domingo, 10 de março de 1991

A América inteira

            Mais uma vez, Carlos Fuentes serve-se de uma paixão para contar a História do Continente. A paixão de Baltazar Busto se inicia, fulminante, na véspera do dia 25 de maio de 1810, data da primeira revolução da Independência Argentina. No meio da noite, penetra nos aposentos da Marquesa de Cabra, mulher de alto funcionário da Coroa espanhola e tira-lhe a criança recém nascida que dormia no berço para, em seu lugar, colocar uma criança negra, filha de uma prostituta que fora castigada em praça pública por ser portadora do mal francês. Com esse ato ele procurou fazer justiça.

            Porém, antes de partir com a criança nos braços, pode ver, pela janela, a marquesa através dos tules dos mosquiteiros. Estava de costas, nua e empoava o rosto. Uma visão que nunca mais  o abandonou  e o fez peregrinar pelo Continente quando as lutas afastaram a Marquesa de Buenos Aires. Procurou-a durante onze anos e quando estiveram face a face, ela mal lhe concedeu um olhar. Estavam no México e Baltazar Busto havia atravessado o imenso espaço do Continente para encontrá-la.  No seu caminho sinuoso, a imasgem feminina havia guiado por uma América que se rebelava e, rebelde, o amante foi, também seguindo o seu caminho. De suas terras no pampa argentino ele parte para se luzir na guerra e poder, então, pretendê-la.

            Chile, Peru, Panamá, México. Um Continente em fogo, cujos filhos se degladiam sem saber porque ou por princípios que reacendem aqueles mesmos que desejam substituir. Os conceitos desfilam: igualdade, liberdade, justiça. E quem da Argentina até o México não contém, encerrado no peito, um advogado tratando de se escapar e lançar um discurso. E os vícios se mostram: o racismo, a opressão sem freios, o abuso do poder, o desprezo pelos seres e pelas coisas que povoam essas extensões conquistadas para o sofrimento e para a dor de quase todos.

            Baltazar Busto da cor de avelã, a pele queimada, a cabeleira de mel, a barba e os bigodes loiros e, sobretudo, míope, quer entender o que vê e o que ouve. Para o pai, um gaúcho sem letras, ele havia dito: o que desejo é consolidar alguns direitos pra muitos onde só havia muitos direitos para alguns. Basta terminar com um só abuso, com um só privilégio para que a revolução se justifique.

            Em cada foco de rebelião, em cada guerra, em cada luta presenciada ou vivida, encontrou o desejo do Poder do qual, ainda que por um momento fugaz, ele próprio não foi poupado. De cima de seu cavalo, ele falou aos índios. Numa carta, confessará: Senti-me por um momento, mortalmente orgulhoso, também  de minha superioridade mas, ao mesmo tempo, enamorado da inferioridade alheia.


            E a, assim, mentada inferioridade – dos que não são europeus, dos que não são brancos, dos que não são cultos – irá justificar o dizer dos espanhóis. E disse o Marquês de Cabra: Mestiço de merda, limpa as barracas,faz a minha cama, esfrega o chão, desinfeta as retretas, traz lenha, me serve água, não reclames se te dou um ponta-pé no traseiro, não deixes escapar um suspiro se te esbofeteio, não levantes a cabeça se eu te digo de olhar os meus pés, mestiço de merda, pois nem à altura de meus pés chega a tua alma, se é que a possuis, pobre diabo.

            Diante dos quadros do cotidiano que se repetem no Continente, nada ficou sem dizer neste definitivo dizer do Marquês. Modelo e lei que ainda reinam.

            Em La campaña, romance publicado pelo Fondo de Cultura Econômica em 1990, década de repensar a conquista da América, Carlos Fuentes não escamoteia o que somos.

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