sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pablo Neruda e Portugal 2

           Chegaram à ilha no inverno. Já era noite e a costa se mostrava “esbranquiçada e altíssima,Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974). Doze anos depois, Matilde Urrutia acrescenta às lembranças de Pablo Neruda desses dias em Capri, a sua própria emoção. Em Mi vida junto a Pablo Neruda (Barcelona, Seix Barral, 1986), relata que estava de cama e febril. Havia perdido o filho que esperava e que ambos tanto desejavam. Em meio a sua preocupação, Pablo Neruda, de repente, se põe a escrever. Seus olhos brilhavam, diz Matilde Urrutia, de “esperança e triunfo” e ao terminar, disse “- Neste dia em que nos sentimos derrotados vou lhe dar um filho que acaba de nascer, irá se chamar Las uvas y el viento”. Era em fevereiro de 1952. Dia 10, precisa Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta, Santiago, Zig-Zag, 1967), acrescentando que  no discurso “A la paz por la poesia”, pronunciado por Pablo Neruda no Congreso Continental de la Cultura” que se realizou, em Santiago, em março de 1953, ele menciona que no livro, ainda sem o título, recolhe  “o que mais amou da antiga e nova Europa” (por nova Europa considera a Europa socialista) e desejando que seja a sua contribuição para a paz. No ano seguinte, Las uvas y el viento é publicado (Santiago, Nascimiento) e dele fazem parte poemas que escrevera  a partir de 1949, uma espécie de diário poético de viagem, diz Emir Rodríguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966), quando impedido de voltar ao Chile onde ainda vigorava o mandato de prisão do dia 5 de fevereiro de 1948, promulgado pela Ministério de Justiça de seu país, para castigá-lo, pelos textos em que acusa o presidente do país de traidor. Perambula pela Europa e pela Ásia. É recebido por amigos e por países e, também, perseguido pela polícia política, por instâncias do governo do Chile. Prêmios lhe são outorgados, suas obras são editadas. E ele viaja com os olhos abertos e o coração receptivo à solidariedade e à esperança.
desconhecida e calada”. Depois, foram as descobertas, nos longos passeios, o trabalho de cada manhã, compondo esse “tempo inesquecível” de que fala o Poeta em 

            Las uvas y el viento possui vinte e um cantos, compreendidos entre um “Prólogo” e um “Epílogo”. O “Prólogo” tem por título “Tenéis que oírme” (“Tendes que me escutar”) também o último verso do poema, só que antecedido do advérbio “ahora” (agora), enfatizando esse pedido (ou ordem) que o Poeta justifica: foi pela Europa “entre as uvas” e pela Ásia “sob o vento”, recolhendo “o melhor da vida”, “o melhor de uma terra e outra terra” com o seu canto. “El canto compartido” (“O canto compartilhado”) é o epílogo. Pablo Neruda está de volta ao Chile nesse 12 de agosto de 1952 e o poema foi escrito entre a cordilheira e o mar para dizer que voltou, cantando, sem um resquício de ódio no peito – dir-se-ia que o desterro e as perseguições de que foi vítima o justificariam – e a espalhar as uvas e o vento. E que, renascido no sangue de seu povo, para todos é o seu canto. Como é fruto das vivências que o enriqueceram desde que saiu, fugido de seu país, até a tão almejada volta depois de mais de três anos. No primeiro canto, “Las uvas de Europa” e no segundo, “El viento en el Ásia”, oferece, na visão do Velho Mundo e do Novo Mundo Asiático, o sentido do título. A seguir, se sucedem os cantos que dedicou a Polônia, Espanha, Checoslováquia, Rússia, Itália, Mongólia, Grécia, Estados Unidos, Alemanha, Coréia, Inglaterra, Vietnã, Hungria, França, Romênia.

            O décimo quinto canto, “La lámpara marina” (“A lâmpada marinha”) é dedicado a Portugal e se compõe de cinco poemas: “El puerto color de cielo” (“O porto cor de céu”), “La cítara olvidada” (“A cítara esquecida”), “Los presidios” (“Os presídios”), “El mar y los jazmines” (“O mar e os jasmins”) e “La lámpara marina”. Neles, se entrelaçam as impressões que Lisboa lhe causou anos antes e a situação política do país na época em que escreve os versos. Nas memórias que publica na revista O Cruzeiro Internacional (Rio de Janeiro, janeiro-junho,1962), sob o título “Las vidas del Poeta”, lembra no capítulo terceiro, “Los caminos del Mundo”, a sua primeira viagem à Europa de onde seguiria para assumir as funções consulares em Rangum. Partiu, “um dia de junho de 1927” de Buenos Aires, no “Baden”, um barco alemão que, entre uma escala e outra, aportaria em Lisboa: “Aquela Lisboa alegre daqueles anos com pescadoras nas ruas e sem Salazar no trono”, como a definirá. Uma cidade que o encheu de assombro com suas casas coloridas, seus velhos palácios. Nos poemas, escritos mais tarde, estarão presentes as cores do céu, das casas, do oceano, das janelas, das ruas, dos montes; e os aromas e o rumor dos cantos. Portugal se desenhando como “cesta de frutas e flores”, reminiscência das “grandes bandejas de frutas” a coroar a mesa no pequeno hotel em que esteve no longínquo ano em que desembarcou na Europa.

            Se nas suas memórias, como lembrará mais tarde, Salazar ainda não pontificava, nos poemas não mencionará o seu nome. Indica-lhe a presença em comparações e metáforas que dizem de seu poder absoluto, como o fizera em 1945, no poema “Dura elegia”, em que homenageia Luís Carlos Prestes, preso na ditadura de Getúlio Vargas: “tirano”, “aranha implacável”, detentor de um “silêncio de rato” e de ”pequenas asas de morcego frio”. Claramente, Pablo Neruda testemunha sobre os atos que preservam o totalitarismo em Portugal: “Lápide” significa a opressão, ampliada no símile “como tumba”; ou “como túnica de clerical morcego”, numa aproximação inusitada quanto à relação substantivo/adjetivo (“clerical morcego”) e, óbvia, ao sugerir a figura do déspota português, reconhecidamente religioso. O que é reafirmado no poema seguinte, quando, outra vez, surge o adjetivo “clerical”, determinando “pó”, um pó “acumulado em Coimbra”, em cuja universidade Salazar havia feito seus estudos e onde fora professor. Porém, mais do que atacá-lo e a seus asseclas – “carcereiros de luta, retóricos, corretos”, “polícia”, “cúpulas de sombras” – indicados, sobretudo, por verbos (escutam, rondam, arreiam presos para as ilhas, condenam ao silêncio, procuram portugueses, cavoucam o chão, destinam os homens à sombra), Pablo Neruda, criando um mundo em que as cores e a luz se transformam em luto e em sombras, desenha Portugal. Com imagens de flor e de mar: “esplendor de roseiras e racemos”, “luz matutina de cravo e de espuma”. Principalmente, se fixando no significado de seu papel na História, ligado, fortemente, ao mar: “Portugal, navegante,/descobridor de ilhas,/inventor de pimentas”.Um significado que lhe impõe a tarefa de continuar a servir os valores que o conduziram no passado glorioso – “embarcação valente”, “Proa da Europa”, “descobridor de auroras”, “pai do horizonte” –, mas, visando o presente, já, então, feito de um “novo homem” e da presença “do pão sobre a mesa”.

