Mario Benedetti teve uma
longa e vasta experiência do exílio. Com a ditadura que se instalou no seu
país, partiu primeiramente para a Argentina e depois para o Peru, Cuba,
Espanha, até poder, depois de muitos anos, retornar a Montevidéu.
Poeta, ensaísta, dramaturgo,
ficcionista, profundamente comprometido com seu país e com o Continente,
registrou essa experiência do exílio e suas consequências em contos (Con y sin nostalgia), em poemas (Viento del exilio), em ensaios (El desexilio y otras conjuncturas) e no
romance Primavera con una esquina rota,
publicada no México e com vinte edições em espanhol (Uruguai, Espanha,
Colômbia, México, Argentina, Cuba) e cinco traduções (francês, alemão, russo,
holandês).
Seis vozes constroem o
romance num ciclo que se repete: a voz de Mario Benedetti, registrando
episódios autobiográficos referentes ao próprio exílio e ao exílio dos outros e
a dos cinco personagens: a de Graciela, jovem exilada cujo marido ainda se
encontra nas prisões de seu país; a de Santiago, seu marido, através das cartas
que conseguem atravessar as grades; a de Don Rafael, pai de Santiago e também
no exílio; a de Rolando, amigo do casal e que passa a se constituir o terceiro
elemento de um triângulo amoroso de certo modo incompleto e cheio de culpas
pois o marido está na prisão e ignora o que se passa. E a de Beatriz.
Beatriz, filha de Graciela e
de Santiago tem nove ou dez anos e é a partir de seu universo infantil que ela
se expressa. Pequenas brigas com a mãe e com as amigas, interrogações e dúvidas
próprias de sua idade mostram-se nos seus ingênuos monólogos interiores.
Neles, alguma palavra mal
grafada, algum conceito mal compreendido lhe conferem, risonhamente, a
meninice, que é, no entanto, truncada por ausências irreversíveis (mal se
lembra do pai que não vê há cinco anos) e por irreversíveis ambigüidades (qual
é sua pátria? Aquela em que vive e na qual tem amigos ou aquela em que nasceu e
que lhe é quase desconhecida?). Num de seus textos, “As estações”, redação que,
tradicionalmente, é pedida na escola, ela deve explicar cada uma das estações
do ano. É na sua condição de filha de preso político e de mãe exilada que
Beatriz consegue a proeza de fugir aos modelos herdados dos colonizadores sobre
as estações do ano, modelos que nem sempre coincidem com a realidade climática
do Continente. Para Beatriz, o inverno se caracteriza pelo frio e pelo cachecol
e o verão pelo sol e pela praia. Sua definição de primavera, porém, deixa de
ser a da estação das flores e dos pássaros, segundo a lição dos livros, para
ser aquela em que seu pai foi preso, usando, por ser primavera, um pulôver
verde. E o outono, definido como a estação, que no seu entender, (liberta da
“alienação escolar” de que fala a Mafalda, de Quino) é a estação que não
existe, pois ora lhe parece ser inverno, ora lhe parece ser verão. De real,
apenas, que seu pai está contente porque as pequenas folhas secas que entram
pelas grades de sua cela fazem com que imagine que são pequenas cartas da filha
distante.
Nos demais textos vai
descobrindo o mundo: a admiração diante de um moderno arranha-céu com
elevadores velozes, a multidão nas ruas da cidade, o sentido das palavras.
Certa e constante, a ausência do pai, o desejo de estar com ele, expresso em
breves frases, como em breves frases expressa, também, a certeza de que habitam
espaços distantes e diferentes.
No sonho que menciona, de
mãos dadas com o pai está no zoológico de Montevidéu e diante da jaula dos
macacos - e Beatriz esclarece que não são os mesmos macacos que vai ver no
zoológico do país onde vive - o pai lhe diz:
vês, Beatriz, essas grades, assim
vivo eu. Do sonho, ela acorda chorando e lhe é muito claro que está vivendo
num país alheio.
O significado, mais além do
sofrimento de cada um, desse desterro infantil é seu avô, Don Rafael, que o
enuncia.Quando pensa o futuro de seu país, naqueles que devem continuar a
construí-lo, pensa nas crianças que ficaram e viram e sofreram a opressão das
ditaduras, não nas que viveram espalhadas pelo mundo - e Caracas, Paris,
Madrid, Roma, México. Estas, podem ajudar, dizer do que aprenderam nos outros
lugares, podem perguntar sobre o que desaprenderam. Podem tentar se adaptar,
outra vez, ao Continente. Isto é, juntar-se ao “desexílio” dos adultos que
voltaram e que, arduamente, com ou sem esperanças, palmilham esse caminho. Mas, também se pergunta: dessas crianças onde
lhes terá ficado a pátria pois, crescendo longe dela, guardam lembranças que
estão presas em outras latitudes? Quais macacos vistos no zoológico serão mais
comoventes para Beatriz: os do país do exílio ou aqueles entrevistos no sonho
caminhando ao lado de seu pai?

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