domingo, 30 de julho de 1989

A fuga



        São vinte e cinco breves relatos que formam o livro Los gauchos judios, publicado em 1910, primeira obra de Alberto Gerchunoff. Vindo de uma aldeia da Ucrânia para a província de Entre Rios, na Argentina, buscando se livrar dos repetidos “progroms”, parte de  sua vivência está contida nesses relatos.

            A chegada dos emigrantes europeus nos campos argentinos, seus trabalhos, suas lutas, suas vitórias, sua inevitável assimilação aparecem em pequenos quadros. Breves momentos – o passar  do arado na terra, o leite jorrando no balde, a nuvem de gafanhotos e o combate para afastá-los, um duelo entre gaúchos, o roubo do candelabro -  que se justapõem para fixar a história desses personagens que vieram em busca de um mundo mais justo, desejando, porém, refazer  em cada gesto, em cada palavra a sua tradição, seus costumes e sua fé.

            No livro de Alberto Gerchunoff são muito bem desenhados esses que vieram para a nova terra. Com sóbria precisão, o autor delineia caracteres e evoca paisagens mas não pode impedir que suas palavras contenham um mundo de emoções.

            Esses dois universos que convivem aparecem, de maneira exemplar,  no relato “El episódio de Miryam”. Don Jacobo representa um deles: Velho de barba rala, nariz curvo, faces enxutas arguto, instruído, religioso, capaz de discorrer sobre difíceis temas bíblicos. Rogelio, seu peão, o outro. Ele é o homem inculto do campo, o que executa trabalhos rudes e se exprime, magnificamente, pela música. São universos que convivem e que, sem dúvida, se defrontam porque Don Jacobo repete o que lhe foi dito há centenas de gerações e desses valores não quer se afastar. Para o gaúcho Rogelio, o passado significa silêncio e do presente só escuta o chamado para a vida, para o amor.           

            Entre os dois que tudo separa – o idioma, os costumes, as  crenças – Miryam, a bela moça loira como a tarde e os trigais. Quando Rogelio entoava uma canção no idioma para ela duro como uma pedra, respondia inevitavelmente com um canto judeu, estranho aos ouvidos do gaúcho.

            Era festejada a Páscoa. Na improvisada sinagoga, a comunidade reunida, as moças com seus trajes coloridos, os jovens discutindo a excelência de seus cavalos. Entre eles, Don Jacobo com a túnica sagrada nos ombros. A tarde era de outono e Rogelio e Miryam fugiam. Passaram como vento, erguido altivamente o gaúcho e ela, cabeleira solta, envolveu os que a olhavam com um olhar de desafio, os olhos como uma chama e quando todos voltaram a si   de seu  assombro, os fugitivos eram um ponto na distância.

            No caminho já trilhado há mil anos e nos qual os emigrantes desejam prosseguir, outro surgira diz Gerchunoff: Na estrada, a poeira levantava franjas de ouro.

domingo, 23 de julho de 1989

Um boliche no pago

            “El Resorte” é um boliche no meio do pago, boliche como deve ser: um balcão para o freqüentador se encostar, um gato instalado num canto, uma aranha no teto e, cá e lá, pendurados uns salames.

Quase seria aquela “pulperia” de que fala Sarmiento em Facundo: ali se dão e se recebem as notícias sobre animais extraviados; fica-se sabendo onde caçar o tigre, onde aparecem os rastros do leão. É ali onde se combinam as carreiras e onde se conhecem os melhores cavalos; ali está o cantor, ali se confraterniza no passar do copo. Quase seria porque, na verdade, o que mais acontece no “El Resorte”  é a confraternização, é o passar do copo. E sempre lá estão a Duvija, o pardo Santiago, o índio Olmedo e os outros que chegam, que passam. Todos recebem atenções e, se for o caso, um conselho oportuno.