            Um caminho de transformações a percorrer. O Poeta, peremptório, o ordena a Portugal, no vocativo, que inicia o quinto poema, num suceder de verbos: torna, mostra, não escondas, descobre, rompe. O verbo tornar, remetendo ao passado de mar e de navios, da terra, do marinheiro, do pensar livre; mostrar, remetendo ao tesouro humano que lhe pertence e à capacidade de ultrapassar o mar escuro; descobrir, ao novo homem e seu direito ao alimento; romper, às teias de aranha que o encobrem. Nos últimos versos, mais incisivos, os imperativos e outra vez o vocativo Portugal: “Navega, Portugal, a hora/chegou, levanta/tua estatura de proa/e entre as ilhas e os homens torna/a ser caminho./Nesta idade agrega/tua luz, torna a ser lâmpada:/aprenderás de novo a ser estrela.”

            Desafio de rebeldia que foi sendo construído em sinuosidades: a cidade, sugerida em cores a contrastar com um ambiente sinistro de delação; o país, que emerge “na beira prateada do oceano” e esconde Álvaro Cunhal, Militão, Bento Gonçalves, “o português mais puro,/a honra de teu mar e de tua areia”, a ilha do Sal e Tarrafal, o cárcere político; o silêncio que não impede a palavra e percorre “não apenas Portugal”, porém a terra inteira; a herança de Camões e de Guerra Junqueiro em cantos que florescem ou são como trovões. E a pergunta, incisiva e escandalizada: “como podes negar-te/ao céu da luz tu, que mostras-te/caminhos aos cegos?” e, próxima das convicções que  norteiam o Poeta, ainda outra pergunta: “como/podes fechar a porta/aos novos racemos/e ao vento com estrelas do Oriente?” Relacionada com o título do livro e o seu significado, reafirma a crença de Pablo Neruda nas dádivas, “novos racemos”, “vento com estrelas” que podem representar a orientação socialista, estabelecida em muitos dos países que visitou na Europa do Leste e na República Popular da China.

            Igualmente sinuoso, vai-se compondo o poema num tom que oscila entre o grandiloquente e a simplicidade coloquial; em palavras que ora se combinam para o metafórico, ora para o prosaico; no entrelaçar de passado e presente a buscar esse futuro de vida harmoniosa e plena e justa que o Poeta almeja para todos e no que há de mais simples: “A súbita/aparição/do pão/sobre a mesa”.



