domingo, 11 de fevereiro de 1990

Sob o manto diáfano da fantasia



             Os dois primeiros livros de poesia  de René Depestre foram publicados no Haiti onde nasceu: Etincelles  em 1945  e Gerbe de sang  em 1946,  ano em que se inicia sua vida no exílio. E, somente em 1951 é que ele tornará a publicar. Autor de uma vasta obra na qual se incluem vários livros de poesia, ensaios e traduções, assim como o romance Le mât de cocagne, publicado pela Gallimard em 1979.

            Segundo seu autor, Le mât de cocagne não é  nem uma crônica histórica, nem um romance em código, nem uma obra auto-biográfica. É a história de Henri Postel, ex-senador de uma ilha tropical que, ao se opor ao governo, dele sofre as mais terríveis penas: tortura e morte de sua família e o castigo de viver no bairro mais miserável da cidade, trabalhando atrás do balcão na venda de pregos, açúcar, barbante, velas e uma dezena de outras mercadorias de uso corrente.

            Após suportar, durante cinco anos a lei ditatorial , legislando que nunca mais pudesse ter, perto dele,  nada cálido - nem mulheres, nem crianças, nem parentes, nem amigos, nem correligionários, nem o menor animal doméstico – Henri Postel decide escapar, partir para o exílio. No último instante, porém, quando estava tudo pronto para conduzi-lo ao Canadá, ele desiste para participar da competição anual de subida no pau de sebo. Conseguir atingir o cimo do mastro na competição organizada pelo Poder e que atrairá multidões, irá provar, no seu entender, que um homem sozinho e em aparência, vencido, pode reencontrar-se e induzir o povo à ação coletiva.

            A narrativa se inicia com era uma vez um homem  de ação obrigado pelo Estado a gerir um pequeno comércio situado na entrada norte de uma cidade nos trópicos. Um claro desejo de conferir a essa narrativa o tom de um conto de fadas, afastando-a, assim, do realismo mimético. Um tom que nas últimas páginas do romance será substituído pelo testemunho. Do narrador que se confessa incapaz de oferecer maiores informações sobre o personagem após a sua vitória na competição e de Elisa Valéry, último amor de Henri Postel, que numa longa carta, elucida sobre o destino de cada um dos que participaram  na   perigosa e extrema aventura do ex-senador. Como se o principal interesse da narrativa repousasse nesse destino individual, nesse ato de coragem, de força física, de alento ideológico que irá norteá-lo. No entanto, a ela se acrescentam elementos – descrições e enfoque sobre um outro personagem – que não deixam dúvidas ser o Haiti o quê, realmente, importa no romance. Um país  desenhado no ritual do vodu, na história de Pascal Joubert e nos pequenos quadros que no decorrer  da ação fixam um espaço inconfundível, a cidade de Por-au-Roi, nome que encobre o da capital do país.

            Magnificamente descritos, dois rituais do vodu: um deles exorcisa o corpo de Henri Postel do mal que o irá devorar se insiste nas suas pretensões; o outro  faz com que o ditador incorpore ou seja incorporado pelo “mât de cocagne”, para garantir a derrota de Henri Postel;  a história de Pascal Joubert,  impedido de trabalhar devido ao defeito no caminhão que o dono demorou semanas para consertar,  obrigado a vender seu sangue para poder  comer até ficar exaurido; e quando se revolta por não mais poder continuar a vendê-lo, é barbaramente torturado em praça pública pelos representantes da lei; as cenas urbanas, rápidas, que deslizam diante dos olhos de Henri Postel nas poucas vezes em que percorre as ruelas da cidade, bastam para completar o quadro de decadência e miséria em que se encontra o país.

            São momentos da narrativa que reproduzem como um espelho – com linhas mais ou menos precisas, com tons mais ou menos fortes – espaços e situações do Continente.

            Que seja, então, permitido aos leitores entender as palavras de René Depestre que antecedem as primeiras linhas do romance, como um indisfarçável e irônico refúgio: “os acontecimentos e os personagens desta história pertencem à pura ficção. Toda semelhança com seres, animais, árvores, toda similitude próxima ou distante dos nomes, situações, lugares de sistemas, de rodas dentadas de ferro ou de fogo ou com qualquer outro escândalo da vida real não podem ser senão o efeito de uma coincidência não apenas fortuita mas propriamente escandalosa. O autor declina firmemente a responsabilidade  em nome dos direitos imprescindíveis da imaginação”.

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