domingo, 30 de agosto de 1992

Essa figura

           Essa figura do ditador latino-americano tem resultado extremamente atrativa para o ficcionista do Continente. Com intervalo de uns poucos meses, entre 1974 e 1975 foram publicados Yo el supremo, El otoño del patriarca e Recurso del método. Próximos no tempo embora criados em espaços distantes entre si Paraguai, Colômbia e Cuba eles possuem em comum, além do tema, esse tom de burla que, sem dúvida, é perfeitamente adequado a qualquer ditador e, em especial, ao ditador latino-americano.    
  


           Primer Magistrado, criação de Alejo Carpentier, é um dos “tiranos ilustrados”, cheios de apego pela cultura francesa (em época mais recente, atraídos pelas consideradas maravilhas do hemisfério norte) que, no dizer do autor de Recurso del método é igual a muitos que tanto mais inverossímeis parecem quanto mais se ajustam a uma rigorosa verdade.

           Num país, um espaço possível em qualquer parte do Continente, o Primer Magistrado é um homem implacável que não hesita em condenar à morte seus adversários políticos e que presencia, sem emoções, o massacre de seus cidadãos quando se trata de sufocar revoltas. Nesse país de medrosos analfabetos, ele manipula as eleições, paga jornalistas estrangeiros para fazerem um retrato ideal do país que governa, festeja seus “êxitos governamentais” com suntuosas festas, comanda uma coleta de dinheiro para ajudar as cidades francesas destruídas pela guerra cuja arrecadação nunca chegará a seu destino, bebe abundantemente às escondidas, alardeando em público seu feitio abstêmio e de tudo o que acontece no país tem controle através de seus homens do Escutar e do Olhar.

           Todas as manhãs, ouve de seus agentes, algumas vezes, embrabecendo, outras vezes se divertindo os inconfessados negócios que às suas costas fazem os amigos: o negócio da ponte construída sobre um rio ignorado pelos mapas; o negócio da Biblioteca Municipal sem livros; o negócio das sementeiras normandas que nunca atravessaram o oceano; o negócio dos brinquedos e dos alfabetos para jardim de infância que não existiam; e um interminável rol de outros mais escusos.

           E ele, Primer Magistrado que não era - nem havia sido nunca - homem de negócios pequenos possuía aquelas Empresas fora da Lei que sob múltipla identidade de siglas, consórcios, razões comerciais, sociedades sempre anônimas jamais sofriam perdas nem danos.

           Porque seu poder espúrio, obtido pelo voto de um povo mantido na ignorância, incapaz de discernir seus enganos e mentiras como seu total desprezo por esse mesmo povo que ele governa são imensos.

           O Primer Magistrado desse país Continente é nele Senhor de Pães e de Peixes, Patriarca das Messes e Rebanhos, Senhor dos Gelos e Senhor dos Mananciais, Senhor do Fluido e Senhor da Roda da Fortuna.

           Um dia, puseram uma bomba no seu palácio de Ditador. Explodiu perto dele sem molestá-lo. Só morreu mais tarde, quando uma das Revoluções o fez fugir para Paris. Morto, teve a seu lado uma vela acesa e uma irmã de caridade para rezar.

           Corriam os primeiros anos deste século.

domingo, 23 de agosto de 1992

A época das cores

          O uso do vermelho foi estabelecido e todos os federais deviam portar a divisa vermelha: os homens, usando um laço na botoeira, as mulheres, fita no cabelo. Juan Manuel Rosas, o ditador argentino, assim o determinara. Então, seus adeptos usavam o vermelho nas roupas, nos arreios dos cavalos, até na fachada das casas. Os que a seu governo se opunham, os unitários, usariam o azul se isso lhes fosse permitido. Assim, ou se mostravam sem a “divisa federal”, enfrentando disso as conseqüências, ou se abstinham de sair de casa ou usavam o vermelho o mais dissimuladamente possível.

          Em Amalia, um dos primeiros romances latino-americanos que é, sobretudo, a crônica dessa ditadura de Juan Manuel Rosas, várias situações vividas pelos personagens giram em torno da simbologia vermelho/azul.
 
          O azul, cor dos opositores é usado em ambientes fechados. No quarto de Amalia, minuciosamente descrito, os tons pálidos de azul se harmonizam com o verde e o branco.
 
