domingo, 30 de setembro de 1990

Os Conquistadores.1

            Na Espanha, as terras áridas e a aridez mental dos que tudo possuíam os havia relegado a pobres ofícios: eram guardadores de porcos, eram “lavradores de terra má” e, ao conseguir-lhes os frutos, esses já se lhes escapavam das mãos, pertencendo aos outros, antes mesmo de serem colhidos.

            Da América, esperavam riquezas. O ouro, quase sempre se diz, é o que eles vinham buscar e para isso atravessavam os mares.  Entre os que sonhavam, no entanto, haveria, talvez, aqueles que apenas teriam desejado um pedaço de terra onde encravar raízes o que lhes tinha sido, até, então, negado. Poucos são os que falam desses sonhadores, se é que eles existiram.

            Em El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, 1973) de Carlos Droguett, eles são personagens de ficção. Pobres homens pobres, fundadores de uma cidade da qual acreditavam possuir uma parcela. Construíram a casa, plantaram o jardim e o pomar. Então, o Governador deu ordem de mudança. Deveriam despregar portas e janelas, destruir o espaço construído, aceitar que desaparecesse o universo que, em meio a penas, medos, carências, haviam, finalmente, conseguido criar. Rebelaram-se contra as ordens de partir para mudar o assento da cidade. Negaram-se a assinar a notificação: não assino, me matem, me enforquem, me amarrem na fogueira, mas não assino, não irei embora, não abandonarei meus cavalos, nem minhas flores, quero cuidar de minhas árvores, um deles grita.

            E, na luta entre a autoridade que se quer oriunda de Deus e do Rei e a vontade de quem deseja possuir uns metros de chão e uma casa, a destruição. Jogados nas terras do Continente, objetos que poderiam conter a civilização: alguma roupa, fivelas e botões, pedaços de papel, um livro desfeito, um baralho, gavetas abertas, mapas, um pequeno martelo.

            Na resistência passiva,  aquele  que ignora ordens e senta-se para comer. Diante do prato de sopa e do copo de vinho, o cão a seus pés, ele conhece o preço da desobediência.  De crueldade extrema  é a cena: o Governador ao entrar e vê-lo obstinado, sabe que essa obstinação, em se opor à mudança, o marcará para a morte. O homem,  embora incrédulo, embora indignado – me salvar, deixando minhas madeiras, meus móveis? também sabe que na decisão de permanecer na casa que havia construído, o seu destino fora selado.    A autoridade, convicta de que está  baseada em princípios ( bons ou maus, válidos ou não), deve se fazer valer. A escolha do indivíduo se firma na crença de um direito conquistado e não deve ceder.

            Na sua casa, diante do prato de sopa, o homem luta para perder. A vida e o pouquinho que, por  pouco tempo, lhe fora dado possuir.

            No Continente, de vastas terras e ( digamos) de inesgotáveis riquezas, o Velho Mundo renascia impávido e tirano.

domingo, 23 de setembro de 1990

Eles são diferentes

            País sem poder de decisão econômica é país sem poder de decisão cultural.

         Com estas palavras, terríveis, na medida em que expressam não somente a realidade do Brasil, mas a de todos os países do Continente que se situam ao sul do Rio Grande, inicia José Ramos Tinhorão o seu artigo “Pesquisador brasileiro sofre!” publicado no D.O.  Leitura  de 9 de setembro passado. Um artigo lúcido e extremamente oportuno como todos aqueles que dizem verdades, buscando soluções. Sua leitura será de real proveito para o pesquisador que, mais uma vez, irá constatar que não está só nesse perseguir o acervo que necessita para  seu trabalho, nesse enfrentar dificuldades originadas de um meio cético ou hostil, nessa espera, após o trabalho terminado, de um editor que, geralmente, prefere os sucessos estrangeiros freqüentemente de qualidade duvidosa.  E, mais do que proveito, de imprescindível leitura para os que gerem os órgãos responsáveis pela realização de pesquisas no país que, salvo as sempre honrosas exceções, inexplicavelmente, parecem ignorar o que acontece na área. Inclusive que, talvez, o maior problema seja a falta de ética ( ou, simplesmente de honestidade) que leva muitos daqueles que se intitulam pesquisadores a usufruírem de bolsas de estudo e do privilégio de se ausentarem de suas instituições sem se sentirem obrigados a prestar contas, isto é, apresentarem concluído o trabalho que pretenderam e com o qual se comprometeram .

