Em confieso que he
vivido, Pablo
Neruda, com a ressalva de que não se atreve a afirmar taxativamente, diz que
durante sua permanência no Oriente, os únicos versos que escreveu foram os de Residencia en la tierra (1931-1935).
Junto com Residencia en la tierra1 que já havia aparecido no Chile dois anos
antes, Residencia en la tierra 2 foi publicado em Madrid, em 1935, pelas Ediciones
Del Arbol de Cruz y Raya. Compõe-se de vinte e três poemas, agrupados em seis
partes sendo que uma delas, com o título “Tres cantos materiales” anuncia o poeta das Odas, ao cantar a madeira,
o aipo e o vinho. De fato, em 1931,o Poeta ainda vive como Cônsul do Chile em Singapura.
Mas, no ano seguinte está no Chile, em 1933 em Buenos Aires, em 1934 em
Barcelona e, em 1935, em Madrid. Ou seja, nem todos os poemas de Residencia em la tierra 2 foram escritos durante a sua permanência no Oriente
como aconteceu com aqueles de Residencia en la tierra 1. Assim,
“Alberto Rojas Gimenez viene volando”, foi escrito em Barcelona, logo após ter
tido conhecimento da morte deste seu amigo. como lembra em Confieso que he vivido (p.
61). Ou a “Oda a Federico García Lorca” em que, entre outros nomes, menciona o
de sua filha, Malva Marina, nascida em 1934 com hidrocefalia. Temerosos de que
não sobrevivesse, Pablo Neruda e sua mulher Maria Antonieta Hagenaar se
apressaram em batizá-la, convidando o então diplomata chileno Juan Mujica de la
Fuente para ser o padrinho conforme testemunha o documentário de Toño Freire, Yo bautisé a Malva Marina del Carmen, la hija de Pablo Neruda. Então,talvez,
possa ficar claro que o título do poema “Enfermidades em mi casa” aponta para
esse momento da vida de Neruda que
permaneceu na sombra por muitos anos. Foi somente em 1904, que apareceram
as primeiras fotografias da sua filha, morta aos oito anos de idade, na Holanda,
para onde foi levada pela mãe. Em 1936, ao se separar de Maria Antonieta
Hagenaar nunca mais teria desejado ver a filha cuja existência foi esquecida ou
eludida pelos amigos e estudiosos da vida de Neruda
até ser resgatada desse esquecimento, em 1903, quando o acadêmico
chileno Antonio Reinaldos descobriu o seu túmulo em Gouda, na Holanda . Quatro
anos depois, o texto, “El enigma de Malva Marina” de autoria de Bernardo Reyes, sobrinho de Pablo Neruda,
provocou grande impacto ao trazer à luz esse
episódio da vida do Poeta que, até então, fora conhecido apenas de uns poucos. Na verdade, sua convivência com a filha não
foi longa mas, é possível supor, o
bastante para não ter sido poupado de um sofrimento sem remissão. No poema “Enfermidades en mi casa” ele pergunta: a quién
pedir piedad por un grano de trigo?,
a quién pedir por unos ojos del color de
un mês frio,/ y por un corazón del tamaño
del trigo que vacila? Versos
que a partir do título do poema e de ser conhecida a existência de sua filha
enferma entreabrem o segredo desse desespero diante do irremediável e que se reafirma nas perguntas cómo, cuándo (como achar o remédio? quando encontrar a cura?) lançadas contra uma indecifrável muralha: a realidade dos hospitais com seus feridos e
agonizantes. Diante desse universo sem
esperanças para o qual ele busca um testemunho nesse verbo ved que o conduz a um interlocutor e a reafirmar o intransponível obstáculo que vê diante de
si. Nos versos seguintes, pede ajuda a elementos de seu universo – folhas,
travessias, cabelos de mulher, lua, - para enfrentar essa dor, claramente confessada
e que os fados determinaram não fosse mitigada. Mostra-se vencido e esboçando a
menina, nos últimos versos do poema (una
sonrisa que no crece, una boca dulce, unos dedos que el rosal quisiera )
responde ás próprias interrogações, submisso ao imutável: saber que unicamente lhe resta escrever o
poema que solo es um lamento/ solamente um lamento.