Curitiba, junho de 2004



domingo, 7 de junho de 2015

Pablo Neruda e o Capitão *


            No dia 18 de julho de 1943, estava sendo enterrada na cidade do México, Leocádia Felizardo Prestes para descansar de uma vida de amargurada e trabalhosa velhice. O filho preso, Olga, sua mulher, judia alemã, entregue, pelo governo brasileiro aos nazistas e levada, do Rio de Janeiro para Hamburgo, num cargueiro que – assim diz Jorge Amado em Vida de Luis Carlos Prestes: O Cavaleiro da Esperança –, “reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros”.  Logo ao chegar na Alemanha, presa em Barnimstrasse, deu à luz a uma menina que será criada sem alimento suficiente, sem condições de higiene, até pouco mais de um ano. Numa luta ferrenha, ajudada pelos pedidos, protestos, clamores, chegados de todas partes, a avó irá resgatá-la da prisão, mas a luta em prol da liberdade do filho não a deixa, ainda, calar-se. É impedida de voltar ao Brasil. No México, onde foi recebida, vive na incerteza e na angústia de saber que, no Brasil, estão martirizando o seu filho. Quando morre, erguem-se vozes, pedindo ao governo brasileiro alguns dias de liberdade para Luis Carlos Prestes – o general Lázaro Cárdenas, ex-presidente do México, garante com a própria pessoa, a sua volta para a prisão – assistir ao funeral.
Pablo Neruda que, no México, há três anos, representava, como cônsul, o seu país, expressa ao embaixador do Brasil, esse desejo que é de tantos e recebe como resposta – subterfúgio sempre tão usado para denegrir o inimigo político – que Luis Carlos Prestes estava detido por delitos comuns. O poeta polemiza, publicamente, com ele. Era o tempo da França invadida pelos alemães, era o tempo de Estalingrado e na sua intensa atividade criativa e política, já se mostrava evidente que, em Pablo Neruda, o poeta e o combatente eram inseparáveis. Getúlio Vargas se recusa em atender o pedido que lhe fora feito e Pablo Neruda, contrariando conselhos de amigos para que evitasse, como representante de seu governo, de se expor às críticas, comparece ao enterro de Leocádia Felizardo Prestes, levando flores e um poema.
Um longo poema que, no dia seguinte, é publicado na imprensa mexicana e fará parte, como “España em el corazón”, “Canto a Stalingrado”, “Nuevo canto de amor a Stalingrado” “Canto a los ríos de Alemania”, entre outros, de Tercera residencia (Buenos Aires, Losada, 1947), livro que reúne poemas pertencentes ao ciclo da Guerra da Espanha e da Segunda Guerra Mundial e, também, os desafiantes versos em defesa de Tina Modotti, e aqueles que enaltecem a Simon Bolívar e a Luiz Companys. A mãe morta, o filho preso, impedido, pela vontade expressa de um ditador, de estar presente no enterro, a inutilidade dessa prisão para a luta que se trava em prol de mudanças, que nada irá impedir de ocorrer, são inequívocos motivos para o poeta e seus claros, constantes e incansáveis compromissos políticos. E nos versos que, então, escreve, mais uma vez, procurando a justiça, a inspirada qualidade e a profunda dimensão lírica ultrapassam os limites de um simples registro de fatos deploráveis.
            Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda narra o episódio que, assim como a tantos, o indignou faz menção a esse poema “em honra de dona Leocádia, em lembrança de seu filho ausente e em execração ao tirano” e se refere à sobriedade dos primeiros versos e do tom violento que a eles se acresce, para designar o “déspota brasileiro”. No título, “Dura elegia”, significados possíveis do adjetivo – áspero, implacável, inexorável – e o gênero poético, “canto plangente”, sob o qual se abriga o poema.
            Nove estrofes de um número desigual de versos, o compõem. Inicia-se com um vocativo, “Senhora” que, não apenas deve ter suscitado emoção entre os presentes da cerimônia fúnebre, ao ser lido, como guarda, ainda, grande potencial lírico que o cruel, injusto e arbitrário desencontro entre mãe e filho torna perene. E, imediatamente, lhe confere o poeta o invejável feito de ter tornado, pelo seu filho, a América bem maior. Dando voz a todos aqueles que desejam tê-la, assume, então, a voz coletiva que lamenta a ausência do filho, testemunha que muitos foram os que vieram para suprir o adeus negado e invoca os libertários da América, estejam eles vivos ou mortos, para ocupar esse lugar vazio. O uso de um nós, que elude o individualismo para compartilhar dessa herança de luta e infortúnio que foi, por ela, “mãe de pranto, de vingança, de flores”, “mãe de luto, de bronze, de vitórias”, deixada; para seguir-lhe o exemplo de “mãe de fogo e de cravos”, de “látegos” e de “espada”; para jurar que não haverá pausa – nem sono, nem sonho – até que seu filho volte. Para reafirmar, no possessivo repetido, serem todos donos do Continente e reiterar que o combate, que se trava, é insubmisso. E para louvar, engrandecido pelo caminho que percorre e pelo ideal que busca, a Luiz Carlos Prestes. Um caminho que obstáculos não cerceiam: “Não há cárcere para Prestes que esconda seu diamante”. Que vontades – a do “pequeno tirano”, “com suas pequenas asas de morcego frio”, com seu “turvo silêncio de rato” ou de “aranha implacável” – não vencem. E um ideal que o situa como “grande irmão”, ao lado dos “pais da América: “heróis coroados de fúria, de neve, sangue oceano, tempestade e pombas” e merecedor das enaltecedoras, encomiásticas qualidades que emergem em metáforas – é um “rio puro de águas colossais”, é uma “árvore de infinitas raízes” – e em símiles para dizer de seu coração a sobressair, “através das grades de ferro da prisão”, “como nas grandes minas do Brasil a esmeralda”, “como nos grandes rios do Brasil a correnteza”, “como brasa de centelha e fulgores”.
Se o poema é incisivo e, sem peias, chama de tirano o governante brasileiro e o compara a seres funestos e se, exasperado, lamenta, a mãe privada de seu filho, na vida e na morte – “Para tua sede negaram a água que criaste” –, esse arbítrio e essa dor se constituem incontestes razões para desalentos. Mas, revelando o amor à vida que nutriu sempre o poeta, como a confiança na felicidade possível, seus versos se iluminam na figura de Luis Carlos Prestes: um condutor de homens, “cheio de luz e de grandeza”, “claro capitão” que, embora ausente e “acorrentado”, conduz o combate. O mesmo combate do poeta e de todos aqueles que se abrigam nesse nós, expressão coletiva , sujeito dos verbos “mudaremos”, “romperemos”(o que machuca e faz sofrer) e dos verbos que prometem um mundo melhor (“inundaremos de luz a tenebrosa cárcere que há na terra”)  e, categoricamente,  a vitória. Ações visando um futuro que o tempo do verbo preconiza e que o advérbio, pleonástico “amanhã” torna certo e próximo. Como certa e próxima a presença do Capitão.
Em 1945, diante dele, que, depois de dez anos, saíra da prisão e das cento e trinta mil pessoas – dizem – que estavam no Estádio Municipal do Pacaembu, Pablo Neruda pede silêncio para as palavras do “Capitão do Povo”. E, Luiz Carlos Prestes, então, falou, recordará o poeta, em Confieso que he vivido, “com a serenidade de um general vitorioso”.

* Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano I, n. 3, Jun-Ago, 2004, p20


sábado, 6 de junho de 2015

Memórias de inverno *

            Ele não tem nome. Por vezes, o chamam de sábio e sábio ele se mostra ao dominar a difícil arte de envelhecer. Na véspera de fazer noventa anos, ao terminar o borrão da nota que escrevia, cada semana, para o jornal, cujo assunto, como vinha prevendo há meses, não desejava que fosse o sólito lamento pelos anos idos, senão o contrário: uma glorificação da velhice, percebe o sol entre as amendoeiras e o som de um barco, entrando no porto. Pensou Ai estão a chegar meus noventa anos e decide, nesse momento, honrar a data. Com esta intenção se inicia Memoria de mis putas tristes, último livro de ficção de Gabriel García Márquez que a Sudamericana, de Buenos Aires, publicou em outubro de 2004. Contrariando o título, a memória é escrita para se contar, a partir desse dia que foi o começo de uma nova vida numa idade em que a maioria dos mortais estão mortos. Porque, à pretensão de comemorar, galhardamente, seu aniversário, se seguiram muitos sentimentos que serpenteiam na sua narrativa. Embora ela se faça na linearidade do presente, episódios de sua infância, juventude e idade madura, assim como aqueles de um passado próximo, se lhe intercalam, conferindo-lhe um movimento sinuoso que, no entanto, não a priva de seu ritmo vivaz. Por ser feita em primeira pessoa – um narrador que possui um conhecimento limitado do que sucede a seu redor – nela sobejam as zonas de sombra, isto é o que deixa, então, de ser referido e se oferecem as reflexões daquele que narra.

Sobre si mesmo, o narrador de Memoria de mis putas tristes dará parcas e esquivas informações que uma ou outra frase, dita por algum seu interlocutor, irá completar. Acredita não ter méritos nem brilhos e que nada teria a legar aos que virão depois dele não fosse a memória de seu grande amor. Da menina, por quem se apaixona, ele dá a conhecer em breves traços que mal lhe desenham um perfil: o nariz altivo, os lábios finos e intensos, os pômulos altos, o cabelo curto e crespo, a pele queimada por sóis de mar bravo; ou, naqueles que apontam para as mudanças harmoniosas conferidas ao corpo adolescente pelo passar do tempo. Mais, ele não diz, porque, sobre ela, tudo ignora, salvo a emoção que sente diante de sua presença adormecida. Desconhece o seu nome e se recusa a ouvi-lo; quando procura por ela, querendo conhecer seu paradeiro, ou como está, algo se interpõe e ele fica sem saber.