O índio Olmedo, com dor de dente, escuta, do recém chegado, que deve mascar fumo. O velho Turufa, entre vários conselhos, leva em consideração o da Duvija. Chegou a “El Resorte” desesperado de sono. A filha gostava tanto de serenata que toda a gauchada do pago lhe fazia o gosto, deixando o velho, sem poder dormir. Sabiamente, Duvija aconselhou :  case a moça. E foi o que ele fez. Para voltar outro dia, morto de sono e responder quando lhe perguntaram que tal lhe tinha saído o genro: louco por bombo.

E, entre  uns tragos e um jogo de truco, o tempo sobra. Para escutar “os causos”, para contar da vida e do coração, para armar um cigarro de palha. E os freqüentadores de  “El Resorte” não se admiram de nada: um chega no boliche com uma fantasminha que encontrou perdida; outro com uma planta de estimação e, ainda, outro com um guarda chuva maluco

Agora, quanto ao passar do copo, tem que ser de vinho. Porque diz o índio Olmedo: Cristão que se põe a tomar gasosa quando todos estão tomando vinho, não gosta de ninguém. Tomador de gasosa nem para vizinho serve.

E ao chegar um forasteiro, o pardo  Santiago se pergunta quanto tempo é preciso para que ele se torne de casa. E nisso pensava  quando, ao ouvir um galope, no melhor estilo de “gaúcho mau”,  o estranho se encosta no balcão empunhando a arma. A Duvija, solícita, lhe pergunta: Quer que lhe esconda o cavalo, forasteiro? Certamente, os tempos são outros porque o valente responde: Não esconda nada porque depois não acho o cavalo e vou ter que ir embora a pé.

Um mundo de amizades e de loucuras que, no contar risonho e terno de Don Verídico (Don Verídico se la cuenta, Montevideo, Ediciones de La Flor, 1975), só pode parecer verdade e não essa incrível e maravilhosa invenção de Julio César Castro o uruguaio dono de mil histórias, todas inigualáveis na arte de  fazer rir.

domingo, 16 de julho de 1989

O rastreador

            São quatro as figuras do Pampa argentino,  descritas magistralmente  por Domingo Sarmiento no seu livro Facundo: o vaqueano, o “gaúcho mau”, o cantor e o rastreador. Este, diz Sarmiento, o mais extraordinário de todos, uma pessoa grave, circunspeta, cônscia do saber que possui. Saber que o torna respeitado, temido. Sua palavra é lei e ricos e pobres podem vir, um dia, a precisar dela ou de seus serviços. O rastreador sabe seguir nas amplas planícies, onde se cruzam trilhas e caminhos em todas as direções, onde em campos abertos pasta o gado, o rastro do animal e distingui-lo entre mil.
 
            Facundo foi escrito em 1845. Em nosso dias, Don Verídico, fala de um outro rastreador. Em Don Verídico se la cuenta, Julio César Castro recria um universo campeiro povoado de jogadores, pintores, apostadores, trançadores e outros tantos que, abstraindo o exagero do narrador, um Barão de Munchaussen local, fazem parte de um cenário circunscrito ao “rancho”e ao “boliche”, os dois polos entre os quais eles se movimentam.

            É no boliche “El Resorte” que as coisas acontecem. Quase sempre, lá estão os mesmos freqüentadores com seu copinho de pinga ou congregados ao redor de um garrafão de vinho. E, nos melhores dias, congregados, também, ao redor de uns pedaços de queijo. É para lá que se dirigem todos os habitantes masculinos do pago para expor suas preocupações, contar suas penas, procurar soluções . Lá, se encontraram  Clemento Saliva e Nicanuto Lereno. O primeiro, tomando pinga perto do balcão e como que meio bravo porque era assim que estava desde que lhe fugira a mulher.. Viu entrar Nicanuto Lereno, o rastreador. Dele se aproxima para dizer que os homens foram feitos para servir uns aos outros e que por isso e, também, por conhecer sua fama, queria pedir que lhe  encontrasse a mulher.

            O rastreador respondeu que isso de ir embora era típico de mulher. O marido explicou que não era tanto pela mulher a tristeza mas por que ela havia levado junto um poncho que era dele e da maior estimação. Compreensivo, o rastreador não pode se negar de prestar-lhe a ajuda pedida e foi embora a pé, puxando o cavalo pelo cabresto. Ele era um rastreador, dizia Don Verídico, que tanto rastreava bicho como cristão. Qualquer coisa lhe servia para marcar o rumo: um capimzinho seco, um fósforo apagado, a maneira do quero-quero gritar, a cara de susto de uma aranha, uma formiga de perna quebrada.

