domingo, 27 de janeiro de 2008

O látego de permeio


            Em 1969, foi publicado pela Edinova do Rio de Janeiro, com seu título original, Huasipungo, termo que significa parcela de terra outorgada pelo dono do latifúndio à família indígena que a cultiva nos momentos que o trabalho devido ao patrão lhe deixam livre. É difícil, dada as dimensões do país, seguir a fortuna que teve esse romance de Jorge Icaza no Brasil e até mesmo conhecer os motivos que levaram a sua tradução. Na verdade, se trata de uma obra, extremamente forte, tanto pela sua história como pela maneira como é relatada e dela não está distante Hijos del viento (Plaza y Janes, Barcelona, 1973). Seu título se completa com a palavra indígena huairapamushcas, cujo significado é gente que aparece trazida pelo vento. O escritor equatoriano, neste romance, oferece instantâneos de um cenário rude nos seus desfiladeiros a quatro mil metros de altura, o esboço de um povoado, monte de choças, casas pardas entre taipas desmoronadas e de sua igreja monumental no sarcasmo de torres brancas, da casa do rico proprietário com suas paredes de adobe. Igualmente, os personagens continuam a ser os índios submissos e miseráveis, o capataz cruel e desonesto, o padre, criador de galos de briga e conivente com os que lhe propiciam pecúnia para a igreja e para seus gastos. Também, o trato entre os índios e o patrão que tem, de permeio, o látego de três correias enroscado como serpente no cabide do quarto. Mais do que a sua existência, porém, guiará o comportamento do novo dono das terras, o costume antigo de considerar os índios que trabalham para ele, absolutamente desprovidos de valor. Se lhes dirige a palavra o faz aos gritos e com termos ofensivos: índio porco, sem vergonha, ladrão,  burro; pelo menor gesto que lhe desagrada, usa do açoite que não poupa o corpo e tampouco o rosto. Assim o faz com a jovem índia que se aproxima para tirar-lhe as botas porque dela sente nojo; assim o faz, ainda que sem provas, com o índio acusado de roubar gado; e com o seu capataz ao comprovar seus furtos e perfídias, flagelando-o nas costas, nos braços, no rosto. Nenhum índio coloca em dúvida ser ele o dono das terras, das matas, dos animais, das águas e deles mesmos. E de tudo ele se considera dono:  das vacas, dos cães, dos galpões, das árvores, do rio, da vida e da morte dos índios, da jovem índia que ele acossa no meio do mato. E, desse mesmo jeito, quer ser o seu capataz. Embora alijado do mando, não quer se privar do que já havia roubado do velho patrão e do poder que lhe era outorgado, usado contra os de sua raça. Justifica sua opção, lembrando que o primeiro dono das terras as vendera para os índios de quem as havia roubado; e que, muito antes, chegados por mar, os homens haviam despojado os índios  de tudo e o que foi pior, lhes deixando a vida. Esses fiapos de vida, Jorge Icaza torna a tecer na ficção.
            Dez anos antes, no seu livro El fabuloso reino de Quito, o historiador Jorge Carrera Andrade registrava o testemunho indígena: Os homens brancos devoram tudo o que encontram, consomem a própria terra, mudam o curso dos rios, [...] procuram ouro e prata, jamais estão satisfeitos, caçando, guerreando, matando-se uns aos outros, roubando uns aos outros, jurando em vão, jamais dizendo a  verdade.

domingo, 20 de janeiro de 2008

No marco do tempo


 