 Seu relato, pontilhado de alguma irônica sutileza, de alguma efêmera e ligeira troça, de alguma dúvida que ficou sem resposta, é, também, a expressão do que o seu viver tão longo lhe ensinou: ser um triunfo da vida que a memória se perca para o que não é essencial, mas não para o que tem importância; que a velhice, a gente não sente por dentro, mas de fora tudo o mundo vê; que a idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente. E assim, perfeitamente lúcido e dono de si mesmo, convicto e enamorado, se permite viver a aventura amorosa que irá lhe trazer de volta a primavera.

Imaginar tal história de amor, construí-la sem entraves, é dado somente a quem se revela mestre de seu ofício. O escritor colombiano já demonstrara sê-lo no seu primeiro livro, La hojarasca  (1955) e nos que se lhe seguiram: El coronel no tiene quien le escriba, (1961), La mala hora (1962). E, Cien años de soledad (1967), o fabuloso êxito editorial que, não apenas, lançaria uma imensa luz sobre seu autor, como seria um marco definitivo para consolidar a descoberta da esplendorosa riqueza da Literatura Latino-americana.

            Em 1982, Gabriel García Márquez receberia o Nobel de Literatura. Na sua produção posterior, El amor em los tiempos del colera (1985), Del amor y otros demonios (1994) e Memoria de mis putas tristes serão três esplêndidos e surpreendentes clássicos da expressão do amor. Magnífica expressão lírica de um  romancista no seu itinerário de perfeições.

    * Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano 2, n.6, 2005

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Pablo Neruda e Portugal 1

           Em 1927, vindo de Buenos Aires, desembarcou em Lisboa, breve pausa de um longo itinerário que o conduziria a Rangum para assumir funções consulares. Dessa breve estada em Portugal, deixou testemunho nas suas memórias e no poema “La lámpara marina” que escreveria mais tarde.  E presente, também está Portugal no poema “Saudade” do   livro, Crepusculario.

É o primeiro livro do poeta e como relata em Confieso que he vivido, publicado, em 1923, as suas expensas, numa a aventura cujo preço foi a venda de uns poucos móveis e o empenho do relógio que, solenemente, lhe tinha sido dado pelo pai. No entanto, lhe propiciou muita alegria e um momento, dirá mais tarde, que nunca mais voltará: “Virão muitas edições mais cuidadas e mais belas. Chegarão suas palavras transferidas na excelência de outros idiomas como um vinho que canta e perfuma em outros lugares da terra. Mas, esse minuto em que sai fresco de tinta e terno de papel, o primeiro livro, esse minuto arrebatador e embriagante, com sons de asas que revoluteiam e de primeira flor que se abre na altura conquistada, esse minuto está presente uma só vez na vida do poeta”.

            Foi escrito em Santiago, precisamente na pensão da rua Maruri, 513 e os quarenta e oito poemas que dele fazem parte se abrigam sob cinco títulos – o poeta os chama de capítulos – sendo “Los crepúsculos de Maruri”, o terceiro e no qual se inscreve “Saudade”. Palavra (título, também a iniciar o poema e a finalizá-lo) que, é sabido, não pertence à língua do poeta. Assim, nas quatro estrofes, constituídas de quartetos de rimas intercaladas, Pablo Neruda procura o seu sentido. Perguntando sobre um significado que nem os dicionários empoeirados e antigos, nem outros livros lhe oferecem. E que define como “doce” e de “perfis ambíguos”. Ampara-se, então, na palavra alheia (“dizem”), na emoção de um amigo, ao pronunciá-la e na presença que presume em Eça de Queiroz (“sem olhar a adivinho”). E, ainda, insatisfeito, interpela alguém sobre o que quer dizer essa palavra. Porém, continua sem resposta, preso, apenas, à sonoridade: um tremor delicado. E a repete, seguida de reticências, fazendo dela, o último verso do quarteto.

            Se a primeira estrofe do poema, apesar da rima, da sinestesia e da antropomorfização da palavra, presentes no último verso, está próxima de um texto em prosa, nas demais, o poeta irá entrelaçar imagens e sugestões com elementos que serão uma constante nos seus versos: palavras remetendo ao amor, à natureza, às cores, a um interlocutor, ao próprio sentir. Aproxima da palavra saudade, também sem mencioná-la, substituída por pronomes, o destino dos amores distantes que nela se entristecem, elementos do mundo animal, tonalidades (os azuis das montanhas, dizem que são como ela, palavra branca), um amigo (valorizado pelos adjetivos “nobre” e “bom” e por ser amigo das estrelas) e a expressão do sentir de outrem e de si próprio ao pronunciá-la. Nessa atribuição de cor e de mistério, de doçura e de ser inatingível (comparando-a com a borboleta e o peixe que não se deixam apanhar), da sensação física a permanecer na boca (“Y me tiembla la boca su temblor delicado...), a impotência de uma definição expressa no último verso, feito apenas da palavra que não se entrega: “Saudade...” Como Crespulario, palavra inventada por ele, para título desse livro que reúne os poemas escritos entre 1920 e 1923. Primícias do poeta, ousando expressar a grande aventura do viver e do sentir – um crepúsculo, perfumes, sons de sinos, uma reflexão sobre a morte ou sobre o amor ou sobre a passagem do tempo, lembranças de leituras – já prenunciando essa trajetória que não elude os motivos poéticos que, também, as pequenas coisas oferecem; já definindo essa relação profunda com as palavras da qual dará constância no seu livro de memórias. E estabelecendo esse fio tão tênue – saudade, Eça de Queiroz – com Portugal que, somente muitos anos depois, com os poemas do canto XV, “La lámpara marina”, de seu livro Las uvas y el viento, irá retomar.