            Era uma fama pesada de carregar. Nicanuto Lereno chegando em casa mateou a noite inteira. E foi lá pela madrugada que ele falou na direção do quarto:
- Chê, Forina!
 -Que?

 -Junta tuas coisas e volta para casa. Não esquece de levar o poncho.

domingo, 9 de julho de 1989

Olhares indiscretos

            “e então, James Stewart com seu jeito de cara legal, claro que diz uma piada e o filme termina com gargalhada final de todo  elenco como nos filmes americanos que não se decidem entre a tragédia grega  e os três patetas. Estas são as considerações finais do narrador de “El diablo son las cosas”, conto da cubana Mirta Yañez, parte do livro homônimo, referindo-se ao filme Janela indiscreta. E, a propósito da coincidência de estar vivendo uma situação semelhante à de James Stewart, observador forçado do que se passa na casa em frente a sua janela:  o ritual cotidiano da velha professora que, ao voltar para casa, todas as tardes, toma chá sem açúcar, rega as plantas e senta-se para tomar o ar fresco do anoitecer. Tranqüilidade interrompida pela presença de um camundongo na sua cozinha e da necessidade premente de se livrar dele. Tentativa que procura meios incruentos como entupir com jornal todos os cantos onde o camundongo possa se esconder. Porém, como as disposições tomadas foram se mostrando ineficazes, acabou por se estabelecer uma convivência pacífica entre os dois personagens. Até que o acaso deu cabo do camundongo: a porta batendo no exato momento em que ele passava, lhe tira a vida que muito  garbosamente, defendia.

            O observador de perna engessada que tudo acompanhava da janela, presenciou, então, o choro sentido da velha professora e escutou a sua melancólica observação: como são as coisas desta vida.

            Embora se trate de solidões, a do observador, a da velha professora e a do camundongo, o tom informal, por vezes trocista da narrativa, evita um comprometimento mais profundo com  personagens  e situações que, somente determinadas características idiomáticas e dois ou três  referencias permitem situar no espaço do Continente. 

            Não é o que acontece em “La risa”, conto de Eduardo Gravina que faz parte do livro Despegues (Prêmio Casa de las Américas, 1974) em que a cidade na qual  se passa o episódio não é mencionada mas é espaço iniludível. Numa de suas ruas, de seu quarto de pensão,  estudantes se divertem espiando a vizinha que mora na frente e que, todos os dias, aparece, perturbadoramente  fiel,  na sacada:  esplêndida jovem de flutuante cabeleira loira, rosto de beleza nórdica. Seguem-lhe os gestos e os passos na expectativa de um olhar, um sorriso, uma palavra, recebendo, em troca, somente um  cauto, um breve evanescente movimento de cabeça, nunca dos lábios.  O imprevisto acontece com a chegada, a desoras,  do pai da jovem musa. A quase chegada, aliás, pois a embriaguez que o conduzia aos tropeções, o deixou a meio caminho. Na sacada, os observadores, incautos, deixam escapar a gargalhada que a situação propiciava. Inesperadamente, surge na calçada, para ajudar o pai, a bela vizinha e, pela primeira vez, ouvem-lhe a voz numa frase que lhes chega como um copo de cicuta: idiotas, mal educados, ordinários.  Palavras suficientes para oferecer-lhes a grande decepção  - adeus divindade nossa, adeus jogos de imaginação e ao conto dar o seu final.

            No Continente, porém, raras vezes, as intenções da narrativa são ingênuas. Em “La risa”,  o autor uruguaio apenas menciona os golpes e as prisões sofridas por estudantes, mas descreve, detalhadamente o vir pela rua aos trambolhões, o cair após as evoluções prévias, o lutar para passar da posição zoomórfica para a antropomórfica de um cidadão considerado pelos estudantes como “coronel anti- subversivo”.

