Criação literária calcada no
tipo social que vivia nos campos argentinos do século XIX, Martín Fierro é o
gaúcho altivo e valente que, num longo poema, conta a sua história. A história
de um homem que vivia feliz e que a “fatalidade” transforma num bandido.
Possuía um rancho, mulher e
filhos. Espontâneo e feliz - a comida não lhe faltava, tampouco o chimarrão -
Assim Martín Fierro se deixava viver.
Quando o juiz de paz aparece
na pulperia, onde ele estava cantando, para arrebanhar gente, os mais matreiros
fugiram. Não Martín Fierro. Acreditando nas palavras da autoridade, obedece e
parte para defender a fronteira do ataque dos índios.
Mas, essa sua passividade
ingênua de deixar-se persuadir e carregar o que possuía - seu cavalo e seus
arreios - se transforma, diante do que vai presenciando, em astuta passividade.
Deixa que o comandante lhe tome o belo cavalo mouro, recua diante da cólera do
major quando lhe fora reclamar o soldo.
Não perde, no entanto, a
lucidez para julgar aquilo que presencia: o uso de uma demagogia rasteira para
atrair os incautos e ignorantes, a falta de moral dos superiores que, em lugar
de defender a pátria, se ocupam em conseguir terras onde mandam trabalhar os
soldados que estão a serviço do governo; o desleixo com que é feito - sob
ameaças e maus tratos - o serviço militar obrigatório da fronteira: gaúchos
transformados, à força, em soldados que recebem treinamento de quem não conhece
o ofício e que são privados de roupas, cavalos, armas e do cigarro e da erva
para o chimarrão. E do soldo...
Entre a atitude passiva que
adotou para poder sobreviver e a compreensão de que é inaceitável viver em tais
condições, Martín Fierro não hesita em fugir.
Numa noite em que o juiz e o
comandante se divertem bebendo, ele abandona o forte da fronteira.
Transforma-se em desertor e, principalmente, no homem que havia conhecido o
mal.
Não, ainda, todo o que lhe
estava reservado. Ao voltar, encontra seu rancho convertido em tapera. A mulher
procurara proteção de outro homem, os filhos se haviam dispersado e seus bens
se haviam perdido. Ao retornar, desejava somente ter a vida de antes.
Encontrando o vazio, o sofrimento faz com que jure ser mais temível do que uma
fera.
Marginal porque vive sem
família, porque é gaudério e desertor, sua única saída é o horizonte aberto.
Num baile, provoca e mata um negro; noutra ocasião, provocado, reage e mata
novamente.
Assim, cada vez mais, é
obrigado a evitar a comunidade dos homens. Mas, ainda que assim o faça, não se
livra das perseguições e, para conservar a vida, torna a matar. Procura, então,
se afastar para sempre e busca a companhia dos “selvagens”. Antes porém, escuta
a história do sargento Cruz que é a mesma que a sua e juntos penetram no
território dos índios.
Sua história, então, se
interrompe. Mas espero que algum dia saberei deles algo certo, diz o
autor, José Hernández, quase nos últimos versos.
Nascido em 1834, a infância
passada no campo, entre lides campeiras e sua vocação de jornalista de temas
políticos o levaram a defender o gaúcho das leis de Sarmiento, presidente da
Argentina. E tão acerbas foram as acusações - abuso da autoridade, levas
forçadas de contingentes para a fronteira, injustiças de toda sorte - que o
jornal que fundara para defender suas idéias, teve a efêmera vida de um ano,
clausurado que foi por ordem do governo.
Então, veio o fracasso de
uma das insurreições contra Sarmiento e José Hernández, que dela tomara parte,
é obrigado a exilar-se no Brasil.
Viveu um ano em Santana do
Livramento e quando voltou para Buenos Aires, em 1872, publicou o poema que
viria a ser a obra prima da literatura argentina.
Em carta a dom José Zoilo
Miguens, pedindo sua atenção para o poema, José Hernández lembra o quanto o
amigo não ignora todos os abusos e todas
as desgraças de que é vítima essa classe deserdada.
Por ela, como jornalista e
como homem público que foi, ele lutou sempre e prolongou sua luta nos
magistrais versos, nos quais insiste em lembrar as misérias e maus tratos e
perseguições sofridas por Martín Fierro que nessa terra onde nasceu só serve para votar. Pois, na medida em que representa o que Sarmiento chama
de “barbarie” e que, na condição de Presidente da Argentina, ele quer
erradicar, ainda que a custa de crueldades, o ser gaúcho é um delito.
Como se delito não fosse
forçá-lo a abandonar a família e o trabalho para ir lutar na fronteira e matar
índios; como se delito não fosse roubá-lo do pouco que possui e castigá-lo
fisicamente e não pagar-lhe o soldo devido.
Curiosidades do Continente
nesse ano de 1872.

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