            O capítulo III tem por título “A ameixeira do Japão”, uma árvore que foi, no dizer de Érico Veríssimo, no primeiro volume de Solo de Clarineta (Porto Alegre, Globo, 1974), como o marco do tempo da infância e uma entidade importante de sua mitologia particular. Ele ainda morava em Cruz Alta, cidade onde nasceu, na casa que tinha ao lado a farmácia cujo dono era seu pai e, entre as quais, num alto canteiro era a única árvore existente. O autor gaúcho lembra do amor que tinha pela árvore e do desejo de estar perto quando precisava de solidão para imaginar, para viver o mundo de faz de conta. O seu nome, o conduzia ao Império do Sol Nascente que tinha conotações românticas para ele nos seus samurais, mandarins, pagodes, gueixas de olhos em forma de amêndoas. Recostado no seu tronco, aos sete anos, folheava um livro de guerra, escrito em francês, cujas imagens o encantavam e o faziam tomar partido pelo Japão que lutava contra a Rússia. Relembrando esses momentos, se pergunta se a sua escolha não era influenciada pela árvore que junto com ele, olhava as figuras. Mais tarde, já adulto, ficou sabendo que a árvore que ele conhecia como ameixeira do Japão era uma nespereira. Com um olhar já então mais realista diz que tinha “um porte médio, não era das mais bonitas nem no desenho nem na cor. Produzia frutos amarelados, de forma oval, com caroços graúdos e polpa parecida com a do pêssego. Na sua lembrança, a árvore revive junto com as raízes, o tronco, os galhos e as folhas e até com os insetos e passarinhos que voavam ao redor dela. E não o deixa esquecer o sabor algo ácido de seus frutos que somente se dissolvem numa doçura lânguida quando ficam murchos. É com a nespereira que ele comparte a leitura de O Tico –Tico, seu cheiro mágico de tinta e de papel de jornal e das obras de Júlio Verne que parecia interessar à nespereira, lidas por cima de seu ombro. Como a casa do major Mumro, uma casa sobre rodas puxadas por um elefante de aço, movido a vapor, a nespereira passou a ser a sua casa a vapor e, um dia, ele a fez projétil que o levou a dar uma volta ao redor da Lua. E, quando um pequeno pássaro cantou, pousado no seu galho, para ele não foi uma simples corruíra e sim um exótico e multicolorido pássaro da misteriosa Índia.

            Outras árvores lhe estiveram próximas: as laranjeiras, as bergamoteiras, os caquizeiros, os pessegueiros que faziam parte do pomar do Colégio Cruzeiro do Sul, onde, em Porto Alegre, ele foi estudar em regime de internato. Todos os seus frutos, porém, eram inacessíveis aos alunos, proibidos, sob pena de castigo, de entrar no pomar. Isto não  parece  emocioná-lo pois é na terceira pessoa que registra viverem os internos como anjos caídos, expulsos do Jardim das Delícias, olhando de longe com gula e frustração os vermelhos caquis, as laranjas e as bergamotas cor de sol.

            Porque é à ameixeira do Japão de sua infância que se prende Érico Veríssimo. E se o terceiro capítulo assim se chama (e não a nespereira) é para ser fiel ao menino que ele foi.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O poeta e seu tempo


            Há três anos atrás, Juan Gelman recebia o Prêmio Reina Sofia de Poesia Iberoamericana. O prêmio era uma razão a mais para comemorar. A outra, o término de uma longa batalha judicial em que ficou reconhecido o direito de sua neta, nascida no Uruguai, durante a prisão ilegal da mãe, de usar os sobrenomes dos pais. Agora, neste ano que findou, recebeu, também da Espanha, o Prêmio Cervantes, considerado o mais importante das letras hispânicas.

            Nascido em 1930, em Buenos Aires, filho de imigrantes ucranianos, desde muito jovem militou no Partido Comunista e como participante da organização guerrilheira Montoneros, foi, duramente, perseguido pela ditadura Argentina e  obrigado a se exilar. A par de seu trabalho jornalístico, Juan Gelman é autor de muitos títulos – o primeiro, Violin y otras cuestiones, 1956 – e seus versos testemunham o tempo em que vive e as perenes inquietações dos homens.

            De 1993, é sua Antologia Personal, cujos cento e dezenove poemas foram tirados dos livros publicados ente 1962 e 1968. Neles, estão ausentes as letras maiúsculas e salvo um ou outro ponto de exclamação, por vezes, inundando alguns poemas, o ponto de interrogação. Ele está em acorde com o quê o poeta afirma na Apresentação do livro: as suas obsessões continuam na aberta escuridão de seu sentido, obrigando-o a procurar respostas que jamais encontra ou imagina encontrar. Assim, o poema “Glorias”. Colmado de perguntas que alimentam todos os versos da primeira estrofe: era loira a pulpeira de Santa Lucia?/ tinha os olhos azuis? / e cantava como a cotovia a pulpeira? / refletiam seus olhos a glória do dia? / era ela a glória do dia sua imensa luz?  Seguem-se, as afirmativas: são perguntas inúteis para este inverno que não podem ser lançadas ao fogo, não são próprias para esquentar as pessoas, nem o país gelado de sangue. Logo, o retorno à pulpeira e a seus atributos, à suavidade que instaurou e as razões de possíveis  descaminhos: quem não ia se perder nessa noite? Tal história poderia ser contada e, também, outras, igualmente tristes. Então, o poeta retorna às perguntas: não está correndo o sangue dos dezesseis fuzilados em Trelew, por suas ruas e pelas outras ruas do país, não está correndo sangue e existe um lugar do país onde o sangue não esteja correndo? Tampouco a pulpeira é poupada, pois outras perguntas são enunciadas. Na verdade, são afirmações do que acontecia no país: e cheia de sangue a pulpeira e seus olhos azuis afogados em sangue? / e a cotovia afundada no sangue e glória do dia /com as asas empapadas de sangue sem poder voar? / não há sangue na penumbra de teus seios amada? e que o levam, novamente aos fuzilados de Trelew : os presos políticos que, em agosto de 1972, fugiram de uma prisão e, forçados a se entregarem, confiaram nas palavras que lhes garantiam serem poupados. Uma semana depois eram mortos. O sangue deveria ser recolhido para que fosse possível escutar o quê dizia e o quê cantava e para propiciar-lhe o luto e a lembrança.

