quarta-feira, 10 de julho de 2013

O Poeta perguntador:Residencia en la tierra 2 *

            Em confieso que he vivido, Pablo Neruda, com a ressalva de que não se atreve a afirmar taxativamente, diz que durante sua permanência no Oriente, os únicos versos que escreveu foram os de Residencia en la tierra (1931-1935). Junto com Residencia en la tierra1     que já havia aparecido no Chile dois anos antes, Residencia en la tierra 2  foi publicado em Madrid, em 1935, pelas Ediciones Del Arbol de Cruz y Raya. Compõe-se de vinte e três poemas, agrupados em seis partes sendo que uma delas, com o título “Tres cantos materiales”  anuncia o poeta das Odas, ao cantar a madeira, o aipo e o vinho. De fato, em 1931,o Poeta  ainda vive como Cônsul do Chile em Singapura. Mas, no ano seguinte está no Chile, em 1933 em Buenos Aires, em 1934 em Barcelona e, em 1935, em Madrid. Ou seja, nem todos os poemas de Residencia em la tierra 2 foram  escritos durante a sua permanência no Oriente como aconteceu com  aqueles de Residencia en la tierra 1. Assim, “Alberto Rojas Gimenez viene volando”, foi escrito em Barcelona, logo após ter tido conhecimento da morte deste seu amigo. como lembra em Confieso que he vivido (p. 61). Ou a “Oda a Federico García Lorca” em que, entre outros nomes, menciona o de sua filha, Malva Marina, nascida em 1934 com hidrocefalia. Temerosos de que não sobrevivesse, Pablo Neruda e sua mulher Maria Antonieta Hagenaar se apressaram em batizá-la, convidando o então diplomata chileno Juan Mujica de la Fuente para ser o padrinho conforme  testemunha o documentário de Toño Freire, Yo bautisé a Malva Marina del Carmen, la hija de Pablo Neruda. Então,talvez, possa ficar  claro que o título do  poema “Enfermidades em mi casa” aponta para esse momento da vida de Neruda  que permaneceu na sombra por muitos anos. Foi somente em 1904,   que apareceram as primeiras fotografias da sua filha, morta aos oito anos de idade, na Holanda, para onde foi levada pela mãe. Em 1936, ao se separar de Maria Antonieta Hagenaar nunca mais teria desejado ver a filha cuja existência foi esquecida ou eludida pelos amigos e estudiosos da  vida de Neruda  até ser resgatada desse esquecimento, em 1903, quando o acadêmico chileno Antonio Reinaldos descobriu o seu túmulo em Gouda, na Holanda . Quatro anos depois, o texto, “El enigma de Malva Marina” de autoria  de Bernardo Reyes, sobrinho de Pablo Neruda, provocou  grande impacto ao trazer à luz esse episódio da vida do Poeta que, até então, fora conhecido apenas de uns poucos.  Na verdade, sua convivência com a filha não foi longa mas,  é possível supor,   o bastante para não ter sido poupado de um sofrimento sem remissão. No poema “Enfermidades en mi casa” ele pergunta:  a quién pedir piedad por un grano de trigo?, a quién pedir por unos ojos del color de un mês frio,/ y por un corazón del tamaño del trigo que vacila? Versos que a partir do título do poema e de ser conhecida a existência de sua filha enferma entreabrem o segredo desse desespero diante do irremediável e que se  reafirma nas perguntas cómo, cuándo (como achar o remédio? quando    encontrar a cura?) lançadas contra uma  indecifrável muralha:  a realidade dos hospitais com seus feridos e agonizantes. Diante desse  universo sem esperanças para o qual ele busca um testemunho nesse verbo ved   que o conduz a  um interlocutor e a reafirmar   o intransponível obstáculo que vê diante de si. Nos versos seguintes, pede ajuda a elementos de seu universo – folhas, travessias, cabelos de mulher, lua, -  para enfrentar essa dor, claramente confessada e que os fados determinaram não fosse mitigada. Mostra-se vencido e esboçando a menina, nos últimos versos do poema (una sonrisa  que no crece, una boca dulce, unos dedos que el rosal quisiera ) responde ás próprias interrogações, submisso ao imutável:  saber que unicamente lhe resta escrever o poema que  solo es um lamento/ solamente um lamento.

