domingo, 17 de março de 1991

Flechas docemente envenenadas

             Publicado em dezembro de 1989, em Montevidéu, sob a rubrica “Ediciones Del Chanchito” e distribuído pela América Latina, aparecerá, em breve, no Brasil, El Libro de los abrazos de Eduardo Galeano.

            Desde que se iniciou, no jornalismo, com charges políticas, ainda adolescente, trinta e sete anos se passaram para que ele unisse os seus talentos de escritor e de desenhista. Finalmente, eles se abraçam nessa obra, se completam, embora, por vezes, pareçam pertencer a mundos diferentes.

            São duzentas e cinqüenta e oito páginas, onde, contidos por uma linha que lhes impõe fronteiras, reinam  cento e noventa e um texto  e uns cem desenhos.

            Como Dias y noches de amor y de guerra, Prêmio Casa de las Américas, 1978, em cuja epígrafe consta tratar-se de histórias reais, escritas a partir de lembranças do autor, El Libro de los abrazos é, também, um livro de lembranças. Certamente, mais emocionadas.

            Onze anos se passaram entre um livro e outro e foram anos sem inocência para o Continente. A vida firmemente enlaçada à vida de seus semelhantes e às coisas da América, Eduardo Galeano, agora, recorda, retomando a etimologia do verbo latino, voltar a passar pelo coração.

            De suas andanças pelo Continente, de suas tantas extraordinárias vivências, de suas ternuras, resulta um livro  habitado por figuras e atos exemplares que se sobrepõem aos negros abismos de ignorância e maldade que, também, ou , principalmente, fazem a história do Continente.

            Como se possuísse a América inteira, Galeano vai de Manágua a Buenos Aires, de Santiago do Chile a Nova Iorque, de Montevidéu ao México. E a possui, ao permitir-lhe a entrada no coração. É dele que o Continente emerge pela voz das crianças, dos índios, dos presos, das palavras escritas nas paredes.

            Por vezes, são figuras conhecidas as que aparecem. Neruda, Onetti, Benedetti, Cortázer, Árguedas, Gelman. Outras, aquele personagem luminoso, que o acaso colocou no seu caminho e que, recriado por ele, passa a testemunhar a vida do Continente.

            Assim, a risonha história daquele motorista da linha 68 da cidade de Havana que abandona o ônibus que dirigia, mais os seus passageiros, para  se lançar à conquista de uma bela jovem que tomava sorvete na esquina.

            Ou, a tristemente memorável história de Bráulio Gómez, um dos músicos do conjunto “Los Olimareños”. Na prisão, onde havia ido parar por se dedicar à leitura de uma biografia de José Artigas, de alguns poemas de Antonio Machado e do Pequeno príncipe, um soldado, porque sim, lhe pisara sobre os dedos. Ao chegar, exilado, em Barcelona, Eduardo Galeano se ofereceu para fazer-lhe uma entrevista onde pudesse contar isso que lhe acontecera. Bráulio Gómez prefere calar, explicando que cedo ou tarde, a mão iria ficar curada e que ele não desejaria, então, desconfiar dos aplausos.

            Mas, entre emoções  e sonhos e ditos infantis e  encontros  de amizade e acertos com o passado, ainda sobram as histórias que acontecem num Continente habitado por racistas, por preconceituosos, por hipócritas, por oportunistas, por exploradores, por desmemoriados, por colonizados.

            No prazer do texto, na sedução das imagens e das palavras é quando, docemente envenenadas, se inserem as flechas. E delas precisa o Continente.

 

 

 

                                                                               A Cultura do terror /7

                                  

O colonialismo visível te mutila sem dissimulação: te proíbe dizer, te proíbe fazer, te proíbe ser. O colonialismo invisível, ao contrário, te convence de que a servidão é o teu destino e a impotência de tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. Eduardo Galeano. (tradução de Cecília Zokner).

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