domingo, 7 de junho de 2015

Pablo Neruda e o Capitão *


            No dia 18 de julho de 1943, estava sendo enterrada na cidade do México, Leocádia Felizardo Prestes para descansar de uma vida de amargurada e trabalhosa velhice. O filho preso, Olga, sua mulher, judia alemã, entregue, pelo governo brasileiro aos nazistas e levada, do Rio de Janeiro para Hamburgo, num cargueiro que – assim diz Jorge Amado em Vida de Luis Carlos Prestes: O Cavaleiro da Esperança –, “reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros”.  Logo ao chegar na Alemanha, presa em Barnimstrasse, deu à luz a uma menina que será criada sem alimento suficiente, sem condições de higiene, até pouco mais de um ano. Numa luta ferrenha, ajudada pelos pedidos, protestos, clamores, chegados de todas partes, a avó irá resgatá-la da prisão, mas a luta em prol da liberdade do filho não a deixa, ainda, calar-se. É impedida de voltar ao Brasil. No México, onde foi recebida, vive na incerteza e na angústia de saber que, no Brasil, estão martirizando o seu filho. Quando morre, erguem-se vozes, pedindo ao governo brasileiro alguns dias de liberdade para Luis Carlos Prestes – o general Lázaro Cárdenas, ex-presidente do México, garante com a própria pessoa, a sua volta para a prisão – assistir ao funeral.
Pablo Neruda que, no México, há três anos, representava, como cônsul, o seu país, expressa ao embaixador do Brasil, esse desejo que é de tantos e recebe como resposta – subterfúgio sempre tão usado para denegrir o inimigo político – que Luis Carlos Prestes estava detido por delitos comuns. O poeta polemiza, publicamente, com ele. Era o tempo da França invadida pelos alemães, era o tempo de Estalingrado e na sua intensa atividade criativa e política, já se mostrava evidente que, em Pablo Neruda, o poeta e o combatente eram inseparáveis. Getúlio Vargas se recusa em atender o pedido que lhe fora feito e Pablo Neruda, contrariando conselhos de amigos para que evitasse, como representante de seu governo, de se expor às críticas, comparece ao enterro de Leocádia Felizardo Prestes, levando flores e um poema.
Um longo poema que, no dia seguinte, é publicado na imprensa mexicana e fará parte, como “España em el corazón”, “Canto a Stalingrado”, “Nuevo canto de amor a Stalingrado” “Canto a los ríos de Alemania”, entre outros, de Tercera residencia (Buenos Aires, Losada, 1947), livro que reúne poemas pertencentes ao ciclo da Guerra da Espanha e da Segunda Guerra Mundial e, também, os desafiantes versos em defesa de Tina Modotti, e aqueles que enaltecem a Simon Bolívar e a Luiz Companys. A mãe morta, o filho preso, impedido, pela vontade expressa de um ditador, de estar presente no enterro, a inutilidade dessa prisão para a luta que se trava em prol de mudanças, que nada irá impedir de ocorrer, são inequívocos motivos para o poeta e seus claros, constantes e incansáveis compromissos políticos. E nos versos que, então, escreve, mais uma vez, procurando a justiça, a inspirada qualidade e a profunda dimensão lírica ultrapassam os limites de um simples registro de fatos deploráveis.
            Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda narra o episódio que, assim como a tantos, o indignou faz menção a esse poema “em honra de dona Leocádia, em lembrança de seu filho ausente e em execração ao tirano” e se refere à sobriedade dos primeiros versos e do tom violento que a eles se acresce, para designar o “déspota brasileiro”. No título, “Dura elegia”, significados possíveis do adjetivo – áspero, implacável, inexorável – e o gênero poético, “canto plangente”, sob o qual se abriga o poema.
            Nove estrofes de um número desigual de versos, o compõem. Inicia-se com um vocativo, “Senhora” que, não apenas deve ter suscitado emoção entre os presentes da cerimônia fúnebre, ao ser lido, como guarda, ainda, grande potencial lírico que o cruel, injusto e arbitrário desencontro entre mãe e filho torna perene. E, imediatamente, lhe confere o poeta o invejável feito de ter tornado, pelo seu filho, a América bem maior. Dando voz a todos aqueles que desejam tê-la, assume, então, a voz coletiva que lamenta a ausência do filho, testemunha que muitos foram os que vieram para suprir o adeus negado e invoca os libertários da América, estejam eles vivos ou mortos, para ocupar esse lugar vazio. O uso de um nós, que elude o individualismo para compartilhar dessa herança de luta e infortúnio que foi, por ela, “mãe de pranto, de vingança, de flores”, “mãe de luto, de bronze, de vitórias”, deixada; para seguir-lhe o exemplo de “mãe de fogo e de cravos”, de “látegos” e de “espada”; para jurar que não haverá pausa – nem sono, nem sonho – até que seu filho volte. Para reafirmar, no possessivo repetido, serem todos donos do Continente e reiterar que o combate, que se trava, é insubmisso. E para louvar, engrandecido pelo caminho que percorre e pelo ideal que busca, a Luiz Carlos Prestes. Um caminho que obstáculos não cerceiam: “Não há cárcere para Prestes que esconda seu diamante”. Que vontades – a do “pequeno tirano”, “com suas pequenas asas de morcego frio”, com seu “turvo silêncio de rato” ou de “aranha implacável” – não vencem. E um ideal que o situa como “grande irmão”, ao lado dos “pais da América: “heróis coroados de fúria, de neve, sangue oceano, tempestade e pombas” e merecedor das enaltecedoras, encomiásticas qualidades que emergem em metáforas – é um “rio puro de águas colossais”, é uma “árvore de infinitas raízes” – e em símiles para dizer de seu coração a sobressair, “através das grades de ferro da prisão”, “como nas grandes minas do Brasil a esmeralda”, “como nos grandes rios do Brasil a correnteza”, “como brasa de centelha e fulgores”.
Se o poema é incisivo e, sem peias, chama de tirano o governante brasileiro e o compara a seres funestos e se, exasperado, lamenta, a mãe privada de seu filho, na vida e na morte – “Para tua sede negaram a água que criaste” –, esse arbítrio e essa dor se constituem incontestes razões para desalentos. Mas, revelando o amor à vida que nutriu sempre o poeta, como a confiança na felicidade possível, seus versos se iluminam na figura de Luis Carlos Prestes: um condutor de homens, “cheio de luz e de grandeza”, “claro capitão” que, embora ausente e “acorrentado”, conduz o combate. O mesmo combate do poeta e de todos aqueles que se abrigam nesse nós, expressão coletiva , sujeito dos verbos “mudaremos”, “romperemos”(o que machuca e faz sofrer) e dos verbos que prometem um mundo melhor (“inundaremos de luz a tenebrosa cárcere que há na terra”)  e, categoricamente,  a vitória. Ações visando um futuro que o tempo do verbo preconiza e que o advérbio, pleonástico “amanhã” torna certo e próximo. Como certa e próxima a presença do Capitão.
Em 1945, diante dele, que, depois de dez anos, saíra da prisão e das cento e trinta mil pessoas – dizem – que estavam no Estádio Municipal do Pacaembu, Pablo Neruda pede silêncio para as palavras do “Capitão do Povo”. E, Luiz Carlos Prestes, então, falou, recordará o poeta, em Confieso que he vivido, “com a serenidade de um general vitorioso”.

* Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano I, n. 3, Jun-Ago, 2004, p20


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