domingo, 2 de fevereiro de 1992

Sombra luminosa

          No extremo sul do Brasil, deixando ver, de suas janelas a igreja e suas torres, o casarão se ergue em frente à praça. Nele, encerrada, Dona Camila aguarda a anulação de seu casamento, solicitada pelo marido. É muito jovem, muito bela e na mesma noite de núpcias confessara já ter sido amada antes.

          Sem direito de sair à rua, espera a decisão canônica na grande casa rica. A seu lado apenas Laurinda que a cuidou desde menina.

          Laurinda, gorda, cara lustrosa, dentes alvos. Escrava. Imagem perfeita da dedicação, gira em torno de sua senhora servindo-a com todos os cuidados. Assumindo ou submetendo-se a uma função materna que, livre da rigidez da moral estabelecida, se desdobra: ela é ama, confidente, mucama, conselheira, alcoviteira.É por ela que a senhora chama - para vesti-la, para penteá-la, para ouvi-la e dirimir suas dúvidas, para julgar de seus méritos feminis, para costurar-lhe o vestido que deseja. É ela quem está presente na hora do choro e do riso. Para alegrar ou consolar, para cuidar e proteger a senhora, segue-lhe os passos ou os precede querendo evitar a tragédia

           Personagem cuja função romanesca direciona a narrativa de Manhã transfigurada (Mercado Aberto, 1991). Suas são as palavras que conduzem os atos de Camila no leito conjugal e fazem dela uma mulher condenável aos olhos do marido. Também suas as que a afastam da prostração a que o castigo vergonhoso a condenara. Obra sua, o vestido que deseja Camila para o que imagina ser a sua entrega maior.

No entanto, é como se Laurinda na dona apenas se refletisse. O coração lhe pesa quando a sente triste. Seus olhos se umedecem de alegria quando a vê alegre. E se preocupa e se acalma e se assusta e se amedronta diante de seus desvarios amorosos porque negra e escrava era uma pessoa só do dia, só entendendo as coisas claras e solares.E, nada mais claro para ela do que a sua condição de serva, pessoa que não pode nem pensar, e sim ser dócil aos comandos.E prestimosa e cumpridora e dedicada e boa e sempre risonha, Laurinda se encerra na perfeição luminosa que desdiz este ter nascido para sombra de mulher branca. Sombra que a impede de mostrar-se inteira: quem realmente é, a quem se entregara por amor, quando pudera ser feliz nesse mundo/prisão que a proibiu de viver para si mesma.E faz dela, silhueta que se recorta da escravidão (assim o quis seu criador Luiz Antonio de Assis Brasil?), um inacabado, um magnífico e inesquecível personagem feminino.

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