domingo, 19 de abril de 1992

O diabo sabe por velho...


          Então, o segundo filho de Martin Fierro toma da guitarra. Dez anos haviam passado desde que o pai fora levado para defender a fronteira e a família ficara ao léu. Assim como o irmão, ficara ele a rolar entre estranhos até que uma tia o recolhera e cuidara.
          Diz o refrão, porém: o que é bom dura pouco. Logo ela morre e, logo vem o juiz esclarecendo que, por ele ser menor de idade, dos bens que lhe deixara a tia, ele, juiz, se ocuparia. Do menino, alguém se faria cargo.Assim, do gado e das ovelhas, tomou conta o juiz; do herdeiro, o velho Viscacha, nomeado tutor.
          Era ele um velho ladrão que vivia só de expedientes: cortava a crina das éguas alheias, carneava gado que não lhe pertencia e por onde quer que andasse sempre achava o que roubar. Falava pouco, mas quando a cachaça o deixava loquaz, punha-se a dar conselhos, cujo valor fazia repousar na própria experiência: o diabo sabe por diabo, porém mais sabe por velho.
          Pobre e sem trabalho fixo, seus conselhos refletem um universo em que impera a preocupação pela sobrevivência e em que, mais importante que a comida, é a possibilidade de obtê-la. Então, diz o velho Viscacha, nunca se deve parar onde haja cachorro magro e rumar sempre para onde tenha comida. Exemplifica o seu dizer mostrando o comportamento dos animais: as formigas nunca procuram um cesto vazio; nunca o burro esquece onde come. E, acrescenta: comer quieto é o que se deve e sem chamar a atenção para não perder o bocado.
          Também, em relação à sobrevivência, nesses campos desertos do século XIX, é a defesa pessoal. Para o velho Viscacha, o uso da faca é preciso e, principalmente, o cuidado em não deixar exposto o lado em que é usado. Ser prudente, mas se for preciso desembainhá-la, que ao sair, saia cortando.
          Ainda, aprendendo com os animais, aconselha o sedentarismo: Não troques nunca de ninho / Faz o que faz o ratinho / conserva-te no mesmo lugar / em que se iniciou tua existência / vaca que muda de querência / se atrasa na parição. Para atingir os fins desejados, recomenda a paciência: “não se apure quem deseje / fazer o que lhe aproveita / a vaca que mais rumina / é a que dá melhor leite.
          Verdadeira formiga para levar coisas para seu rancho (um rancho sem teto e de paredes caídas), onde ia enfurnando tudo o que obtivesse, tampouco esquece de aconselhar: os que não sabem guardar / são pobres embora trabalhem.
          Viúvo por conta própria - havia matado a mulher por que lhe servira mate frio - é reticente quanto ao casamento. Segundo ele, a mulher só pretende homem bonito e tem um coração frio como barriga de sapo o que o leva a concluir: se queres viver tranqüilo / solteiro deves ficar.
          Porque sempre são escusos os seus negócios (o couro da rês roubada lhe rende o cigarro, a cachaça e a erva mate), considera de muita utilidade a amizade com o poderoso e, imprescindível, o encolher-se diante do mais forte.
          Da sua visão egoísta do mundo, onde o outro é só passível de esperteza e de exploração, excepcionalmente, surge um conselho que a simplicidade rústica da linguagem não impede de se constituir um verdadeiro aforismo: De ninguém tenhas inveja / é muito triste invejar / quando vejas outro ganhando / a estorvá-lo não te metas / cada leitão na sua teta / é o modo de mamar.
          Enfrentando punições ou ludibriando a lei, o velho Viscacha tem, sempre, que se esforçar para sobreviver. No entanto, determina seus próprios limites.O juiz, porém, apenas necessita enunciar razões para ter o direito de se apoderar do alheio quando isso lhe resultar conveniente, pois a ninguém deve prestar contas.
          Então, na geografia do Continente, esses conselhos para “educar”refletem sempre, a sabedoria de quem não ignora pertencer a um mundo de ambigüidades em que leis severas para uns se tornam extremamente flexíveis para outros.
          Martin Fierro, de José Hernández, foi publicado em Buenos Aires, no ano de 1879.

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