            Diante de tal quadro, tornam-se valiosos para uma Instituição, os pesquisadores que apresentam o resultado de sua pesquisa, mormente quando ela se volta para temas nacionais.       

            Ao traçar a trajetória do grupo étnico  “brasileiro” em dois municípios do oeste catarinense, voltado à atividade extrativa da erva-mate, a tese de Mestrado de Arlene Renk que acaba de ser defendida no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, procurou respostas para um aspecto da realidade nacional.

            Num trabalho de 415 páginas, baseado em fontes primárias, material bibliográfico e em pesquisa de campo, a autora procurou reconstruir o trajeto da expropriação do “brasileiro” e sua transformação em ervateiro/tarefeiro o que levou, também, a tratar de sua diferenciação étnica.

            Uma trajetória que se inicia nas terras dos municípios de Ponte Serrada  e Vargeão no oeste catarinense. Pertencentes ao Estado, eram terras habitadas por “brasileiros”( também designados por caboclos) que dela se apropriavam espontaneamente. Escolhiam o lugar, erguiam o seu rancho, plantavam sua roça, criavam seus animais.  E, dali, se mudavam quando assim lhes aprouvesse.

            Nas primeiras décadas deste século, essas terras foram vendidas e passaram às mãos de colonos de origem italiana, vindo do Rio Grande do Sul. Os “brasileiros” perderam seu espaço e seu modo tradicional de vida foi desestruturado. Diante da nova realidade instaurada, a industrialização da erva-mate sob a iniciativa dos recém-chegados na região,  houve um novo reagrupamento dos “brasileiros”, agora, para extrair a erva-mate. Passaram a ser ervateiros/tarefeiros o que significava viver em barraca no meio do mato, sem grandes pertences e sem instalações sanitárias, realizar uma tarefa sazonal  quando o tempo o permite, estar impossibilitado de oferecer continuidade de  estudos aos filhos e sofrer de doenças que a falta de conforto mínimo origina. E, ao se esgotar o tempo de corte da erva-mate, dedicar-se a biscates ou à mendicância. Pela  forma como constituem família (aceitação fácil de uniões consuetudinárias), pelo fato de se afastarem da religião católica (por falta de fé, por enfrentamento com o catolicismo oficial, pela utilização do ritual popular); pela desconfiança em relação à Escola ( considerar que alfabetizar-se e conhecer as quatro operações é suficiente pois muito estudo atrapalha; pela descrença na Medicina (  manifestada na indocilidade em seguir os tratamentos prescritos e na convicção de que os remédios são menos eficazes do que os benzimentos); pela opção em se refugiar no passado ( considerado como  tempo de fartura e liberdade  e negação de  preparar o futuro), os “brasileiros”se aprisionam em fronteiras estanques.

            Aos olhos  dos italianos, possuidores do “fascínio da terra” que os conduz ao respeito pela família monogâmica e à preocupação em assegurar o futuro dos filhos, transmitindo-lhes valores em que o esforço e o trabalho são privilégios, os “brasileiros”só servem para cortar erva-mate porque somente isso sabem fazer.

            Estão marginalizados da posse da terra, encurralados numa única possibilidade de trabalho, prisioneiros de suas atitudes e práticas e de sua visão de mundo, os “brasileiros”, tarefeiros/ervateiros passaram a ser diferentes a partir da chegada dos outros.

            “A luta da erva: um ofício étnico da “nação brasileira”no oeste catarinense” dá conta de sua peculiaridades, oferece muitas respostas e possibilita outras tantas indagações. O que, no entanto, é importante neste trabalho é a postura da pesquisadora. Não se afastando das leis que regem os trabalhos acadêmicos e científicos, Arlene Renk trás esse homem que estudou e seu destino para a outra realidade do país: aquela que poderá transformar esse destino.

