domingo, 23 de agosto de 1992

A época das cores

          O uso do vermelho foi estabelecido e todos os federais deviam portar a divisa vermelha: os homens, usando um laço na botoeira, as mulheres, fita no cabelo. Juan Manuel Rosas, o ditador argentino, assim o determinara. Então, seus adeptos usavam o vermelho nas roupas, nos arreios dos cavalos, até na fachada das casas. Os que a seu governo se opunham, os unitários, usariam o azul se isso lhes fosse permitido. Assim, ou se mostravam sem a “divisa federal”, enfrentando disso as conseqüências, ou se abstinham de sair de casa ou usavam o vermelho o mais dissimuladamente possível.

          Em Amalia, um dos primeiros romances latino-americanos que é, sobretudo, a crônica dessa ditadura de Juan Manuel Rosas, várias situações vividas pelos personagens giram em torno da simbologia vermelho/azul.
 
          O azul, cor dos opositores é usado em ambientes fechados. No quarto de Amalia, minuciosamente descrito, os tons pálidos de azul se harmonizam com o verde e o branco.
 
          O vermelho, a cor do poder é exibida em todos os momentos pelos que ajudam a manter a ditadura, dela usufruindo ou pelos que a temem.
 
          José Mármol, nesse seu único romance, escreveu um livro de ficção que ele rotulou como “romance histórico americano” e que se alimenta dos fatos e das idéias da época em que viveu.
 
          Ferrenho opositor de Juan Manuel Rosas, no quadro da ditadura cujos crimes profusamente arrolou, não faltaram, também, os gestos e expressões menos cruentos mas nem por isso menos constantes e temíveis.
 
          Na ânsia de um domínio total sobre seu povo, a insegurança do ditador precisa da evidência de uma lealdade que se deve mostrar ostens Os personagens de Amalia que usam o vermelho, pertencem aqueles desclassificados aos quais o poder de Rosas concedeu um privilegiado lugar. Entre os executores das ordens do ditador, um veste “enorme casaco vermelho”;outro, tinha franjas vermelhas nas calças, vermelho o colete e a gravata; um terceiro, usava um chiripá vermelho. Exuberantemente, exibindo as insígnias da federação, as mulheres rústicas que se amontoavam, com os pés embarrados, na ante-sala da poderosa cunhada do ditador.

      que eram unit    Os “unitários” que se opõem a Rosas e aos quais, sob graves penas, não lhes era permitida a expressão, usam de subterfúgios para se eximir do terrível fardo que representa esse mostrar-se publicamente adepto daquele que, no íntimo, repudiam.
Florencia, jovem unitária, ao tratar com a cunhada do ditador, traz quase escondido sob a asa do chapéu, um pequeno laço cor de rosa. Amalia, sempre por livre vontade, encerrada em sua própria casa, ao se mostrar em público pela primeira vez, mal deixa perceber no toucado a ponta de uma fita vermelha.
Impostos pelo ditador, “o restaurador das liberdades argentinas”, esses “adornos oficiais” diziam dos ários ou federais e condenados a vexames os que não os usassem.

 
          Quando o jovem estudante foi interpelado pelo porquê da ausência das “insígnias” nos arreios do seu cavalo e respondeu que o animal sendo um bom federal não precisava usá-las, foi rebenqueado. E, quando as jovens unitárias saiam da igreja depois da missa sem o laço vermelho no cabelo, eram agarradas a força para que lhes fosse grudada com pixe a insígnia que se recusavam a usar.


Amalia, romance do Continente, foi escrito em 1851, em Montevidéu, onde José Mármol estava exilado.

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