            Se das inquisições do poema “Enfermedades en mi casa” o Poeta já presume da resposta que  não lhe será dada,  em outros quatro poemas, igualmente, irá inquirir de outrem.  Em “Oda a Federico García Lorca”, a quem, já na primeira estrofe, ele se dirige, enaltecendo-lhe os versos e assim continuando a fazer nas estrofes seguintes até a sexta quando aparece no poema a expressão llego yo (eu chego), acompanhando-se de pessoas as quais está afetivamente ligado, para enaltecer, ainda mais, o amigo  nesse convite à coroação: vení que te corone .  Seguem-se três prosaicos versos narrativos  y conversando entre nosotros / ahora, cuando no queda nadie entre las rocas, / hablemos sencillamente  como eres tu y yo  a anteceder a pergunta  para qué sirven los versos si no es para el rocío? Que a resposta no próprio verso – si no es para el rocío – minimiza  ou maximiza deles a importância. A pergunta é repetida na sétima estrofe  com uma variante   Para qué sirven los versos si no es para esa noche  quando, então, os versos já possuem uma função. Ainda não definida mas, presumivelmente, de consolo para as tristezas, para as ameaças de sofrimento

            Também se dirigindo a um interlocutor, agora sem nomeá-lo, as perguntas que o Poeta faz em : “Apogeo del apio”,  “Maternidad” e “Barcarola”.

 

            Em “Apogeo del apio”, Neruda descreve  as andanças do aipo e testemunha-lhe as queixas até a sua  chegada noturna  junto dele quando lhe pergunta o quê deseja, o quê o aflige: Qué quieres, huesped de corsé quebradizo, / em mis habitaciones funerales, / Qué ámbito destrozado te rodea  ? Presente no poema pelo possessivo de primeira pessoa (mis habitaciones  funerales), ainda que se dirija ao interlocutor huésped de corsé quebradizo, referir-se a esse âmbito destrozado que te rodea leva a pensar se a pergunta não se dirige a si mesmo, habitante de um espaço em que reina a doença, desarvorado diante do destino da filha que não suportava a luz e passava os dias fechada num quarto escuro uma pequena mongólica condenada a invalidez e ao falecimento prematuro (Volodia Teitelboim, Neruda, p. 185).

 

            Conforme é referido por estudiosos de sua obra e, eventualmente, de sua vida, Neruda jamais escreveu um poema de amor para a sua primeira esposa, mãe de Malva Marina.   No entanto,  o poema “Maternidad”  possivelmente   à ela se refere. E  a pergunta que aparece já no primeiro verso Por qué te pricipitas hacia la maternidad y verificas / tu ácido oscuro com granos a menudo fatales  presume uma interlocutora que não é poupada. Porque o verbo   precipitar pelo seu significado ( “atropelar, acelarar”  e, se usado no sentido figurado, “expor  a alguém a uma ruína”) evidencia uma crítica, uma queixa que é reforçada pelo substantivo ácido  (e o pronome possessivo de segunda pessoa não deixa lugar a dúvidas)  e pelos adjetivos oscuro e fatales  São versos que  sugerem já ter  o Poeta conhecimento do resultado dessa gravidez: a criança doente e os males  daí advindos  que os versos da terceira estrofe traduzem nas suas imagens negativas, introduzidas pelo vocativo: Oh madre oscura,  vem/ con una máscara en la mano izquierda / y com los brazos llenos de sollozos.

            Ainda o verso que interroga dirigindo-se a um interlocutor, está presente em “Barcarola”. A primeira estrofe do poema se inicia com a interpelação reivindicatória que o pronome condicional ameniza: si solamente me tocaras el corazón. Seguem-se outras,  remetendo a um interlocutor feminino, as palavras fina boca, dientes, lengua, trenças que se enlaçam com mar, sopro, fantasma. E na quarta estrofe, expresso o desejo  se existieras  ( um alguém instalado num cenário tétrico e apto a instaurar tristeza e medo) para na ante penúltima estrofe surgir a pergunta, no presente Quieres ser el fantasma que sople, solitário / cerca del mar su estéril, triste instrumento?  cujo intuito é atrair esse  alguém que  a segunda pessoa  do verbo precisa, que, então, viria. Mas, tudo fica sem resposta  pois esse fantasma solicitado ainda não existe e  esse alguém que ele chama atenderia o chamado se formulado fosse. E  o  que seria um apelo cai no vazio, isto é, na solidão.

            Igualmente, em outros quatro poemas aparecem versos interrogativos:     “El sur del oceano”,  “ La calle destruída”, “No hay olvido” e “Josie Bliss”.