          O vermelho, a cor do poder é exibida em todos os momentos pelos que ajudam a manter a ditadura, dela usufruindo ou pelos que a temem.
 
          José Mármol, nesse seu único romance, escreveu um livro de ficção que ele rotulou como “romance histórico americano” e que se alimenta dos fatos e das idéias da época em que viveu.
 
          Ferrenho opositor de Juan Manuel Rosas, no quadro da ditadura cujos crimes profusamente arrolou, não faltaram, também, os gestos e expressões menos cruentos mas nem por isso menos constantes e temíveis.
 
          Na ânsia de um domínio total sobre seu povo, a insegurança do ditador precisa da evidência de uma lealdade que se deve mostrar ostens Os personagens de Amalia que usam o vermelho, pertencem aqueles desclassificados aos quais o poder de Rosas concedeu um privilegiado lugar. Entre os executores das ordens do ditador, um veste “enorme casaco vermelho”;outro, tinha franjas vermelhas nas calças, vermelho o colete e a gravata; um terceiro, usava um chiripá vermelho. Exuberantemente, exibindo as insígnias da federação, as mulheres rústicas que se amontoavam, com os pés embarrados, na ante-sala da poderosa cunhada do ditador.

      que eram unit    Os “unitários” que se opõem a Rosas e aos quais, sob graves penas, não lhes era permitida a expressão, usam de subterfúgios para se eximir do terrível fardo que representa esse mostrar-se publicamente adepto daquele que, no íntimo, repudiam.
Florencia, jovem unitária, ao tratar com a cunhada do ditador, traz quase escondido sob a asa do chapéu, um pequeno laço cor de rosa. Amalia, sempre por livre vontade, encerrada em sua própria casa, ao se mostrar em público pela primeira vez, mal deixa perceber no toucado a ponta de uma fita vermelha.
Impostos pelo ditador, “o restaurador das liberdades argentinas”, esses “adornos oficiais” diziam dos ários ou federais e condenados a vexames os que não os usassem.

 
          Quando o jovem estudante foi interpelado pelo porquê da ausência das “insígnias” nos arreios do seu cavalo e respondeu que o animal sendo um bom federal não precisava usá-las, foi rebenqueado. E, quando as jovens unitárias saiam da igreja depois da missa sem o laço vermelho no cabelo, eram agarradas a força para que lhes fosse grudada com pixe a insígnia que se recusavam a usar.


Amalia, romance do Continente, foi escrito em 1851, em Montevidéu, onde José Mármol estava exilado.

sexta-feira, 14 de agosto de 1992

Eu, o supremo


Eu, o Supremo Ditador da República ordeno que ao acontecer a minha morte, meu cadáver seja decapitado; a cabeça posta num poste por três dias na Praça da República onde o povo será convocado pelo bater dos sinos. Todos os meus servidores civis e militares serão condenados à forca. Seus cadáveres serão enterrados em potreiros fora dos muros da cidade sem cruz nem marca que lembre seus nomes. No fim de tal prazo, mando que meus restos sejam queimados e as cinzas lançadas no rio. Augusto Roa Bastos


Em 1974, no Continente em que vários países viviam sob a ditadura, Augusto Roa Bastos publicava Eu o supremo construído ao redor da figura de Dr. Gaspar Rodriguez Francia que de 1816 a 1840 governou o Paraguai. Reinou, diz Marcel Niedergang no seu Les 20 Amériques Latines (Paris, Seuil, 1969) ao falar dele como um estranho homem cujas estranhas leis, baseadas em textos europeus, eram cegamente cumpridas no país bloqueado que era o Paraguai de então, território de onde ninguém saía e onde ninguém entrava.

Ele próprio, que se auto-intitulava Ditador, aí vivia clausurado e escondido. Multidões de guardas o protegiam e, no fim de seus dias, medroso, ele somente se atrevia a passar pelas ruas de Assunção após elas se tornarem desertas diante do anúncio de sua passagem.

O romance de Augusto Roa Bastos se inicia com um escrito anônimo pregado na porta da Catedral de Assunção. Expressa a vontade de Gaspar Rodriguez Francia em relação a seus despojos mortais e ao destino dos funcionários da República.