Curitiba, junho de 2004


quarta-feira, 10 de julho de 2013

O Poeta perguntador:Residencia en la tierra 2 *

            Em confieso que he vivido, Pablo Neruda, com a ressalva de que não se atreve a afirmar taxativamente, diz que durante sua permanência no Oriente, os únicos versos que escreveu foram os de Residencia en la tierra (1931-1935). Junto com Residencia en la tierra1     que já havia aparecido no Chile dois anos antes, Residencia en la tierra 2  foi publicado em Madrid, em 1935, pelas Ediciones Del Arbol de Cruz y Raya. Compõe-se de vinte e três poemas, agrupados em seis partes sendo que uma delas, com o título “Tres cantos materiales”  anuncia o poeta das Odas, ao cantar a madeira, o aipo e o vinho. De fato, em 1931,o Poeta  ainda vive como Cônsul do Chile em Singapura. Mas, no ano seguinte está no Chile, em 1933 em Buenos Aires, em 1934 em Barcelona e, em 1935, em Madrid. Ou seja, nem todos os poemas de Residencia em la tierra 2 foram  escritos durante a sua permanência no Oriente como aconteceu com  aqueles de Residencia en la tierra 1. Assim, “Alberto Rojas Gimenez viene volando”, foi escrito em Barcelona, logo após ter tido conhecimento da morte deste seu amigo. como lembra em Confieso que he vivido (p. 61). Ou a “Oda a Federico García Lorca” em que, entre outros nomes, menciona o de sua filha, Malva Marina, nascida em 1934 com hidrocefalia. Temerosos de que não sobrevivesse, Pablo Neruda e sua mulher Maria Antonieta Hagenaar se apressaram em batizá-la, convidando o então diplomata chileno Juan Mujica de la Fuente para ser o padrinho conforme  testemunha o documentário de Toño Freire, Yo bautisé a Malva Marina del Carmen, la hija de Pablo Neruda. Então,talvez, possa ficar  claro que o título do  poema “Enfermidades em mi casa” aponta para esse momento da vida de Neruda  que permaneceu na sombra por muitos anos. Foi somente em 1904,   que apareceram as primeiras fotografias da sua filha, morta aos oito anos de idade, na Holanda, para onde foi levada pela mãe. Em 1936, ao se separar de Maria Antonieta Hagenaar nunca mais teria desejado ver a filha cuja existência foi esquecida ou eludida pelos amigos e estudiosos da  vida de Neruda  até ser resgatada desse esquecimento, em 1903, quando o acadêmico chileno Antonio Reinaldos descobriu o seu túmulo em Gouda, na Holanda . Quatro anos depois, o texto, “El enigma de Malva Marina” de autoria  de Bernardo Reyes, sobrinho de Pablo Neruda, provocou  grande impacto ao trazer à luz esse episódio da vida do Poeta que, até então, fora conhecido apenas de uns poucos.  Na verdade, sua convivência com a filha não foi longa mas,  é possível supor,   o bastante para não ter sido poupado de um sofrimento sem remissão. No poema “Enfermidades en mi casa” ele pergunta:  a quién pedir piedad por un grano de trigo?, a quién pedir por unos ojos del color de un mês frio,/ y por un corazón del tamaño del trigo que vacila? Versos que a partir do título do poema e de ser conhecida a existência de sua filha enferma entreabrem o segredo desse desespero diante do irremediável e que se  reafirma nas perguntas cómo, cuándo (como achar o remédio? quando    encontrar a cura?) lançadas contra uma  indecifrável muralha:  a realidade dos hospitais com seus feridos e agonizantes. Diante desse  universo sem esperanças para o qual ele busca um testemunho nesse verbo ved   que o conduz a  um interlocutor e a reafirmar   o intransponível obstáculo que vê diante de si. Nos versos seguintes, pede ajuda a elementos de seu universo – folhas, travessias, cabelos de mulher, lua, -  para enfrentar essa dor, claramente confessada e que os fados determinaram não fosse mitigada. Mostra-se vencido e esboçando a menina, nos últimos versos do poema (una sonrisa  que no crece, una boca dulce, unos dedos que el rosal quisiera ) responde ás próprias interrogações, submisso ao imutável:  saber que unicamente lhe resta escrever o poema que  solo es um lamento/ solamente um lamento.

            Se das inquisições do poema “Enfermedades en mi casa” o Poeta já presume da resposta que  não lhe será dada,  em outros quatro poemas, igualmente, irá inquirir de outrem.  Em “Oda a Federico García Lorca”, a quem, já na primeira estrofe, ele se dirige, enaltecendo-lhe os versos e assim continuando a fazer nas estrofes seguintes até a sexta quando aparece no poema a expressão llego yo (eu chego), acompanhando-se de pessoas as quais está afetivamente ligado, para enaltecer, ainda mais, o amigo  nesse convite à coroação: vení que te corone .  Seguem-se três prosaicos versos narrativos  y conversando entre nosotros / ahora, cuando no queda nadie entre las rocas, / hablemos sencillamente  como eres tu y yo  a anteceder a pergunta  para qué sirven los versos si no es para el rocío? Que a resposta no próprio verso – si no es para el rocío – minimiza  ou maximiza deles a importância. A pergunta é repetida na sétima estrofe  com uma variante   Para qué sirven los versos si no es para esa noche  quando, então, os versos já possuem uma função. Ainda não definida mas, presumivelmente, de consolo para as tristezas, para as ameaças de sofrimento

            Também se dirigindo a um interlocutor, agora sem nomeá-lo, as perguntas que o Poeta faz em : “Apogeo del apio”,  “Maternidad” e “Barcarola”.

 

            Em “Apogeo del apio”, Neruda descreve  as andanças do aipo e testemunha-lhe as queixas até a sua  chegada noturna  junto dele quando lhe pergunta o quê deseja, o quê o aflige: Qué quieres, huesped de corsé quebradizo, / em mis habitaciones funerales, / Qué ámbito destrozado te rodea  ? Presente no poema pelo possessivo de primeira pessoa (mis habitaciones  funerales), ainda que se dirija ao interlocutor huésped de corsé quebradizo, referir-se a esse âmbito destrozado que te rodea leva a pensar se a pergunta não se dirige a si mesmo, habitante de um espaço em que reina a doença, desarvorado diante do destino da filha que não suportava a luz e passava os dias fechada num quarto escuro uma pequena mongólica condenada a invalidez e ao falecimento prematuro (Volodia Teitelboim, Neruda, p. 185).

 

            Conforme é referido por estudiosos de sua obra e, eventualmente, de sua vida, Neruda jamais escreveu um poema de amor para a sua primeira esposa, mãe de Malva Marina.   No entanto,  o poema “Maternidad”  possivelmente   à ela se refere. E  a pergunta que aparece já no primeiro verso Por qué te pricipitas hacia la maternidad y verificas / tu ácido oscuro com granos a menudo fatales  presume uma interlocutora que não é poupada. Porque o verbo   precipitar pelo seu significado ( “atropelar, acelarar”  e, se usado no sentido figurado, “expor  a alguém a uma ruína”) evidencia uma crítica, uma queixa que é reforçada pelo substantivo ácido  (e o pronome possessivo de segunda pessoa não deixa lugar a dúvidas)  e pelos adjetivos oscuro e fatales  São versos que  sugerem já ter  o Poeta conhecimento do resultado dessa gravidez: a criança doente e os males  daí advindos  que os versos da terceira estrofe traduzem nas suas imagens negativas, introduzidas pelo vocativo: Oh madre oscura,  vem/ con una máscara en la mano izquierda / y com los brazos llenos de sollozos.