            Com certeza, pouca ou nenhuma relação com o final feliz moralista em que pontificou James Stwart em A janela indicreta. No Continente Latino-americano, os olhares indiscretos seguiram em Cuba os passos espertos de um camundongo e seu tragicômico destino; no Uruguai, os passos cambaleantes de uma autoritária figura que, em pleno dia, os excessos etílicos levam a perder o equilíbrio e a tão imprescindível compostura.

            Talvez uma metáfora. Certamente, uma catarse irrenuncíavel para quem escreve e, imprescindível para quem lê pois não é fácil  continuar respirando em meio aos miasmas do Continente.

domingo, 2 de julho de 1989

Carlos, o patriota

            É um dizer como quem não quer nada, insinuado em contos que tem o seu curso se alinhavando num fiapo de história. Estudantes que perdem mais tempo em observar a vizinha da frente – radiosa cabeleira como uma acácia em flor- do que em estudar; a conquista amorosa a   partir de uma partitura musical; a viagem dos contrabandistas cegos num trem que atravessa o país. Uma linguagem pontilhada de expressões populares, sugerindo uma ingenuidade negada pela expressão culta que aparece perto. O efeito dessa mescla, irônico ou cordialmente cômico são farpas que denunciam situações na aparência inofensivas.


            “Despegues”, título de um dos textos e do livro de Alfredo Gravina  que foi Prêmio Casa de las Américas em 1974.   Como diz  Rodolfo Walsh, embora não nomeado  é o Uruguai a grande presença do livro: o  Uruguai empobrecido e enfastiado e seus heróis da luta cotidiana. Naturalmente, um Uruguai que é parte do Continente quando perde seus filhos para os países industrializado, quando possibilita e encoraja o culto pelo dólar porque parece ser unicamente a salvação  que resta. É disso que se trata no conto “Música e dólares”: um músico se contrapõe a uma comunidade voltada para as duas únicas soluções tidas por possíveis diante dos problemas econômicos: emigrar, procurando em outros países as oportunidades de trabalho o  quê no seu próprio país é negado. Ou, converter tudo em dólar: Estava alucinada pelos dólares, coitada. A gente a ouvia, como a tantos outros, comentar sobre o dólar e as subidas do dólar e as negociaçõe, negócios e negocinhos que essas subidas ofereciam. Durante a temporada de verão, Fulano alugava em dólares seu chalezinho de Punta del Este; Beltrano tinha se apurado para comprar dólares e viajar para a Europa quase de graça, já Fulaninha tinha em previsão tantos dólares embolsados, Sicrano vendia um terreno em disparada para comprar dólares; Beltrano punha proa em direção da Austrália à caça de dólares, Sicrana, que era uma avarenta tirava suas economias do banco para inverter nos dólares. O dólar retumbava em todas as cabeças. 

            São essas as observações de Carlos, o enraizado, aquele que só pode viver entre os seus, na sua geografia. Embora sem dinheiro e sem grandes possibilidades de ganhá-lo, embora sem oportunidade para realizar consertos. Inesperadamente, recebe convite para sair do país: uma carta lacônica vindo do exterior oferecendo um contrato para ensinar guitarra no exterior numa afamada instituição com pagamento em dólar aterrissou em sua casa           para povoá-la de esplendor e alegria. Sua mulher, eufórica, no mesmo instante, fez rapidamente as malas. Para ficar sabendo, alguns dias mais tarde, que o marido não abandonaria o país. Aproveitou as malas feitas para voltar para a casa do pai e pedir o divórcio porque, no seu entender, era impossível viver com alguém que desdenhava dólares e, assim,  a conseqüente oportunidade de se salvar.

            Para Carlos, aceitar a proposta estrangeira seria baixar a guarda, seria encarar a possibilidade de deixar seus pais na velhice; seria viver num país onde, no inverno sobraria neve e onde o tempo todo faltaria erva para o chimarrão. Seria, sobretudo, abandonar o barco avariado.

            Tendo em vista a importância da avaria e, principalmente, aquele que está no timão, não há dúvida que se tratou de uma opção , no mínimo,  patriótica.