Com todos os inimigos presos ou enterrados, com o país inteiro vigiado, a presença do pasquim ao clarear do dia afixado em lugar público, não somente é motivo de um incomensurável espanto por parte do Ditador, como origem de inacreditáveis ordens: rastrear a letra do pasquim em todos os expedientes. Mais os de acordos, desacordos, contra-acordos. Comunicações internacionais. Tratados. Letras promissórias. Todas as faturas dos comerciantes portugueses-brasileiros, uruguaios. A papelada da sisa, dízimo, alcavala. Imposto. Arquivo. Vendas. Registro de importação e exportação. Guias de embarque remetido, recebido. Correspondência total dos funcionários do mais baixo ao mais alto escalão. Código de espiões, agentes dos diferentes serviços de inteligência. Tudo. O mais mísero pedaço de papel escrito. Ou seja, umas quinhentas mil folhas devem ser examinadas por 7234 escrivães que, trabalhando por turnos, darão conta do trabalho em 25 anos. Situação que é sabiamente contornada pela Ditador ao ordenar que o pasquim seja picado em tantos pedaços e pedacinhos que possam ser distribuídos entre os que irão examinar a papelama. Daí advirá também a vantagem do texto se tornar ilegível no seu total e, portanto, desconhecido de todos.

E, assim, escudado no segredo (ou na mentira) o Ditador se acredita seguro. O poder dos governantes está fundado na ignorância, na domesticada mansidão do povo. O poder tem por base a fraqueza. Esta base é firme porque sua maior segurança está em que o povo seja fraco, argumenta num dos longos diálogos com o seu secretário Policarpo Patiño.

Interlocutor submisso, ele, eventualmente, recebe a palavra e ajuda a completar esse imenso discurso que o velho e decrépito Gaspar Rodriguez Francia lhe dirige embora lhe dedicando o seu soberano desprezo.

Um desprezo que, aliás, o Supremo Ditador da República dedica a todos que o rodeiam e que são os que lhe obedecem. Apenas dele emanam as leis e apenas dele, a autoridade para executá-las.

Gaspar Rodriguez Francia ordena o que quer e o que lhe sugerem as leituras dos autores franceses que só ele possui e que só ele pode ler no país.Perfeitamente convicto de ser o Supremo, em certo momento irá perguntar a Policarpo Patiño: Não achas que de mim se poderia fazer uma fabulosa história?

domingo, 9 de agosto de 1992

Fronteiras intransponíveis


Em 1933, Carlos Droguett publicava em Santiago do Chile, seu primeiro conto, “El señor Videla”. Sucederam-se os artigos de jornal, contos, peças de teatro, romances. Muitos deles, premiados no seu país e na Espanha. Outros tantos, traduzidos, especialmente na França onde o crítico e escritor Francis de Miomandre, entusiasta das letras hispânicas, já em 1952, comentava e traduzia alguns de seus textos.

Em 1977, a Maspero de Paris publicou Eloy, o romance de Carlos Droguett mais conhecido e traduzido, na coleção Voix (vozes oprimidas e dissonantes) e, em 1981, a Denoël publicou Patas de perro cuja tradução, belíssima e impecável, foi feita por Jean-Marc Pelorson, professor da Universidade de Poitiers.

E, é nessa Universidade, ao abrigar um dos mais atuantes Centros de pesquisa sobre a América Latina da França, que estão surgindo, hoje, importantes trabalhos sobre a obra do escritor chileno. 
Além dos sérios estudos sobre o texto droguetiano, sem dúvida um universo inesgotável pela sua riqueza e profundidade, esses trabalhos se constituem um valioso material de consulta na medida em que fornecem informações que muitas vezes não são de fácil acesso e que passam, então, a formar uma base imprescindível para novos trabalhos. Sobretudo no que diz respeito à bibliografia porque as dimensões do Continente e, ainda mais, a precariedade de suas Instituições culturais impedem, quase sempre, não apenas o acesso ao material bibliográfico necessário, como às informações precisas sobre a sua existência.

Assim, a tese de Regine Gay, “Le mythe de Christ dans l’oeuvre de Carlos Droguett”, elaborada sob a orientação do professor Alain Sicard, um dos mais reputados estudiosos da Literatura latino-americana na França. É’ um estudo amplo, que abrange diferentes aspectos da obra do romancista chileno (os vários elementos míticos, os símbolos e os ritos e sua correspondência com o gênero apocalíptico, a escrita, o espaço, o tempo e a história do mito) e que se detém na figura de Cristo. Na ficção do romancista chileno, figura fascinante que a autora estuda a partir de determinada trajetória: do Deus bíblico ao Cristo do Evangelho para então relacionar Cristo com o homem do Continente: o que está mergulhado no medo, no silêncio, na marginalização, no sofrimento físico e moral.

