domingo, 5 de abril de 1992

Há cento e vinte anos atrás


Há cento e vinte anos atrás era publicado Martín Fierro em Buenos Aires.
Criação literária calcada no tipo social que vivia nos campos argentinos do século XIX, Martín Fierro é o gaúcho altivo e valente que, num longo poema, conta a sua história. A história de um homem que vivia feliz e que a “fatalidade” transforma num bandido.
Possuía um rancho, mulher e filhos. Espontâneo e feliz - a comida não lhe faltava, tampouco o chimarrão - Assim Martín Fierro se deixava viver.
Quando o juiz de paz aparece na pulperia, onde ele estava cantando, para arrebanhar gente, os mais matreiros fugiram. Não Martín Fierro. Acreditando nas palavras da autoridade, obedece e parte para defender a fronteira do ataque dos índios.
Mas, essa sua passividade ingênua de deixar-se persuadir e carregar o que possuía - seu cavalo e seus arreios - se transforma, diante do que vai presenciando, em astuta passividade. Deixa que o comandante lhe tome o belo cavalo mouro, recua diante da cólera do major quando lhe fora reclamar o soldo.
Não perde, no entanto, a lucidez para julgar aquilo que presencia: o uso de uma demagogia rasteira para atrair os incautos e ignorantes, a falta de moral dos superiores que, em lugar de defender a pátria, se ocupam em conseguir terras onde mandam trabalhar os soldados que estão a serviço do governo; o desleixo com que é feito - sob ameaças e maus tratos - o serviço militar obrigatório da fronteira: gaúchos transformados, à força, em soldados que recebem treinamento de quem não conhece o ofício e que são privados de roupas, cavalos, armas e do cigarro e da erva para o chimarrão. E do soldo...
Entre a atitude passiva que adotou para poder sobreviver e a compreensão de que é inaceitável viver em tais condições, Martín Fierro não hesita em fugir.
Numa noite em que o juiz e o comandante se divertem bebendo, ele abandona o forte da fronteira. Transforma-se em desertor e, principalmente, no homem que havia conhecido o mal.
Não, ainda, todo o que lhe estava reservado. Ao voltar, encontra seu rancho convertido em tapera. A mulher procurara proteção de outro homem, os filhos se haviam dispersado e seus bens se haviam perdido. Ao retornar, desejava somente ter a vida de antes. Encontrando o vazio, o sofrimento faz com que jure ser mais temível do que uma fera.
Marginal porque vive sem família, porque é gaudério e desertor, sua única saída é o horizonte aberto. Num baile, provoca e mata um negro; noutra ocasião, provocado, reage e mata novamente.
Assim, cada vez mais, é obrigado a evitar a comunidade dos homens. Mas, ainda que assim o faça, não se livra das perseguições e, para conservar a vida, torna a matar. Procura, então, se afastar para sempre e busca a companhia dos “selvagens”. Antes porém, escuta a história do sargento Cruz que é a mesma que a sua e juntos penetram no território dos índios.
Sua história, então, se interrompe. Mas espero que algum dia saberei deles algo certo, diz o autor, José Hernández, quase nos últimos versos.
Nascido em 1834, a infância passada no campo, entre lides campeiras e sua vocação de jornalista de temas políticos o levaram a defender o gaúcho das leis de Sarmiento, presidente da Argentina. E tão acerbas foram as acusações - abuso da autoridade, levas forçadas de contingentes para a fronteira, injustiças de toda sorte - que o jornal que fundara para defender suas idéias, teve a efêmera vida de um ano, clausurado que foi por ordem do governo.
Então, veio o fracasso de uma das insurreições contra Sarmiento e José Hernández, que dela tomara parte, é obrigado a exilar-se no Brasil.
Viveu um ano em Santana do Livramento e quando voltou para Buenos Aires, em 1872, publicou o poema que viria a ser a obra prima da literatura argentina.
Em carta a dom José Zoilo Miguens, pedindo sua atenção para o poema, José Hernández lembra o quanto o amigo não ignora todos os abusos e todas as desgraças de que é vítima essa classe deserdada.
Por ela, como jornalista e como homem público que foi, ele lutou sempre e prolongou sua luta nos magistrais versos, nos quais insiste em lembrar as misérias e maus tratos e perseguições sofridas por Martín Fierro que nessa terra onde nasceu só serve para votar. Pois, na medida em que representa o que Sarmiento chama de “barbarie” e que, na condição de Presidente da Argentina, ele quer erradicar, ainda que a custa de crueldades, o ser gaúcho é um delito.
Como se delito não fosse forçá-lo a abandonar a família e o trabalho para ir lutar na fronteira e matar índios; como se delito não fosse roubá-lo do pouco que possui e castigá-lo fisicamente e não pagar-lhe o soldo devido.
Curiosidades do Continente nesse ano de 1872.

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