Embora
alguns tenham sido escritos há quase trinta anos, originados, por vezes, de
interesses circunstanciais, não perderam
a atualidade que lhes é conferida pela agudeza dos conceitos críticos e
pela oportunidade das observações sobre a América Latina que, avançando tão
lentamente nos seus progressos, faz com que as palavras de Eduardo Galeano
continuem a ser pertinentes.
Convencido
de que o conhecimento da América deve anteceder as transformações, a sua linear
trajetória jornalística de vinte e cinco anos vai construir o mapa do
Continente como ele é: feito de luz e de sombra.
No
artigo datado de 1978, “Los esclavos de la abundancia”, Eduardo Galeano comenta
um livro francês, A traição da opulência.
Seus autores, Jean Pierre Dupuy e Jean Robert sustentam que as
atividades destinadas a ganhar tempo, cada vez mais, ocupam mais tempo porque o
tempo, na civilização ocidental contemporânea se converteu em algo passível de
consumo, compra, intercâmbio e acumulação. Tal visão de mundo, norteando o
cotidiano dos homens, os afasta do ritmo que lhes é propício e na vertigem de
seu dia a dia lhes ocasiona um mau estar impossível de ser confessado e que se
mostra, então, sob a forma de doença. Daí, que na maior parte dos
países europeus, os gastos com remédio e atenção médica tiveram, na década de
70, um acréscimo de 10% ao ano, segundo cálculo de Archibal Cochrane no seu livro Reflexões sobre a eficácia da
medicina, um estudo sobre os
profissionais da dor humana. Os dados que o autor, um médico
dinamarquês, apresenta, são estarrecedores ao deixar claro o desprezo do homem
pelo seu semelhante. Desprezo que se mascara, tendenciosamente, em consultas,
exames, receitas caríssimas ou em tratamento que põe em risco a integridade
física ou mental do paciente quando não a própria vida.
Trabalhando
doidamente, para doidamente consumir e
se encontrar submergido em objetos inúteis e supérfluos – Eugène Ionesco já o
anunciara em Les chaises e Elio Petri, tão perfeitamente, no filme A
classe operária vai para o paraíso -
o homem do Primeiro Mundo é vítima da opulência.
Enquanto
isso, aquele que nasce no Continente à margem das ilhas de desenvolvimento (que
oferecem a certos latino-americanos a ilusão de pertencerem a países
desenvolvidos) se afoga no poço
incomensurável das grandes ausências.
São
numerosos os artigos de Eduardo Galeano que denunciam essa falta de tudo.
.Exemplares, até porque mudados os
espaços, as circunstâncias, as situações, eles retratam a grande parte do
Continente, são os artigos dedicados à Nicarágua: “Nicaragua en el primer dia”
(1980) e “Defensa de Nicaragua”(1986).
Esse
pequeno território que lutou ferrenhamente, buscando apenas, ser um país, em
determinado momento se define pelo país
do que não tem. Não tem comida, não tem hospitais, nem remédios, nem
estradas, nem veículos, nem combustíveis, não tem casas, nem telefones que
funcionem. Dois dias por semana, Manágua, sua capital, uma das cidades mais
quentes do mundo, não tem água. Seus habitantes não sabem ler, não sabem se
alimentar, muito menos cuidar da saúde. Para transformá-los é, ainda, preciso
romper toda uma tradição de ineficácia,
uma herança de ignorância, uma fatalista aceitação de impotência como destino
inevitável.
Igualmente
terríveis, no caminho da humanidade, essa opulência e essa miséria. Como se as histórias não fossem para
se acreditar. Mas, nessa obra, Eduardo Galeano não é ficcionista. Oferece,
apenas, um testemunho. Do muito que viu, acreditou ou duvidou, sempre na busca
da esperança. Porque, de certezas, também se alimenta o Continente.
Na Nicarágua, “dois soldados conversam à porta de um Ministério. Um deles
comenta, pergunta:
-
E porque não declaramos guerra aos Estados Unidos?
-
Estás louco. Eles são uns duzentos e cinqüenta milhões.
-
É. Não podemos.
-
Não, não podemos.
Depois de uns
minutos:
-
E por que não podemos?
-
Então, não vês que não temos onde por tanto preso?”
Eduardo Galeano, traduzido por Cecília
Zokner.

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