             No  poema “El sur de oceano”, logo no início, as palavras arena, sombras,  e mais adiante ola, mar que irão se mesclar no sexta estrofe. Nela, o Poeta está presente numa primeira pessoa que menciona uma costa donde azota el mar com  fúria y las olas golpean/ los muros de ceniza. Então, a pergunta: Qué es esto? Es uma sombra? Que logo é repondida: No es la sombra, es la arena de la triste república.  Triste república, para o Poeta,  igual a um sistema de algas num imaginário que os versos solo quiero morder tus costas y morirme sólo quiero mirar la boca de tus piedras, traduzem  um desejo que se quer definitivo, expressão possível de alguém distante de seu torrão natal ( se o título do poema o anuncia) donde la tierra está llena de oceano e do qual ele afirma já ter falado ( e se o fez ou não, pouco importa e sim a possibilidade de tê-lo feito porque, esse torrão natal, certamente, estava no seu coração).

            Em “La calle destruída”, o Poeta se compraz em justapor expressões  relacionadas ao cotidiano, modificadas estranhamente por adjetivos (hierro injuriado, tomates assessinados),  e por adjuntos adnominais (manos de piedra llenas de ira, lengua de polvo podrido) para falar de um mundo tétrico e confuso nas suas longas estrofes de muitos versos longos. Iniciando a terceira, como um luminoso fulgor, irrompe a pergunta a desejar uma beleza inocente e alegre: Dónde está la violeta recién parida? Donde / la corbata y el virginal céfiro rojo? Pergunta que permanece, assim, sem resposta, ela mesma resposta para um sonho.

            Perguntas irrespondíveis numa estrofe que se quer respostas no poema “No hay olvido” (sonata). Ele se inicia com um verso endereçado a interlocutores: Si me preguntáis en dónde he estado. Possível pergunta que, no entanto, o pronome se eventualmente anula mas tal não impede que a resposta seja dada, introduzida pelo verbo dever ( debo decir, debo de hablar) e perfeitamente convicta. Mas a essa resposta se acrescentam outras perguntas, estas passíveis de inquietar  a qualquer ser humano e, então,  irrespondíveis: por qué tantas regiones, por qué um dia / se junta com um dia? Por qué una negra noche / se acumula en la boca  ? Por qué muertos?

            Josie Bliss, a esposa birmana, hija de rey foi uma grande paixão de Pablo Neruda. Dela  pouco se sabe. Nem uma foto, nem uma imagem diz Hernán Loyola (p.362). Apenas  os testemunhos poéticos (“Amores: Josie Bliss”I e II)   que embora   não mencionem o seu nome, se alimentam de sua lembrança . Assim, ainda, no dizer do estudioso chileno, o poema “Melancolias en las  famílias” ( ou “ Melancolia  en la família” como consta na edição das Obras Completas da Losada) e “ El jovem monarca” . Em Madrid, no ano de 1935  e sob o assédio da saudade diz Hernán Loyola (p.365) foi escrito “Josie Bliss” e, não por acaso, continua o crítico chileno, foi colocado por Neruda, como  fecho de Residencia en la tierra 2 .O poema possui cinco estrofes de número irregular de versos, marcados pela experiência vivida por Neruda que está presente no poema, ainda que   na sua linguagem críptica. No entanto, se entreabre na última estrofe, lembrando gestos de amor e gestos do cotidiano para se submeter ao que persiste : as lembranças. Algo de real que se perde no azul, algo de invencível que talvez não o seja deveras. Na segunda estrofe, iniciando-a, dois versos a conter perguntas: Qué vestido, qué primavera cruza, / qué mano sin cesar busca senos, cabezas?    Síntese da presença de Josie Bliss nas expressões vestido e primavera e da presença do Poeta fixada no ritual amoroso: mão que procura seios, cabeças. 

            Em Residencia em la tierra 2, o Poeta perguntador emerge quando  se defronta com um sofrimento que, ele sabe, não será mitigado: seja a doença da filha, seja o estar longe da pátria ou mergulhado na solidão. Seja perceber o melancólico e desordenado mundo, prenhe de mistérios que está a seu redor ou a doída profundidade das recordações. Suas perguntas, mais do que obter impossíveis respostas, talvez, só busquem entender o que sente, expressar inquietações . Estaria aí, cunhada, a razão  de fazer versos, tornando inócuo  o desejo  de saber, na verdade, para que,  exatamente, eles serven
 
* Inédito

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