sexta-feira, 29 de maio de 2015

Pablo Neruda e Portugal 1

           Em 1927, vindo de Buenos Aires, desembarcou em Lisboa, breve pausa de um longo itinerário que o conduziria a Rangum para assumir funções consulares. Dessa breve estada em Portugal, deixou testemunho nas suas memórias e no poema “La lámpara marina” que escreveria mais tarde.  E presente, também está Portugal no poema “Saudade” do   livro, Crepusculario.

É o primeiro livro do poeta e como relata em Confieso que he vivido, publicado, em 1923, as suas expensas, numa a aventura cujo preço foi a venda de uns poucos móveis e o empenho do relógio que, solenemente, lhe tinha sido dado pelo pai. No entanto, lhe propiciou muita alegria e um momento, dirá mais tarde, que nunca mais voltará: “Virão muitas edições mais cuidadas e mais belas. Chegarão suas palavras transferidas na excelência de outros idiomas como um vinho que canta e perfuma em outros lugares da terra. Mas, esse minuto em que sai fresco de tinta e terno de papel, o primeiro livro, esse minuto arrebatador e embriagante, com sons de asas que revoluteiam e de primeira flor que se abre na altura conquistada, esse minuto está presente uma só vez na vida do poeta”.

            Foi escrito em Santiago, precisamente na pensão da rua Maruri, 513 e os quarenta e oito poemas que dele fazem parte se abrigam sob cinco títulos – o poeta os chama de capítulos – sendo “Los crepúsculos de Maruri”, o terceiro e no qual se inscreve “Saudade”. Palavra (título, também a iniciar o poema e a finalizá-lo) que, é sabido, não pertence à língua do poeta. Assim, nas quatro estrofes, constituídas de quartetos de rimas intercaladas, Pablo Neruda procura o seu sentido. Perguntando sobre um significado que nem os dicionários empoeirados e antigos, nem outros livros lhe oferecem. E que define como “doce” e de “perfis ambíguos”. Ampara-se, então, na palavra alheia (“dizem”), na emoção de um amigo, ao pronunciá-la e na presença que presume em Eça de Queiroz (“sem olhar a adivinho”). E, ainda, insatisfeito, interpela alguém sobre o que quer dizer essa palavra. Porém, continua sem resposta, preso, apenas, à sonoridade: um tremor delicado. E a repete, seguida de reticências, fazendo dela, o último verso do quarteto.

            Se a primeira estrofe do poema, apesar da rima, da sinestesia e da antropomorfização da palavra, presentes no último verso, está próxima de um texto em prosa, nas demais, o poeta irá entrelaçar imagens e sugestões com elementos que serão uma constante nos seus versos: palavras remetendo ao amor, à natureza, às cores, a um interlocutor, ao próprio sentir. Aproxima da palavra saudade, também sem mencioná-la, substituída por pronomes, o destino dos amores distantes que nela se entristecem, elementos do mundo animal, tonalidades (os azuis das montanhas, dizem que são como ela, palavra branca), um amigo (valorizado pelos adjetivos “nobre” e “bom” e por ser amigo das estrelas) e a expressão do sentir de outrem e de si próprio ao pronunciá-la. Nessa atribuição de cor e de mistério, de doçura e de ser inatingível (comparando-a com a borboleta e o peixe que não se deixam apanhar), da sensação física a permanecer na boca (“Y me tiembla la boca su temblor delicado...), a impotência de uma definição expressa no último verso, feito apenas da palavra que não se entrega: “Saudade...” Como Crespulario, palavra inventada por ele, para título desse livro que reúne os poemas escritos entre 1920 e 1923. Primícias do poeta, ousando expressar a grande aventura do viver e do sentir – um crepúsculo, perfumes, sons de sinos, uma reflexão sobre a morte ou sobre o amor ou sobre a passagem do tempo, lembranças de leituras – já prenunciando essa trajetória que não elude os motivos poéticos que, também, as pequenas coisas oferecem; já definindo essa relação profunda com as palavras da qual dará constância no seu livro de memórias. E estabelecendo esse fio tão tênue – saudade, Eça de Queiroz – com Portugal que, somente muitos anos depois, com os poemas do canto XV, “La lámpara marina”, de seu livro Las uvas y el viento, irá retomar.

Curitiba, junho de 2004


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