domingo, 18 de fevereiro de 1990

Reviver na ficção


            São os personagens de El hombre que trasladaba las ciudades,  de Carlos Droguett, que troteiam em terras do Continente antes de se iniciar o primeiro capítulo do romance. Um romance que foi dedicado a Ernesto Che Guevara. Terminado no dia 22 de junho de 1969, a Noguer de Barcelona o publicou em 1973.

            É construído em quatro partes, as quatro mudanças que sofreu a cidade de Barco até ser, definitivamente, assentada com o nome de Santiago del Estero. Antecedendo esses capítulo, após a dedicatória, três textos: o primeiro, muito breve, define a história: uma história louca porque a Espanha do século XVI também  era um ser louco;  e essa história da qual o romance se nutre, é a História da Conquista da América, de certo modo, um romance picaresco: seus personagens são aqueles aventureiros que a Espanha expulsou para  que vencessem ou para que se destruíssem, ainda mais, na América.

            O segundo texto possui um título, “Estos materiales” e oferece a chave do romance: contar de uma cidade síntese, indeterminada, apesar das mesquinhas aparências dos conhecidos tijolos, das madeiras cheirando a bosque recém cortado e poderá ser qualquer cidade, todas as cidades desta América deforme, atônita, maravilhosa e incompleta.  Porque, se a narrativa se faz a partir de datas, de fatos, de feitos, de espaços determinados e endossados pela História Oficial, mais do que a História de Barco  ela é a História do Continente.

            E, antecedendo o primeiro capítulo, um terceiro texto. Nele, Carlos Droguett  diz que seu personagem não será apresentado com palavras que digam de sua estatura, das marcas que a vida lhe fez, mas com as que apresentam seus estados de alma. Não será descrito na paisagem mas  na luz e na sombra, nas nuanças dessa luz e dessa sombra que o atravessam. Principalmente, ou unicamente, nas suas inquietações e dúvidas e sofrimentos de conquistador.

            Dom Juan Núñez de Prado é o conquistador que permaneceu na sombra quatrocentos anos para ter o seu retorno à vida  decidido pela ficção. Carlos Droguett o vislumbra na paisagem, o cabelo solto e liso, a cabeça loira e pálida, perdida,cansada.  Nem o vento soprava quando ele apareceu sob as árvores. Alguns minutos depois, apareceram os outros, trotando para alcançá-lo. Foi seu primeiro  momento de vida apanhado pelo romancista que, então, o conduz para a ficção. Junto com seus capitães e seu duzentos soldados esfarrapados e traiçoeiros, invade  as terras do Continente e delas quer a posse. Invernos e chuvas, verões de sol se acrescentam  aos dias que buscam a glória ou a felicidade simples de uma pequena casa com jardim e pomar.

            Nas dores sofridas, doenças, fome, frio e nos sentimentos de ódio, medo e amizade que experimentaram alguns  a emergirem da massa d’entre os que o acompanharam – outras tantas imagens símbolos – há uma volta à vida. Concedida pela Arte, uma vida cuja duração não mais será medida pelo nascer e pelo morrer, mas pela emoção que a leitura de uma obra de impressionante beleza – e assim  é feito esse romance de Carlos Droguett – pode provocar.

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