            A penúltima estrofe repete: o país está sendo regado com sangue o que induz à súplica: Oh! sangue derramado, conduz-nos ao triunfo. A última estrofe, sem referência explícita, se faz em versos que entrelaçam as palavras chaves do poema, sugerindo uma louca esperança: como cotovia de seus seios caía e / como sangue para apagar a morte e / como sangue para apagar a noite e/ como sol como dia.

domingo, 6 de janeiro de 2008

A imposição


            É uma vasta galeria de personagens que vai se apresentando ao longo da narrativa. A não ser, a principal, o louco do Cati, cuja designação dá nome à obra (O Louco do Cati, Porto Alegre, Globo, 1942), todas tem – ou mais, ou menos – uma presença passageira. Talvez o que Henri James chame de fio: aparecem somente para assumir uma função no enquadramento causal das ações. Nesta obra de Dyonélio Machado, são personagens que se revelam por escassos dados a respeito de seu físico, por um gesto, pela expressão de um sentimento, por um diálogo em que predominam as zonas de sombra. Raras vezes, há menção ao que vestem. E, quando tal acontece é, apenas, uma breve referência: algo para determiná-lo tenha ele uma efêmera presença ou possua um imprescindível desígnio narrativo. Algum detalhe do vestir: estar em mangas de camisa como o homem que vendia gasolina na beira da estrada: emponchados, agasalhados, como alguns em Santa Maria de noite chuvosa e ruas desertas entravam no café; usar calção de banho como Norberto ao chegar no mar; viajar de calção com o casaco de pijama por cima como seus companheiros de viagem.

            Com mais algum detalhe, a referência ao traje de um personagem-figurante: o sujeito baixo, as pernas finas, calçadas com quilote branca que sobressaía muito da cor escura das botas altas; o rapaz que viajou de avião com os demais e não tinha nenhum agasalho de inverno sobre a roupa barata; o praieiro, um homem de bombacha estreita (parecia calça de guri) em mangas de camisa, chapéu de palha; o coronel que trajava quilote, perneiras, casaco de couro com fecho eclér e levava com ele, fazendo questão de carregar, uma capa gris: era à prova d’água e ele sempre a usava nos trabalhos do campo, nas viajadas a cavalo. Ao descerem todos do avião e se dirigirem para a casa da fazenda, o vento irá abri-la, como, também, a do comandante Amilívio que era preta com botões dourados. Dava-lhe, na tarde cinzenta,  um aspecto lendário..., levando o louco do Cati, assustado, a fugir em disparada o quê foi decisivo no desenrolar da narrativa.


            Menos inocentes, outras menções de Dyonélio Machado ao que vestem seus personagens. O delegado, atendendo as partes, era pessoa de grande importância. Trajava roupa leve. Face pálida (moreno pálido). Todo ele muito bem cuidado, muito distinto. Um anel de bacharel na mão bonita, bem tratada. E policiais fardados acompanhavam Norberto e o louco do Cati, presos, na viagem para Florianópolis; seus companheiros de cela, no Rio de Janeiro, vestiam só calção e tamancos ou casaco de pijama e calção.

            No entanto, é no capítulo “O Professor da Universidade” que a menção à roupa adquire, no entrelaçamento com outras expressões, um significado não mais irônico ou trocista porém, tristemente mordaz e crítico. Num anfiteatro, o professor Castel e seus assistentes, semanalmente, davam consulta geral, assistida pelo corpo clínico, sempre numeroso. Diante de todos e com a porta aberta, o doente se despia. Às vezes, pessoas da família do paciente – invariavelmente de pé, afastadas, a face triste, as mãos ocupadas com as peças de roupa que ele ia despindo e não atinando onde largar. O diagnóstico era dado, os interessados reviam suas anotações e o doente tornava a vestir-se, ali, diante de todos.