domingo, 26 de janeiro de 1992

A escrita do exílio IV


Mario Benedetti teve uma longa e vasta experiência do exílio. Com a ditadura que se instalou no seu país, partiu primeiramente para a Argentina e depois para o Peru, Cuba, Espanha, até poder, depois de muitos anos, retornar a Montevidéu.

Poeta, ensaísta, dramaturgo, ficcionista, profundamente comprometido com seu país e com o Continente, registrou essa experiência do exílio e suas consequências em contos (Con y sin nostalgia), em poemas (Viento del exilio), em ensaios (El desexilio y otras conjuncturas) e no romance Primavera con una esquina rota, publicada no México e com vinte edições em espanhol (Uruguai, Espanha, Colômbia, México, Argentina, Cuba) e cinco traduções (francês, alemão, russo, holandês).

Seis vozes constroem o romance num ciclo que se repete: a voz de Mario Benedetti, registrando episódios autobiográficos referentes ao próprio exílio e ao exílio dos outros e a dos cinco personagens: a de Graciela, jovem exilada cujo marido ainda se encontra nas prisões de seu país; a de Santiago, seu marido, através das cartas que conseguem atravessar as grades; a de Don Rafael, pai de Santiago e também no exílio; a de Rolando, amigo do casal e que passa a se constituir o terceiro elemento de um triângulo amoroso de certo modo incompleto e cheio de culpas pois o marido está na prisão e ignora o que se passa. E a de Beatriz.

Beatriz, filha de Graciela e de Santiago tem nove ou dez anos e é a partir de seu universo infantil que ela se expressa. Pequenas brigas com a mãe e com as amigas, interrogações e dúvidas próprias de sua idade mostram-se nos seus ingênuos monólogos interiores.

Neles, alguma palavra mal grafada, algum conceito mal compreendido lhe conferem, risonhamente, a meninice, que é, no entanto, truncada por ausências irreversíveis (mal se lembra do pai que não vê há cinco anos) e por irreversíveis ambigüidades (qual é sua pátria? Aquela em que vive e na qual tem amigos ou aquela em que nasceu e que lhe é quase desconhecida?). Num de seus textos, “As estações”, redação que, tradicionalmente, é pedida na escola, ela deve explicar cada uma das estações do ano. É na sua condição de filha de preso político e de mãe exilada que Beatriz consegue a proeza de fugir aos modelos herdados dos colonizadores sobre as estações do ano, modelos que nem sempre coincidem com a realidade climática do Continente. Para Beatriz, o inverno se caracteriza pelo frio e pelo cachecol e o verão pelo sol e pela praia. Sua definição de primavera, porém, deixa de ser a da estação das flores e dos pássaros, segundo a lição dos livros, para ser aquela em que seu pai foi preso, usando, por ser primavera, um pulôver verde. E o outono, definido como a estação, que no seu entender, (liberta da “alienação escolar” de que fala a Mafalda, de Quino) é a estação que não existe, pois ora lhe parece ser inverno, ora lhe parece ser verão. De real, apenas, que seu pai está contente porque as pequenas folhas secas que entram pelas grades de sua cela fazem com que imagine que são pequenas cartas da filha distante.

Nos demais textos vai descobrindo o mundo: a admiração diante de um moderno arranha-céu com elevadores velozes, a multidão nas ruas da cidade, o sentido das palavras. Certa e constante, a ausência do pai, o desejo de estar com ele, expresso em breves frases, como em breves frases expressa, também, a certeza de que habitam espaços distantes e diferentes.

No sonho que menciona, de mãos dadas com o pai está no zoológico de Montevidéu e diante da jaula dos macacos - e Beatriz esclarece que não são os mesmos macacos que vai ver no zoológico do país onde vive - o pai lhe diz: vês, Beatriz, essas grades, assim vivo eu. Do sonho, ela acorda chorando e lhe é muito claro que está vivendo num país alheio.

O significado, mais além do sofrimento de cada um, desse desterro infantil é seu avô, Don Rafael, que o enuncia.Quando pensa o futuro de seu país, naqueles que devem continuar a construí-lo, pensa nas crianças que ficaram e viram e sofreram a opressão das ditaduras, não nas que viveram espalhadas pelo mundo - e Caracas, Paris, Madrid, Roma, México. Estas, podem ajudar, dizer do que aprenderam nos outros lugares, podem perguntar sobre o que desaprenderam. Podem tentar se adaptar, outra vez, ao Continente. Isto é, juntar-se ao “desexílio” dos adultos que voltaram e que, arduamente, com ou sem esperanças, palmilham esse caminho. Mas, também se pergunta: dessas crianças onde lhes terá ficado a pátria pois, crescendo longe dela, guardam lembranças que estão presas em outras latitudes? Quais macacos vistos no zoológico serão mais comoventes para Beatriz: os do país do exílio ou aqueles entrevistos no sonho caminhando ao lado de seu pai?

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