Ele
não tem nome. Por vezes, o chamam de sábio e sábio ele se mostra ao dominar a
difícil arte de envelhecer. Na véspera de fazer noventa anos, ao terminar o
borrão da nota que escrevia, cada semana, para o jornal, cujo assunto, como
vinha prevendo há meses, não desejava que fosse o sólito lamento pelos anos
idos, senão o contrário: uma glorificação da velhice, percebe o sol entre as
amendoeiras e o som de um barco, entrando no porto. Pensou Ai estão a chegar
meus noventa anos e decide, nesse momento, honrar a data. Com esta intenção se
inicia Memoria de mis putas tristes,
último livro de ficção de Gabriel García Márquez que a Sudamericana, de Buenos
Aires, publicou em outubro de 2004. Contrariando o título, a memória é escrita
para se contar, a partir desse dia que foi o começo de uma nova vida numa
idade em que a maioria dos mortais estão mortos. Porque, à pretensão de
comemorar, galhardamente, seu aniversário, se seguiram muitos sentimentos que
serpenteiam na sua narrativa. Embora ela se faça na linearidade do presente,
episódios de sua infância, juventude e idade madura, assim como aqueles de um
passado próximo, se lhe intercalam, conferindo-lhe um movimento sinuoso que, no
entanto, não a priva de seu ritmo vivaz. Por ser feita em primeira pessoa – um
narrador que possui um conhecimento limitado do que sucede a seu redor – nela
sobejam as zonas de sombra, isto é o que deixa, então, de ser referido e se
oferecem as reflexões daquele que narra.
Sobre si
mesmo, o narrador de Memoria de mis
putas tristes dará parcas e esquivas informações que uma ou outra frase,
dita por algum seu interlocutor, irá completar. Acredita não ter méritos nem
brilhos e que nada teria a legar aos que virão depois dele não fosse a memória
de seu grande amor. Da menina, por quem se apaixona, ele dá a conhecer em
breves traços que mal lhe desenham um perfil: o nariz altivo, os lábios finos e
intensos, os pômulos altos, o cabelo curto e crespo, a pele queimada por sóis
de mar bravo; ou, naqueles que apontam para as mudanças harmoniosas conferidas
ao corpo adolescente pelo passar do tempo. Mais, ele não diz, porque, sobre
ela, tudo ignora, salvo a emoção que sente diante de sua presença adormecida.
Desconhece o seu nome e se recusa a ouvi-lo; quando procura por ela, querendo
conhecer seu paradeiro, ou como está, algo se interpõe e ele fica sem saber.
Seu relato, pontilhado de alguma irônica
sutileza, de alguma efêmera e ligeira troça, de alguma dúvida que ficou sem
resposta, é, também, a expressão do que o seu viver tão longo lhe ensinou: ser
um triunfo da vida que a memória se perca para o que não é essencial, mas não
para o que tem importância; que a velhice, a gente não sente por dentro, mas
de fora tudo o mundo vê; que a idade não é a que a gente tem, mas a que a
gente sente. E assim, perfeitamente lúcido e dono de si mesmo, convicto e
enamorado, se permite viver a aventura amorosa que irá lhe trazer de volta a
primavera.
Imaginar tal
história de amor, construí-la sem entraves, é dado somente a quem se revela
mestre de seu ofício. O escritor colombiano já demonstrara sê-lo no seu
primeiro livro, La hojarasca (1955) e nos que se lhe seguiram: El coronel no tiene quien le escriba, (1961), La mala hora (1962). E, Cien
años de soledad (1967), o fabuloso êxito editorial que, não apenas,
lançaria uma imensa luz sobre seu autor, como seria um marco definitivo para
consolidar a descoberta da esplendorosa riqueza da Literatura Latino-americana.
Em
1982, Gabriel García Márquez receberia o Nobel de Literatura. Na sua produção
posterior, El amor em los tiempos del
colera (1985), Del amor y otros
demonios (1994) e Memoria de mis
putas tristes serão três esplêndidos e surpreendentes clássicos da
expressão do amor. Magnífica expressão lírica de um romancista no seu itinerário de perfeições.
* Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano 2, n.6, 2005
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