            Ainda o verso que interroga dirigindo-se a um interlocutor, está presente em “Barcarola”. A primeira estrofe do poema se inicia com a interpelação reivindicatória que o pronome condicional ameniza: si solamente me tocaras el corazón. Seguem-se outras,  remetendo a um interlocutor feminino, as palavras fina boca, dientes, lengua, trenças que se enlaçam com mar, sopro, fantasma. E na quarta estrofe, expresso o desejo  se existieras  ( um alguém instalado num cenário tétrico e apto a instaurar tristeza e medo) para na ante penúltima estrofe surgir a pergunta, no presente Quieres ser el fantasma que sople, solitário / cerca del mar su estéril, triste instrumento?  cujo intuito é atrair esse  alguém que  a segunda pessoa  do verbo precisa, que, então, viria. Mas, tudo fica sem resposta  pois esse fantasma solicitado ainda não existe e  esse alguém que ele chama atenderia o chamado se formulado fosse. E  o  que seria um apelo cai no vazio, isto é, na solidão.

            Igualmente, em outros quatro poemas aparecem versos interrogativos:     “El sur del oceano”,  “ La calle destruída”, “No hay olvido” e “Josie Bliss”.

             No  poema “El sur de oceano”, logo no início, as palavras arena, sombras,  e mais adiante ola, mar que irão se mesclar no sexta estrofe. Nela, o Poeta está presente numa primeira pessoa que menciona uma costa donde azota el mar com  fúria y las olas golpean/ los muros de ceniza. Então, a pergunta: Qué es esto? Es uma sombra? Que logo é repondida: No es la sombra, es la arena de la triste república.  Triste república, para o Poeta,  igual a um sistema de algas num imaginário que os versos solo quiero morder tus costas y morirme sólo quiero mirar la boca de tus piedras, traduzem  um desejo que se quer definitivo, expressão possível de alguém distante de seu torrão natal ( se o título do poema o anuncia) donde la tierra está llena de oceano e do qual ele afirma já ter falado ( e se o fez ou não, pouco importa e sim a possibilidade de tê-lo feito porque, esse torrão natal, certamente, estava no seu coração).

            Em “La calle destruída”, o Poeta se compraz em justapor expressões  relacionadas ao cotidiano, modificadas estranhamente por adjetivos (hierro injuriado, tomates assessinados),  e por adjuntos adnominais (manos de piedra llenas de ira, lengua de polvo podrido) para falar de um mundo tétrico e confuso nas suas longas estrofes de muitos versos longos. Iniciando a terceira, como um luminoso fulgor, irrompe a pergunta a desejar uma beleza inocente e alegre: Dónde está la violeta recién parida? Donde / la corbata y el virginal céfiro rojo? Pergunta que permanece, assim, sem resposta, ela mesma resposta para um sonho.

            Perguntas irrespondíveis numa estrofe que se quer respostas no poema “No hay olvido” (sonata). Ele se inicia com um verso endereçado a interlocutores: Si me preguntáis en dónde he estado. Possível pergunta que, no entanto, o pronome se eventualmente anula mas tal não impede que a resposta seja dada, introduzida pelo verbo dever ( debo decir, debo de hablar) e perfeitamente convicta. Mas a essa resposta se acrescentam outras perguntas, estas passíveis de inquietar  a qualquer ser humano e, então,  irrespondíveis: por qué tantas regiones, por qué um dia / se junta com um dia? Por qué una negra noche / se acumula en la boca  ? Por qué muertos?

            Josie Bliss, a esposa birmana, hija de rey foi uma grande paixão de Pablo Neruda. Dela  pouco se sabe. Nem uma foto, nem uma imagem diz Hernán Loyola (p.362). Apenas  os testemunhos poéticos (“Amores: Josie Bliss”I e II)   que embora   não mencionem o seu nome, se alimentam de sua lembrança . Assim, ainda, no dizer do estudioso chileno, o poema “Melancolias en las  famílias” ( ou “ Melancolia  en la família” como consta na edição das Obras Completas da Losada) e “ El jovem monarca” . Em Madrid, no ano de 1935  e sob o assédio da saudade diz Hernán Loyola (p.365) foi escrito “Josie Bliss” e, não por acaso, continua o crítico chileno, foi colocado por Neruda, como  fecho de Residencia en la tierra 2 .O poema possui cinco estrofes de número irregular de versos, marcados pela experiência vivida por Neruda que está presente no poema, ainda que   na sua linguagem críptica. No entanto, se entreabre na última estrofe, lembrando gestos de amor e gestos do cotidiano para se submeter ao que persiste : as lembranças. Algo de real que se perde no azul, algo de invencível que talvez não o seja deveras. Na segunda estrofe, iniciando-a, dois versos a conter perguntas: Qué vestido, qué primavera cruza, / qué mano sin cesar busca senos, cabezas?    Síntese da presença de Josie Bliss nas expressões vestido e primavera e da presença do Poeta fixada no ritual amoroso: mão que procura seios, cabeças. 

            Em Residencia em la tierra 2, o Poeta perguntador emerge quando  se defronta com um sofrimento que, ele sabe, não será mitigado: seja a doença da filha, seja o estar longe da pátria ou mergulhado na solidão. Seja perceber o melancólico e desordenado mundo, prenhe de mistérios que está a seu redor ou a doída profundidade das recordações. Suas perguntas, mais do que obter impossíveis respostas, talvez, só busquem entender o que sente, expressar inquietações . Estaria aí, cunhada, a razão  de fazer versos, tornando inócuo  o desejo  de saber, na verdade, para que,  exatamente, eles serven
 
* Inédito

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O Poeta perguntador: Residencia en la tierra 1 *