            Nos países do Continente, aí estaria a verdadeira resposta para as perguntas.

domingo, 16 de setembro de 1990

Sérgio Faraco - recriando paraísos

            “No entardecer” diz de uma casa que vai morrendo no meio de um jardim. Os olhos de quem a visita já não reconhecem os objetos que ainda se espalham aqui e ali embora continuem vivas as imagens do passado  quando a casa -  e os pomares, as fontes, os plátanos - ­ era um paraíso ao pé do rio.            Difícil é enfrentar as ruínas, o mato que invade os espaços.  O passar do tempo. Para prendê-lo ou para exorcizá-lo é que existem os textos que o antecedem. São em numero de oito e com exceção de “Outro brinde para Alice” reconstroem momentos luminosos. Ainda que prenhes de medos, angústias¸ tristezas que sempre, nessas pequenas narrativas acompanham¸ irremediavelmente, o amor. Amor pelo pai que era alto¸forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso, pela mãe, pela menina,  pela mulher.

            O narrador, sempre em primeira pessoa, vai mostrando o sentir de um menino que entra na vida e dela recebe as oferendas pelas quais deve pagar tributo: o do silêncio, o da decepção. Pouco¸diante das felicidades que lhe são oferecidas, dadas a  conhecer ao leitor quase que nas entrelinhas do texto.

            As primeiras experiências amorosas  se descobrindo numa expressão simples e espontânea que, sutilmente, contorna cruezas. O contar se interrompe e retorna para focalizara emoção que ficou ou que a partir de então será, realmente, compreendida. A confissão irrompe, inundada de sentidos e nela cabe a ingenuidade do adolescente, matizada pelo o narrador, já adulto, daquele breve traço humorístico que, à moda de Pirandelo, pode se  tornar melancólico.

Reunidos sob o título   Doce paraíso e publicados pela L & PM de Porto Alegre em 1987,  estes textos, que no dizer dos editores são a estréia de Sérgio Faraco na literatura juvenil, traduzem principalmente,  um amor à vida.

domingo, 9 de setembro de 1990

Os limites do homem

            Mario Arregui morreu em 1985,  no mesmo  ano em que saía no Brasil o seu livro Cidade silenciosa  pela Movimento de Porto Alegre. Foi o segundo livro do contista uruguaio traduzido para o português. O primeiro, Cavalos do amanhecer, fora publicado pela Francisco Alves do Rio de Janeiro três anos antes e teve tradução  para o tcheco, russo e italiano.  Mario Arregui  é autor de seis livros de contos sobre os quais diz Angel Rama, com a sua admirável argúcia crítica, : são narrativas que se dedicam a conhecer o homem e seus limites Assim em “Los contrabandistas”, “Diego Alonzo”, “Unos versos que no dijo”. E  em  “Trés hombres”, perfeito exemplo dessa busca e um de seus contos mais belos.
            “Trés hombres” foi publicado em 1960, juntamente com outros três contos, no livro Hombres y caballos. Como seu título indica, nele se movem três homens: um comissário de polícia, responsável por uma vasta zona rural, o sargento, seu subordinado e Velasco, o bandido a quem devem prender.

            Nas andanças em busca de Velasco, surge o momento em que seus perseguidores o vêm embrenhar-se no mato. Decididamente, atrás dele vai o sargento Maciel que, ao se embrenhar entre as ramagens também desaparece. Somente na manhã seguinte é que sairá do mato, anunciando ter prendido o bandido após uma luta em que ele recebera ferimentos e o outro perdera a liberdade. Avançaram, então, o sargento através do mato para levar o bandido para a prisão.  Amarrado estava ele e, assim, não representava perigo algum. Atado pelos pés e pelas mãos, achava-se à mercê dos outros e assim, como algo desprezível o tratou o comissário. Para o sargento, porém, Velasco era um prisioneiro, um homem valente, pois com valentia havia lutado.

