sábado, 6 de junho de 2015

Memórias de inverno *

            Ele não tem nome. Por vezes, o chamam de sábio e sábio ele se mostra ao dominar a difícil arte de envelhecer. Na véspera de fazer noventa anos, ao terminar o borrão da nota que escrevia, cada semana, para o jornal, cujo assunto, como vinha prevendo há meses, não desejava que fosse o sólito lamento pelos anos idos, senão o contrário: uma glorificação da velhice, percebe o sol entre as amendoeiras e o som de um barco, entrando no porto. Pensou Ai estão a chegar meus noventa anos e decide, nesse momento, honrar a data. Com esta intenção se inicia Memoria de mis putas tristes, último livro de ficção de Gabriel García Márquez que a Sudamericana, de Buenos Aires, publicou em outubro de 2004. Contrariando o título, a memória é escrita para se contar, a partir desse dia que foi o começo de uma nova vida numa idade em que a maioria dos mortais estão mortos. Porque, à pretensão de comemorar, galhardamente, seu aniversário, se seguiram muitos sentimentos que serpenteiam na sua narrativa. Embora ela se faça na linearidade do presente, episódios de sua infância, juventude e idade madura, assim como aqueles de um passado próximo, se lhe intercalam, conferindo-lhe um movimento sinuoso que, no entanto, não a priva de seu ritmo vivaz. Por ser feita em primeira pessoa – um narrador que possui um conhecimento limitado do que sucede a seu redor – nela sobejam as zonas de sombra, isto é o que deixa, então, de ser referido e se oferecem as reflexões daquele que narra.

Sobre si mesmo, o narrador de Memoria de mis putas tristes dará parcas e esquivas informações que uma ou outra frase, dita por algum seu interlocutor, irá completar. Acredita não ter méritos nem brilhos e que nada teria a legar aos que virão depois dele não fosse a memória de seu grande amor. Da menina, por quem se apaixona, ele dá a conhecer em breves traços que mal lhe desenham um perfil: o nariz altivo, os lábios finos e intensos, os pômulos altos, o cabelo curto e crespo, a pele queimada por sóis de mar bravo; ou, naqueles que apontam para as mudanças harmoniosas conferidas ao corpo adolescente pelo passar do tempo. Mais, ele não diz, porque, sobre ela, tudo ignora, salvo a emoção que sente diante de sua presença adormecida. Desconhece o seu nome e se recusa a ouvi-lo; quando procura por ela, querendo conhecer seu paradeiro, ou como está, algo se interpõe e ele fica sem saber.

 Seu relato, pontilhado de alguma irônica sutileza, de alguma efêmera e ligeira troça, de alguma dúvida que ficou sem resposta, é, também, a expressão do que o seu viver tão longo lhe ensinou: ser um triunfo da vida que a memória se perca para o que não é essencial, mas não para o que tem importância; que a velhice, a gente não sente por dentro, mas de fora tudo o mundo vê; que a idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente. E assim, perfeitamente lúcido e dono de si mesmo, convicto e enamorado, se permite viver a aventura amorosa que irá lhe trazer de volta a primavera.

Imaginar tal história de amor, construí-la sem entraves, é dado somente a quem se revela mestre de seu ofício. O escritor colombiano já demonstrara sê-lo no seu primeiro livro, La hojarasca  (1955) e nos que se lhe seguiram: El coronel no tiene quien le escriba, (1961), La mala hora (1962). E, Cien años de soledad (1967), o fabuloso êxito editorial que, não apenas, lançaria uma imensa luz sobre seu autor, como seria um marco definitivo para consolidar a descoberta da esplendorosa riqueza da Literatura Latino-americana.

            Em 1982, Gabriel García Márquez receberia o Nobel de Literatura. Na sua produção posterior, El amor em los tiempos del colera (1985), Del amor y otros demonios (1994) e Memoria de mis putas tristes serão três esplêndidos e surpreendentes clássicos da expressão do amor. Magnífica expressão lírica de um  romancista no seu itinerário de perfeições.

    * Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano 2, n.6, 2005

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