         Com Residencia en la tierra – diz Rodriguez Monegal no seu magistral livro  El viajero inmóvil – começa a obra verdadeiramente criadora de Pablo Neruda. São versos que se agrupam em dois livro, Residencia en La tierra 1, Residencia en la tierra 2 e nas duas primeiras partes de Tercera residencia cuja feitura está compreendida entre 1925-1931, 1931-1935 e 1934-1935, respectivamente. Traduzem esse momento  vivido pelo Poeta,  como o refere Jorge Edward( em Adios Poeta,   P. 27) demasiado amargo, escuro,angustiante que, finalmente só lhe apresenta duas alternativas: a auto destruição, o suicídio ou a saída à saúde mental   e moral que somente podia  se consistir numa saída da solidão para a solidariedade. E isto iria acontecer, como é sabido, a partir do vivenciado na Espanha quando a sua perplexidade irá se nutrir da violência, das lutas, das injustiças ocorridas no cenário da Guerra da Espanha.  Antes que tal ocorra, sua juventude e circunstâncias  - a pobreza, a solidão da vida em país alheio – o mergulham nessa angústia existencial  que faz dele o poeta hermético, misterioso, angustiado , inspirador  que se mostra nos poemas compreendidos  entre Galope muerto  de Residencia en La tierra 1 e “Las fúrias y las penas” de Tercera Residencia como constata, ainda, Jorge Edward (p.18,34).
            Residencia en la tierra 1, ese pequeño libro [...] diccionario atormentado de mis indagaciones personales como,  o irá  definir Pablo Neruda, anos depois, em Para nacer he nacido, ( p. 228) é feito de vinte e oito poemas (e cinco textos em prosa), agrupados de forma díspar em quatro partes de vinte, um, quatro e três poemas. Hernán Loyola em Neruda, la biografia literária (p.407) não ignora a série de interrogações presentes em Residencia en la tierra 1   ao dizer que se trata de uma via retórica muito frequentada por Neruda neste livro e sugere respostas que elabora, ao analisar, por exemplo, o poema “Monzón de mayo”:  uma simbologia contextual a partir dessas circunstâncias naturais ou físicas que constituem o vertebral de sua vida cotidiana, sem a presença estável de uma mulher. Além das interrogações  presentes nesse poema, elas  também aparecem em versos de “Galope muerto”, “Sabor”, “Diurno doliene”, “Monzón de Mayo”, “Sonata e destrucciones”, “El fantasma del buque de carga”, “Cantare”, “Trabajo frio”, “Significas sombras”.
            Alfredo Losada, citado por Hernán Loyola ( na obra acima referida, p.522), supõe tratar-se de uma figura feminina o interlocutor a quem o Poeta dirige suas interrogações.           Por sua vez, o próprio Hernán Loyola considera como um desdobramento do próprio  enunciador, instando-se a si mesmo  - com retórica interrogativa – a tomar consciência de sua situação  através do sistema temporal . Quem sabe, esse Dime, Imperativo que inicia o poema “Trabajo frio” e verbos na segunda pessoa ( no oyes, no sientes) possam significar o desejo de decifrar os mistérios do passar do tempo: a noite que retorna, o correr dos rios, lembrando a metáfora tradicional que superpõe o correr da água dos rios com a passagem do tempo (ambos sem retorno); a escuridão, invadindo espaços, obediente ao movimento do sol, a vitória do tempo no traquinar dos seres, tornando-os sujeitos ao sentimento que, finalmente, é mencionado na última expressão do último verso: a solidão. A solidão ensejando perceber o indefinível. Então, querer compartilhar e, para isso, estabelecer um possível diálogo provocado pelas perguntas: no oyes acaso,el sordo  gemido? [ no ressoar do tempo] ; não sentes a insistente noche que vuelve?; No escuchas la constante Victoria [do tempo], y añadiendo su triste hebra?               Pertinente, então, presumir que esse interlocutor a quem  se dirigem as perguntas seja qualquer ser humano ou  o próprio Poeta a inquirir, a inquirir-se sobre o quê não tem resposta ainda que ela seja pertinazmente perseguida.
            No poema “Diurno doliente”, o Poeta está presente nesse pronome possessivo de primeira pessoa a circunscrever algo de concreto (mi lecho amarillo, mi pecho) ou de indefinido (mi término escaso, mi débil producto, mi substancia estrellada , mi poder, mi duelo, mis separaciones. Ele interroga sobre sons ( Ahora, qué imprevisto paso hace crujir los caminos? […] qué sonido de carro viejo con espigas?), sobre o quê  leva consigo (ressentimentos, hereditárias esperanças, ajudas ternas e dias translúcidos); sobre quem, ao mesmo tempo lhe está próximo ou distante.  Ou, interroga sobre imagens – um rosto de cristal, uma estação triste, o etéreo de uma névoa úmida
            Nos demais poemas há um repetir-se de perguntas introduzidas pelo advérbio donde (onde) a procurar um espaço poético, uma inspiração que o seu entorno – a desesperança que lhe trás um dia vazio (sedentário y húmido sin su próprio cielo), o vento, a chuva – lhe negam : Dónde está su toldo de olor, su profundo follaje / su rápido celaje de brasa, su respiración viva?  (“Monzón de mayo” ). Ou, a interrogação é marcada pelo pronome interrogativo quién (quem), buscando uma identidade que, no entanto, se refere si mesmo no verso: Quién puede jactarse de paciência más sólida? (paciência  diante de conversas gastas, palavras ocupadas em servir, subservientes, outras vontades ) e que ele responde ao se explicar como aquele que vive envolto em prudência, pleno de essências de cores anódinas, que se move repleto de águas paradas como imóvil está o seu sentimentos, vigiado aquilo que pensa (“Sabor”). Também em ´Sonata y destruiciones” busca  uma identidade na terceira estrofe, toda ela feita de interrogações: Quién hizo cerimônia de cenizas? /  Quién amó lo perdido, quién protegió  lo último?/ El hueso del padre, la madera del buque muerto,/ y su próprio final su misma huída,/ su fuerza triste, su dios miserable?  Se a sua poesia somente sabe nutrir-se do concreto mundo circundante – assim o afirma Hernán Loyla na p.355 do seu livro acima citado -  a pergunta contida no primeiro verso  dessa terceira estrofe pode remeter aos rituais funerários birmaneses vistos por Neruda da sacada, nos dias em que  viveu na casa de Jose Blis (ainda segundo Hernán Loyola).   Os que se lhe seguem podem remeter aos sentimentos advindos do que deixou para trás ao sair do Chile, especificados num elo familiar que a morte aniquilou como também, aniquilado se mostra o barco e esse alguém cingido pelo fim, pela fuga, por uma força e por um deus que se estiolam na negação. Alguém que em “El fantasma del buque de carga” irá, na interrogação - : Quién es ese fantasma sin cuerpo de fantasma,/  com sus pasos livianos como harina noturna / y su voz que sólo las cosas patrocinan? – se delinear nas desesperanças e negações do próprio eu. Outras perguntas, buscam, por sua vez,  a matéria, a identidade das coisas: Ahora bien, de qué está hecho ese surgir de palomas /  que hay entre la noche y el tiempo como una barranca húmeda? (“Galope muerto”) ; ou perscrutam perigos: Contra qué levantar el hacha hambrienta / De qué materia desposeer, huir de qué rayo?; indagam  de um incerto e precario caminhar: Qué reposo emprender, qué pobre esperanza amar / con tán debil  llama y tan fugitivo fuego?  ( “Monzón de mayo”). E, cristalizando  almejar  um interlocutor na estrofe do poema “Cantares”, Para quién y a quién en la sombra / mi gradual guitarra suena / naciendo en la sal de mi ser / como el pez en la sal de la mar? a resposta será dada muito clara e prosaicamente na última estrofe do mesmo poema, quando  se mostra desconsolado e sem rumo: Sobrevivo en medio del mar / solo y tan locamente herido, /tán solamente persistiendo / heridamente abandonado .
             No último poema de Residencia en la tierra 1, “Significa sombras” a se iniciar com versos em que  indaga (presença do eu a constar no possessivo de primeira pessoa na estrofe seguinte) sobre um futuro que, prolongado do presente – el camino entre las estrellas de la muerte –vem de um tempo pretérito incomensurável: muchos dias y meses y siglos. Uma inquietude já presente em “Galope muerto”, o primeiro poema do livro quando pergunta  Es que de dónde, por dónde, em que orilla?sintetizando o desejo  de encontrar  um lugar, talvez ideal que só irá encontrar dentro de si mesmo, um dia. Porque no isolamento e solidão em que vive no Oriente  - Estaba separado del mundo mío por la distancia y por el silencio, y era incapaz de entrar de verdad en el extraño mundo que me rodeaba diz em Confieso que he vivido, p.137 – ele está prisioneiro da inquietude e da tristeza. Então, quando em carta a seu amigo Eandi, citada por Rodriguez Monegal,  lhe pergunta se não está rodeado de destruições, de mortes, de coisas aniquiladas, se não se sente obstruído no seu trabalho por dificuldades e impossibilidades,  está  perguntando tudo isso também a si mesmo. Ou seja, no dizer do critico uruguaio,  Emir Rodriguez Monegal, está desenhando a sua própria agônica situação.Que irá se expressar num dizer  que o próprio Neruda rotula de  melancolia frenética, de  estilo amargo e que, talvez, por um sentimento de pudor, resulte no que os críticos consideram  o hermetismo  desses poemas de Residencia en la tierra 1. Um hermetismo que, eventualmente, pode ser ou procura ser desvendado a partir de circunstâncias da vida do poeta, documentadas em correspondência ou testemunhos como o faz, por exemplo, Hernán Loyola. Ou se nega à suposições esclarecedoras.
            Porque essas vinte e seis perguntas que se inscrevem em Residencia em la tierra 1, expressão das dúvidas do Poeta – e o passar do tempo, e a solidão, e os sentimento de mágua, e o lugar incógnito desejado, e a própria imagem difusa e os elos perdidos – pela sinuosa beleza e mistério que as habitam se bastam a si mesmo. E prescindem da objetividade das respostas.
·         Inédito