Se das inquisições do poema “Enfermedades en mi
casa” o Poeta já presume da resposta que não lhe será dada, em outros quatro poemas, igualmente, irá inquirir
de outrem. Em “Oda a Federico García
Lorca”, a quem, já na primeira estrofe, ele se dirige, enaltecendo-lhe os
versos e assim continuando a fazer nas estrofes seguintes até a sexta quando
aparece no poema a expressão llego yo (eu
chego), acompanhando-se de pessoas as quais está afetivamente ligado, para enaltecer,
ainda mais, o amigo nesse convite à
coroação: vení que te corone . Seguem-se três prosaicos
versos narrativos y conversando entre nosotros / ahora, cuando no queda nadie entre las rocas, /
hablemos sencillamente como eres tu y yo a anteceder a pergunta para qué
sirven los versos si no es para el rocío? Que a resposta no próprio verso – si no es para el rocío – minimiza ou maximiza deles a importância. A pergunta é
repetida na sétima estrofe com uma
variante Para qué sirven los versos si no es para esa noche quando, então, os versos já possuem uma função.
Ainda não definida mas, presumivelmente, de consolo para as tristezas, para as
ameaças de sofrimento
Também se dirigindo a um
interlocutor, agora sem nomeá-lo, as perguntas que o Poeta faz em : “Apogeo del
apio”, “Maternidad” e “Barcarola”.
Em “Apogeo del apio”, Neruda
descreve as andanças do aipo e
testemunha-lhe as queixas até a sua
chegada noturna junto dele quando
lhe pergunta o quê deseja, o quê o aflige: Qué
quieres, huesped de corsé quebradizo, / em mis habitaciones funerales, / Qué ámbito
destrozado te rodea ? Presente no
poema pelo possessivo de primeira pessoa (mis
habitaciones funerales), ainda que
se dirija ao interlocutor huésped de
corsé quebradizo, referir-se a esse âmbito destrozado que te rodea leva a pensar se a pergunta não se dirige a
si mesmo, habitante de um espaço em que reina a doença, desarvorado diante do
destino da filha que não suportava a luz e passava os dias fechada num quarto
escuro uma pequena mongólica condenada a invalidez e ao falecimento
prematuro (Volodia Teitelboim, Neruda,
p. 185).
Conforme é referido por estudiosos
de sua obra e, eventualmente, de sua vida, Neruda jamais escreveu um poema de
amor para a sua primeira esposa, mãe de Malva Marina. No entanto, o poema “Maternidad” possivelmente à ela se refere. E a pergunta que aparece já no primeiro verso Por qué te pricipitas hacia la maternidad y
verificas / tu ácido oscuro com granos a menudo fatales presume uma
interlocutora que não é poupada. Porque o verbo
precipitar pelo seu significado ( “atropelar, acelarar” e, se usado no sentido figurado, “expor a alguém a uma ruína”) evidencia uma crítica,
uma queixa que é reforçada pelo substantivo ácido (e o pronome possessivo de segunda pessoa não
deixa lugar a dúvidas) e pelos adjetivos
oscuro e fatales São versos que sugerem já ter
o Poeta conhecimento do resultado dessa gravidez: a criança doente e os
males daí advindos que os versos da terceira estrofe traduzem nas
suas imagens negativas, introduzidas pelo vocativo: Oh madre oscura, vem/ con
una máscara en la mano izquierda / y
com los brazos llenos de sollozos.
Ainda o verso que interroga dirigindo-se
a um interlocutor, está presente em “Barcarola”. A primeira estrofe do poema se
inicia com a interpelação reivindicatória que o pronome condicional ameniza: si solamente me tocaras el corazón. Seguem-se
outras, remetendo a um interlocutor
feminino, as palavras fina boca, dientes,
lengua, trenças que se enlaçam com mar,
sopro, fantasma. E na quarta estrofe, expresso o desejo se
existieras ( um alguém instalado num
cenário tétrico e apto a instaurar tristeza e medo) para na ante penúltima
estrofe surgir a pergunta, no presente Quieres
ser el fantasma que sople, solitário
/ cerca del mar su estéril, triste instrumento? cujo intuito é atrair esse alguém que a segunda pessoa do verbo precisa, que, então, viria. Mas,
tudo fica sem resposta pois esse
fantasma solicitado ainda não existe e esse alguém que ele chama atenderia o chamado
se formulado fosse. E o que seria um apelo cai no vazio, isto é, na
solidão.
Igualmente, em outros quatro poemas
aparecem versos interrogativos: “El sur del oceano”, “ La calle destruída”, “No hay olvido” e
“Josie Bliss”.