Além de se deter e exemplificar abundantemente aspectos do estilo de Carlos Droguett, a tese de Regine Gay se torna valiosa ao relacionar grande parte dos artigos de Carlos Droguett espalhados pelos jornais do Chile e um grande número de trabalhos escritos sobre ele no período compreendido entre 1938 e 1978. São informações imprescindíveis para os que desejam estudar a obra do escritor chileno mas, também de grande utilidade para os que desejam se aprofundar na Literatura latino-americana contemporânea. E, que deixam bem claro que efetuar tais estudos é tarefa para os privilegiados ou para os que podem usufruir dos privilégios do Primeiro Mundo cujas tradições e recursos financeiros, aplicados nas áreas humanísticas, permitem não somente possuir o material bibliográfico necessário mas os meios para colocá-lo à disposição dos pesquisadores.

Porque, tanto quanto o aspecto técnico-científico, o aspecto cultural - mercê da falta de informações e da ausência de material bibliográfico sobre os demais países, América Latina inclusive, - deixa evidente que as fronteiras que separam o Primeiro Mundo dos demais continuam intransponíveis.

domingo, 2 de agosto de 1992

A colheita dos dias

                         Fechando os olhos, apertando bem as pálpebras eu partia para outros mundos.
 
          Jogo de ninguém sabido, inventado no escuro do porão em horas de castigo e da infância medrosa, levado para a vida. E a vida que lhe foi dada encerrou-se na proteção que lhe deram e naquela que ela buscou, recusado olhar o seu mundo de frente.
 
          Leticia. Enjaulada entre o mundo do pai e o do marido, persegue uma liberdade que nem sabe que lhe é devida e que jamais poderá possuir.
 
          O mundo do pai, ela deixa para trás ao atirar o buquê da noiva na igreja e partir pelo braço do noivo. Nesse mundo se misturavam um exacerbado rigor, as palavras duras de um idioma que não era o seu, os castigos no porão e as palavras gritadas no rádio que adentrava na casa, vindo do outro lado do mar: as palavras do homem louco, repetidas no escuro da sala na língua atravessada que era a de seus antepassados.

          E o mundo no qual ela ingressa  lhe ata as mãos para o trabalho e não a deixa se ocupar dos filhos: não devia engomar as camisas do marido para não deixar as negras abusadas, negligentes no serviço. Não devia brincar com os filhos porque isso tirava a única serventia dos filhos dos agregados.
 
          Encerrada no viver fictício que lhe foi preparado, entendeu apenas as perdas sucessivas e, sozinha diante dos dias que lhe restavam, somente lhe restou submeter-se, outra vez, à vontade alheia.

          Para um interlocutor que não pode responder, Leticia refaz esse caminho. É’ sua a voz de A colheita dos dias que a Movimento de Porto Alegre acaba de lançar.
 
          Segundo livro de Valesca de Assis - o primeiro, A valsa da Medusa, foi publicado em 1990 também pela Movimento - em breves páginas não apenas reconstrói um angustiante universo feminino, feito só de fracassos como esse desencontro com o qual deve se enfrentar a personagem Leticia. Oriunda de uma família germânica, o casamento a introduz numa família de estancieiros que a acolheram com a vaga simpatia que os nobres dispensam aos ligeiramente inferiores.
 
          No monólogo, em que fatos de um passado recente se alternam com outros situados em vários momentos de um passado remoto, sobrepõe-se essa inércia de Letícia diante das circunstâncias e das situações que fazem a sua vida se diluir em ausências. Ao recordá-los, ingenuamente, faz também constar na sua história, os motivos que regem a sociedade em que viveu. Aparecem com rápidas centelhas que se desprendem da história individual mas com suficiente força para esboçar, no registro de rituais e preconceitos, o quadro social de uma sociedade conservadora e classista cujos valores não são suficientes para impedir a sua desagregação.

          Letícia não cabia no mundo de ordem preconizada pelo germanismo paterno; tampouco naquele do marido que não lhe permitia viver. Fechou os olhos para não ver. Mas nem por isso escapou da infelicidade que, então lhe coube: conformar-se com as leis ditadas pelos homens.