            Entre aquele que armado batia no indefeso e aquele que amarrado e no chão não podia responder aos golpes, o sargento decidiu. Como o sargento Cruz nas páginas do Martin Fierro, escolheu o seu destino, identificando-se com o perseguido e reconhecendo nele as virtudes tradicionais do homem do campo: a hombridade e a valentia. E a ética natural o levou a se rebelar contra o superior, opondo-se aos maus tratos infligidos ao prisioneiro  e logo, libertando-o para que  pudesse se defender como homem dos ataques do outro que, então, deveria, por sua vez, atacar ou defender-se como homem.

            A injustiça e a covardia que presenciou lhe guiaram a escolha. Mais do que os galões, a Maciel pesaram as razões baseadas em leis anteriores que se apoiavam na coragem e na lealdade e que não tinham, ainda, sido contaminadas por discutíveis interesses.

            “Era uma vez três homens...” é como se inicia o conto de Mario Arregui. Certamente, um tempo em que  existiam homens para quem o justo – e nada mais -  era o limite.

 

domingo, 2 de setembro de 1990

Sobre a Literatura gauchesca


            No regionalismo latino-americano, a Literatura Gauchesca é uma tradição literária das mais amplas e das mais expressivas. De sua amplidão faz prova, além da região geográfica pela qual ela se estende , congregando a Argentina, o  Brasil e o  Uruguai  a sua permanente vitalidade, a sua força e  o alcance popular de textos inspiradores de uma Literatura culta e urbana. Razões que fazem dela um fenômeno literário muito particular e valioso cujos primórdios  somente foram conhecidos através de testemunhos dos viajantes no século XVIII.

             Poesia, de cunho autenticamente popular, foi estudada, periodizada e se constitui uma presença em todos os livros da história da Literatura Argentina e Uruguaia. Depois, dela, o gaúcho, transformado em mito, continuou a alimentar romances, contos, peças de teatro, ensaios, numa produção que se prolonga até os dias de hoje e da qual ficaram obras que não foram vencidas pelo anacronismo que costuma dominar a maior parte da produção artística de uma época.

            Ainda assim, muitas vezes, essa produção é marginalizada pela crítica oficial cujos parâmetros não permitem o estudo de obras que não se pautem pelos modelos forâneos (ou parisienses ou nova-iorquinos)  que são aspirações supremas de uma determinada “elite” latino-americana.

            Daí decorre que estudos sobre Literatura Gauchesca acabaram por se constituir   algo de estático e de parcial: ou somente se estuda a história da primitiva poesia gauchesca, estudo esse justificado pela respeitabilidade que o passar do tempo acaba por conferir ao assunto ou se estudam as obras que, na melhor tradição universitária, são consideradas dignas de atenção por serem, a priori, rotuladas como obras primas.

            Por outro lado, os autores da Literatura Gauchesca  quando  recriam o gaúcho, o fazem de maneira ambígua ao ignorarem a distância que separa a representação  “idílica” (expressão de Ligia Chiapini Moraes Leite)  de suas verdadeiras condições de vida.

            A Literatura Gauchesca passa a servir, então, a textos épico-aristocráticos, produzidos por  donos de terras que encontram, no gaúcho, um meio para ilustrar a própria  ideologia , como tal mistificadora de uma realidade própria do meio rural dos países do Prata e do Rio grande do Sul.

            Assim, estudar o gaúcho e a relação que mantém com a liberdade nas obras de ficção , é estabelecer, também, suas relações com o latifúndio que leva o gaúcho  à opção de uma liberdade inútil, desprovida de  sentido, uma vez que, nem ao menos, questiona a estrutura social na qual está inserido.

            Deter-se nessa questão é um desafio. Questionar a figura do mito em países que tanto necessitam dele, quase uma temeridade. Mas, realmente, se trata de uma questão que induz à busca de uma resposta quando uma simples releitura dos textos gauchescos mostra que se o amor pela liberdade é uma constante, também  uma constante a contradição que existe no ato de lutar por uma terra que não lhe pertence e que, certamente, não lhe pertencerá jamais.