domingo, 4 de fevereiro de 1990

Sombras e luz


            Porto Príncipe, capital do Haiti, se encrava entre as montanhas e o mar. Bairros claros e floridos, ruas comerciais cheias de luz. Em volta, a miséria.

            Em 1961, Jacques Stephen Alexis tenta organizar a luta contra o governo que mantém essa miséria. É preso, torturado e morto. Seis anos antes, pela Gallimard de Paris, havia publicado Compère Général Soleil, uma obra que o revela um grande ficcionista e um grande poeta, sensível ao universo que o rodeia. Um universo que é feito de luzes e de sombras.

            No “prólogo”que antecede as três partes de Compère Général Soleil – do qual se diz ser um romance iluminado pela alegria de viver – dominam as sombras. O negro Hilarion, sombra mais negra do que a noite, um negro azul de tão escuro, de tão preto, percorre as ruelas do velho bairro azul-negro. A noite está deserta, escura e silenciosa. O céu é cor de ébano, as nuvens que anunciam o amanhecer aparecem em tons violáceos. Descalço, esfarrapado, faminto, Hilarion  sai do bairro Nan-Palmiste que apodrece como uma ferida arruinada nos flancos de Porto Príncipe. Deixa para trás as casas feitas de caixote, os odores pantanosos, os ruídos dos tambores. Morto de fome, decide penetrar no espaço dos ricos para roubar. E a casa estava lá, branca, no meio da folhagem. Invadi-la e roubar do  seu dono adormecido irá selar o seu destino. Verdadeiro conto a anteceder a narrativa, o “Prólogo” acompanha os passos de Hilarion, fixa o lugar da miséria e, brevemente, o lugar da riqueza onde o supérfluo é tão acintoso quanto mais convive com a falta do mais absoluto necessário. Pequenas notas descritivas se acrescentam à narrativa para tornar inconfundível um pedaço do Continente onde a miséria e a alegria se expressam pelo som dos tambores. Pequenas digressões sobre a miséria impedem esquecer que não é somente no Haiti que ela existe.

            Nessa prosa em que a emoção não afasta mas reforça, um realismo cuja crueldade o torna passível de ser confundido com o fantástico, se inserem breves textos poéticos que falam da noite. Uma noite que avança para a aurora, assim como o negro Hilarion avança para o seu destino. Quando o “Prólogo” termina,ambos foram vencidos. A noite, pela claridade; o homem, pela fome.

            Então, se inicia, no primeiro capítulo, a história de Hilarion. Uma vida inteira de maus tratos para encontrar, um dia, o ideal de justiça e por ele se dispor à luta. Num amanhecer de dia de sol, ele morre acreditando que o Haiti e seu povo encontrarão a liberdade e o direito de viver: A grande verdade é que o sol do Haití nos mostra o quê fazer.

            Mas, no Continente, a lei das sombras sempre foi a vencedora. No entanto, para aqueles que sabem ver, o compadre sol existe. Foi o que desejou deixar dito Jacques Stephen Alexis.

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