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O jogo do tempo *



            Isidora não sabe quando vai acontecer, nem por qual trilha vai chegar, tampouco o calor que irá trazer, no entanto, espera algo que presume será maravilhoso. Uma espera que se inicia logo cedo, na manhã de domingo, antes que chegue o dia: um esplendor vago a obriga a abrir os olhos. É algo impreciso e promissor que amanhece dentro dela. Começa, então, tem algumas horas pela frente, a mensurar o tempo que, nesse conto “Domingo”, de Yamandú Rodriguez do qual é protagonista, se escoa  marcado pelos suas relações com os animais que povoam os arredores do rancho isolado onde vive e por aquelas que a ligam ao avô de quem é companhia. Assim, embora não haja menção a expressões nitidamente temporais, indicativos de tempo são o ato de ordenhar (por muito que madrugue a hosca está sempre antes dela no tambo”); de ir procurar alimento para seus passarinhos; do aproximar-se o cavalo do rancho ao anoitecer; das galinhas procurarem os galhos da árvores para dormir. Porém, à espera desse passar do tempo compreendido entre o depois do almoço e o fim do dia, ela se impacienta e no desejo de diminuir as horas lerdas da manhã, torna a perguntar ao avô pelas lembranças de suas aventuras guerreiras (que já escutou tantas vezes) enquanto escolhe, em pensamento a cor da fita que à tarde irá por no cabelo; canta a manhã inteira, arruma o seu quarto, espia a estrada onde ninguém passa, mas cuja vista, embora sem esperar por ninguém,  lhe acelera o pulso porque uma visita ao rancho sempre a impressiona. Mencionado em horas precisas, outras tantas vezes: quando ela espera – se o dia amanhece nublado – que ao meio dia escampe. E enquanto as horas passam vai ficando mais séria, almoça sem apetite só quer poder se fechar no quarto diante do espelho diante do qual fica duas horas. Acordando da sesta, o avô a chama para que faça o mate e avisa: São três horas” Ela diz que já vai, e sem pressa põe o pó de arroz, o vestido, a fita no cabelo. Meia hora depois, ainda está de chinelo e se decide a calçar os sapatos que lhe machucam os pés o que, no domingo, suporta, sem sentir, até que se esconda o último raio de sol. Pronta, vai até a cozinha exibir-se para o avô e, tranqüila em saber que somente irá chover de madrugada, vai se sentar na frente da casa. Logo, chega o avô com seu banco. Quinze minutos passam em silêncio, ele pica fumo para seu palheiro e o fuma com calma. Meia-hora depois, torna a fazer outro e cansa de olhar para a estrada. O tema do tempo se desloca: Isidora compadece o avô pela sua vida, sempre igual, constata que os vizinhos vivem pendentes do tempo: o dia não chega para empurrar o arado e a noite para descansar. A tarde avança e o avô entra na casa onde durante uma hora acende o isqueiro e joga fora os tocos de cigarro.
E, nesse tempo todo, nada aconteceu a não ser o cavalo ter comido a flor de malva. Outra meia hora se passa e as nuvens ocultam o sol, a tarde se apaga. Isidora continua perto da estrada e na boca da noite ainda espera. O avô a chama gritando para que prepare a comida. Isidora não enxerga mais nada. Desiste e se dá conta que sua diversão acabou. Retorna à rotina: fazer a comida, comer, dormir e acordar na segunda-feira para repetir o ciclo da espera e ver chegar o domingo. Para esperar.
 * Inédito