No extremo sul do Brasil,
deixando ver, de suas janelas a igreja e suas torres, o casarão se ergue em
frente à praça. Nele, encerrada, Dona Camila aguarda a anulação de seu
casamento, solicitada pelo marido. É muito jovem, muito bela e na mesma noite
de núpcias confessara já ter sido amada antes.
Sem direito de sair à rua,
espera a decisão canônica na grande casa rica. A seu lado apenas Laurinda que a
cuidou desde menina.
Laurinda, gorda, cara
lustrosa, dentes alvos. Escrava. Imagem perfeita da dedicação, gira em torno de
sua senhora servindo-a com todos os cuidados. Assumindo ou submetendo-se a uma
função materna que, livre da rigidez da moral estabelecida, se desdobra: ela é
ama, confidente, mucama, conselheira, alcoviteira.É por ela que a senhora chama
- para vesti-la, para penteá-la, para ouvi-la e dirimir suas dúvidas, para
julgar de seus méritos feminis, para costurar-lhe o vestido que deseja. É ela
quem está presente na hora do choro e do riso. Para alegrar ou consolar, para
cuidar e proteger a senhora, segue-lhe os passos ou os precede querendo evitar
a tragédia
Personagem cuja função
romanesca direciona a narrativa de Manhã
transfigurada (Mercado Aberto, 1991). Suas são as palavras que conduzem os
atos de Camila no leito conjugal e fazem dela uma mulher condenável aos olhos
do marido. Também suas as que a afastam da prostração a que o castigo
vergonhoso a condenara. Obra sua, o vestido que deseja Camila para o que
imagina ser a sua entrega maior.
No entanto, é como se
Laurinda na dona apenas se refletisse. O coração lhe pesa quando a sente
triste. Seus olhos se umedecem de alegria quando a vê alegre. E se preocupa e
se acalma e se assusta e se amedronta diante de seus desvarios amorosos porque
negra e escrava era uma pessoa só do dia, só
entendendo as coisas claras e solares.E, nada mais claro para ela do que a
sua condição de serva, pessoa que não
pode nem pensar, e sim ser dócil aos
comandos.E prestimosa e cumpridora e dedicada e boa e sempre risonha,
Laurinda se encerra na perfeição luminosa que desdiz este ter nascido para
sombra de mulher branca. Sombra que a impede de mostrar-se inteira: quem
realmente é, a quem se entregara por amor, quando pudera ser feliz nesse
mundo/prisão que a proibiu de viver para si mesma.E faz dela, silhueta que se
recorta da escravidão (assim o quis seu criador Luiz Antonio de Assis Brasil?),
um inacabado, um magnífico e inesquecível personagem feminino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário