domingo, 28 de maio de 1989

A milonga do retruque

            Em 1965, Jorge Luis Borges publicava em Buenos Aires, Para las seis cuerdas, reunião de suas milongas. A milonga é uma canção popular, geralmente sentenciosa e alegre, acompanhada de guitarra e muito do gosto dos platinos. Na pequena nota introdutória que as precedem, Borges aconselha  o leitor a suprir a música ausente pela imagem de um homem que cantarola na soleira de um saguão ou num armazém, acompanhando-se com a guitarra. A mão se demora nas cordas e as palavras contam menos que os acordes. A essa primeira edição de nove milongas, seguiu-se outra, cinco anos depois, da quais o autor retirou uma delas e acrescentou outras três. O livro passou, então, a ser formado por doze milongas. A terceira tem por título “Donde se habrán ido?”  (Para onde foram?) . Uma reflexão essencialmente borgiana sobre o perene e o transitório. Sobre as eternas repetições e o finito causado pelo passar  do tempo. Desta vez, a repetição infinita é o brilhar e o morrer do sol, a presença cotidiana da lua. O passageiro, a breve presença do homem na terra. E, nostálgico, o lamento do desaparecimento dos valentes de outrora, dos que libertavam nações, dos que, na guerra, marchavam em batalhões. onde estão os que morriam / Em outras revoluções?, ele pergunta. E afirma: Acabaram-se os valentes/ e não deixaram sementes.

            Trazendo como epígrafe esses versos, “Milonga de contestación”( Milonga de resposta), uma das onze milongas  que fazem parte do livro Cuestiones con la vida de Humberto Costantini. Ele não leva a sério que palavras contam menos que acordes e mensura os versos de Borges. Com humilde ironia, opondo sua guitarra modesta à de Borges, guitarra luxuosa, se atreve a dar um retruque. Porque não é bom que o silêncio permita que homens valentes sejam, humilhados pelo esquecimento, pedindo, por tal razão, para remediar esse descuido.  E, escolhe três nomes: Morales, o nicaragüense que, para cobrir a retirada de seus homens, sozinho, enfrentou mais de duzentos e cinqüenta; Irurzún, que no Paraguai, livrou a América do ditador Somoza. E o Che, cujas façanhas, no seu entender, honrariam, muito mais o poema de Borges do que as turvas proezas dos esquecidos Chiclana e Muraña. Borges, teu destino era / cantar Ernesto Guevara diz, enlaçando nos mesmo versos essas duas  figuras díspares. E, certamente, não precisando  de mais nomes, continua a versejar pois, no seu entender,  esses três são suficientes para dar por encerrado o assunto de que já não existam valentes. E conclui: Já vês, Borges, que aí estão / e aí estão seus corações / e ainda há valentes que morrem /em outras revoluções.

            Em Borges, o desalento que força o olhar para o passado, talvez. Em Costantini, a exaltação do presente a olhar para o futuro. Ao leitor de decidir, de refletir sobre as ações oriundas das lutas que hoje coexistem e decidir se aqueles que a praticam são os valentes ou os covardes de nosso dias.

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