelhas que se desprendem da história individual mas com suficiente força para esboçar, no registro de rituais e preconceitos, o quadro social de uma sociedade conservadora e classista cujos valores não são suficientes para impedir a sua desagregação.

          Letícia não cabia no mundo de ordem preconizada pelo germanismo paterno; tampouco naquele do marido que não lhe permitia viver. Fechou os olhos para não ver. Mas nem por isso escapou da infelicidade que, então lhe coube: conformar-se com as leis ditadas pelos homens.

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