domingo, 3 de março de 1991

Cara e coroa

            Cinquenta textos jornalísticos de Eduardo Galeano, escritos entre 1962 e 1987, foram publicados em Montevidéu sob o título Entrevistas y artículos.


            Embora alguns tenham sido escritos há quase trinta anos, originados, por vezes, de interesses circunstanciais, não perderam  a atualidade que lhes é conferida pela agudeza dos conceitos críticos e pela oportunidade das observações sobre a América Latina que, avançando tão lentamente nos seus progressos, faz com que as palavras de Eduardo Galeano continuem a ser pertinentes.

            Convencido de que o conhecimento da América deve anteceder as transformações, a sua linear trajetória jornalística de vinte e cinco anos vai construir o mapa do Continente como ele é: feito de luz e de sombra.

            No artigo datado de 1978, “Los esclavos de la abundancia”, Eduardo Galeano comenta um livro francês, A traição da opulência.  Seus autores, Jean Pierre Dupuy e Jean Robert sustentam que as atividades destinadas a ganhar tempo, cada vez mais, ocupam mais tempo porque o tempo, na civilização ocidental contemporânea se converteu em algo passível de consumo, compra, intercâmbio e acumulação. Tal visão de mundo, norteando o cotidiano dos homens, os afasta do ritmo que lhes é propício e na vertigem de seu dia a dia lhes ocasiona um mau estar impossível de ser confessado e que se mostra, então, sob a forma de doença. Daí, que na maior parte dos países europeus, os gastos com remédio e atenção médica tiveram, na década de 70, um acréscimo de 10% ao ano, segundo cálculo de Archibal Cochrane  no seu livro Reflexões sobre a eficácia da medicina, um estudo sobre os  profissionais da dor humana. Os dados que o autor, um médico dinamarquês, apresenta, são estarrecedores ao deixar claro o desprezo do homem pelo seu semelhante. Desprezo que se mascara, tendenciosamente, em consultas, exames, receitas caríssimas ou em tratamento que põe em risco a integridade física ou mental do paciente quando não a própria vida.

            Trabalhando doidamente, para doidamente consumir  e se encontrar submergido em objetos inúteis e supérfluos – Eugène Ionesco já o anunciara em  Les chaises  e Elio Petri, tão perfeitamente, no filme A classe operária vai para o paraíso  - o homem do Primeiro Mundo é vítima da opulência.

            Enquanto isso, aquele que nasce no Continente à margem das ilhas de desenvolvimento (que oferecem a certos latino-americanos a ilusão de pertencerem a países desenvolvidos)  se afoga no poço incomensurável das grandes ausências.

            São numerosos os artigos de Eduardo Galeano que denunciam essa falta de tudo. .Exemplares, até porque  mudados os espaços, as circunstâncias, as situações, eles retratam a grande parte do Continente, são os artigos dedicados à Nicarágua: “Nicaragua en el primer dia” (1980) e “Defensa de Nicaragua”(1986).

            Esse pequeno território que lutou ferrenhamente, buscando apenas, ser um país, em determinado momento  se define pelo país do que não tem. Não tem comida, não tem hospitais, nem remédios, nem estradas, nem veículos, nem combustíveis, não tem casas, nem telefones que funcionem. Dois dias por semana, Manágua, sua capital, uma das cidades mais quentes do mundo, não tem água. Seus habitantes não sabem ler, não sabem se alimentar, muito menos cuidar da saúde. Para transformá-los é, ainda, preciso romper toda uma tradição de ineficácia, uma herança de ignorância, uma fatalista aceitação de impotência como destino inevitável.

            Igualmente terríveis, no caminho da humanidade, essa opulência e essa miséria. Como se as histórias não fossem para se acreditar. Mas, nessa obra, Eduardo Galeano não é ficcionista. Oferece, apenas, um testemunho. Do muito que viu, acreditou ou duvidou, sempre na busca da esperança. Porque, de certezas, também se alimenta o Continente.

 

 

        Na Nicarágua, “dois soldados  conversam à porta de um Ministério. Um deles comenta, pergunta:

-          E porque não declaramos guerra aos Estados Unidos?

-          Estás louco. Eles são uns duzentos e cinqüenta milhões.

-          É. Não podemos.

-          Não, não podemos.

                            Depois de uns minutos:

-          E por que não podemos?

-          Então, não vês que não temos onde por tanto preso?”

     Eduardo Galeano, traduzido por Cecília Zokner.

 

   

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