No poema “El sur de oceano”, logo no início, as
palavras arena, sombras, e mais adiante ola, mar que irão se mesclar no sexta
estrofe. Nela, o Poeta está presente numa primeira pessoa que menciona uma
costa donde azota el mar com fúria y
las olas golpean/ los muros de ceniza. Então, a pergunta: Qué es esto? Es uma sombra? Que logo é
repondida: No es la sombra, es la arena
de la triste república. Triste
república, para o Poeta, igual a um
sistema de algas num imaginário que os versos solo quiero morder tus costas y morirme sólo quiero mirar la boca de tus piedras, traduzem um desejo que se quer definitivo, expressão
possível de alguém distante de seu torrão natal ( se o título do poema o
anuncia) donde la tierra está llena de
oceano e do qual ele afirma já ter falado ( e se o fez ou não, pouco
importa e sim a possibilidade de tê-lo feito porque, esse torrão natal, certamente,
estava no seu coração).
Em “La calle destruída”, o Poeta se
compraz em justapor expressões
relacionadas ao cotidiano, modificadas estranhamente por adjetivos (hierro injuriado, tomates assessinados),
e por adjuntos adnominais (manos de piedra llenas de ira, lengua de polvo podrido) para falar de
um mundo tétrico e confuso nas suas longas estrofes de muitos versos longos. Iniciando
a terceira, como um luminoso fulgor, irrompe a pergunta a desejar uma beleza
inocente e alegre: Dónde está la violeta
recién parida? Donde / la corbata y el
virginal céfiro rojo? Pergunta que permanece, assim, sem resposta, ela
mesma resposta para um sonho.
Perguntas irrespondíveis numa
estrofe que se quer respostas no poema “No hay olvido” (sonata). Ele se inicia
com um verso endereçado a interlocutores:
Si me preguntáis en dónde he estado. Possível pergunta que, no entanto, o
pronome se eventualmente anula mas
tal não impede que a resposta seja dada, introduzida pelo verbo dever ( debo decir, debo de hablar) e perfeitamente convicta. Mas a essa resposta se
acrescentam outras perguntas, estas passíveis de inquietar a qualquer ser humano e, então, irrespondíveis: por qué tantas regiones, por qué um dia / se junta com um dia? Por qué una negra noche / se acumula en la boca ? Por qué muertos?
Josie
Bliss, a esposa birmana, hija de rey
foi uma grande paixão de Pablo Neruda. Dela pouco se sabe. Nem uma foto, nem uma imagem
diz Hernán Loyola (p.362). Apenas os
testemunhos poéticos (“Amores: Josie Bliss”I e II) que embora não
mencionem o seu nome, se alimentam de sua lembrança . Assim, ainda, no dizer do
estudioso chileno, o poema “Melancolias en las
famílias” ( ou “ Melancolia en la
família” como consta na edição das Obras
Completas da Losada) e “ El jovem
monarca” . Em Madrid, no ano de 1935 e sob
o assédio da saudade diz Hernán Loyola (p.365) foi escrito “Josie Bliss” e, não
por acaso, continua o crítico chileno, foi colocado por Neruda, como fecho de Residencia en la tierra 2 .O poema possui cinco estrofes de número irregular de
versos, marcados pela experiência vivida por Neruda que está presente no poema,
ainda que na sua linguagem críptica. No
entanto, se entreabre na última estrofe, lembrando gestos de amor e gestos do
cotidiano para se submeter ao que persiste : as lembranças. Algo de real que se
perde no azul, algo de invencível que talvez não o seja deveras. Na segunda
estrofe, iniciando-a, dois versos a conter perguntas: Qué vestido, qué primavera cruza, / qué mano sin cesar busca senos, cabezas? Síntese da presença de Josie Bliss nas
expressões vestido e primavera e da presença do Poeta fixada
no ritual amoroso: mão que procura seios, cabeças.
Em Residencia em la tierra 2, o Poeta perguntador emerge quando se defronta com um sofrimento que, ele sabe,
não será mitigado: seja a doença da filha, seja o estar longe da pátria ou
mergulhado na solidão. Seja perceber o melancólico e desordenado mundo, prenhe
de mistérios que está a seu redor ou a doída profundidade das recordações. Suas
perguntas, mais do que obter impossíveis respostas, talvez, só busquem entender
o que sente, expressar inquietações . Estaria aí, cunhada, a razão de fazer versos, tornando inócuo o desejo
de saber, na verdade, para que, exatamente, eles serven
* Inédito
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