domingo, 28 de outubro de 2007

Animais na Conquista:as ovelhas


  Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett , sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 

            O trato do Vice-rei do Peru com o capitão Juan Núñez de Prado para, no desejo de se apossar mais e mais  das terras do Continente, fundar uma cidade, não foi fácil. O Vice-rei tinha pressa – deu-lhe um prazo de dois meses, nem um dia a mais – e o capitão precisando de recursos informa: prometeram cavalos e gados, bois, cabras, ovelhas, porcos [...] e menciona, também, cães que haviam sido trazidos no barco. Animais que, parte da expedição, igualmente, como os homens, são vítimas dos elementos, dos acidentes topográficos e da crueldade regendo os atos dos que se atribuem todos os poderes. Dos animais do Continente há, uma vez, menção aos uivos dos lobos e dos chacais e às lhamas. Estas, já usadas (como as mulas e os índios) para carregar os pedaços da cidade na mudança e que não se diferenciam dos homens e dos outros animais, pelo seu estado lastimável: secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos. Uma vez, fazem parte do cenário, passando ao longe como, também, fazem parte do cotidiano perigoso da trajetória o porco e as galinhas. O porco, movendo-se, solene e medroso entre os soldados ou, caindo nos precipícios sem elegância, ignorantes e desconcertados. As galinhas a saltar de arbusto em arbusto, aborrecidas, protestando fugazmente, se alvoroçando na praça do mercado ou, com tento, entre os cavalos e os cães. E, se afundam na água de um riacho e cacarejam apressadas ou apressadas e dignas, com certa malignidade clarividente pulam nas paredes das casas e desaparecem nos quartos. O galo, quando as carretas pararam sob a chuva, se pôs a cantar com escândalo e o capitão sente suas asas que se agitavam na escuridão e divisa seu peito vermelho, danificado pela chuva. Sente, também, noutra seqüência, o cheiro de leite fresco das cabras e mais adiante, se dá conta da presença das ovelhas. Sem surpresa, olha as cabras e as ovelhas que, sem rumo, correm entre as cadeiras atiradas cá e lá e as outras que se roçam nas carretas. Ouve alguém que lhe chama a atenção para a lã, uma lã manchada. Elas balam no escuro e, como as vacas e os bois, fogem espavoridas pelas ruas e se despencam nos precipícios.

            Como uma síntese do que, nesse incessante caminhar por terras estranhas em meio à agitação dos atos (fazer e desfazer a cidade) e à inquietação dos homens (medo, cansaço, solidão, doenças, ferimentos, mortes), essa ovelha que os soldados vêem balar humilde, parada na escuridão, com sua lã triste a ressaltar na penumbra, e o focinho palpitando assustado e faminto.

 

domingo, 21 de outubro de 2007

Animais na Conquista:os pássaros


              Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso território, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas de la Conquista, ciudades refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las  (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capitulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade. 

            Já cavalgando com os pedaços da cidade carregados nas carretas e no dorso dos índios, Juan Núñez de Prado pergunta quanto tempo será preciso para encontrar o lugar que lhes convenha. Um dos capitães responde: antes de oito dias, estaremos traçando a rua principal e desenhando a praça e, então, vamos disparar os arcabuzes para saber se há pássaros nos arredores. Na cidade que deixavam, os índios e os cães e os pássaros fizeram seus ninhos e tocas e conciliábulos e, nas vigas dos tetos das casas terminadas, havia arrulhos nas noites enluaradas. Presença que aqueles cujo desejo era ver a cidade pronta, almejavam tanto quanto as montanhas, os rios e as cascatas. Quando destruíam a primeira cidade no ar cálido sob o céu azul, pelo céu passavam pássaros negros, olhavam sem vontade e planeavam lentos; ou grasnando como a ferir, espiando-os  com hostilidade; no caminho, soavam frescas asas de pássaros e na cidade construída, pombas voavam em torno da igreja  e ao toque dos sinos, se espalhavam pássaros.

            Sozinho na cidade  abandonada, um dos capelães, movido pela revolta, fica para dar sepultura aos mortos, deixados pelos espanhóis. Passa a noite sentado com os olhos abertos, respirando o ar frio da noite agradável, polvilhado de perfumes e de tênues ruídos distantes, em algum galho alto um passarinho cantava. Ao contar o que vivera nesses dias, diz que imaginava o pequeno pássaro fora de seu ninho para espiar as trevas. Então, adormece. No relato que segue, diz como enterrou os mortos, sentindo os abutres caminharem na terra e, depois, levantando vôo, continuarem a dar voltas a seu redor. E como tornou a vê-los, mais tarde: eram quatro e, diante das forcas vazias e da casa fechada, se dispuseram, no seu entender, a esperar sobre as vigas do teto, aberto pelos soldados para disparar contra os donos da casa que não queriam partir, ignorando as ordens do capitão. Eram dois: um, doente, caído de costas. O outro, dono da casa, tinha a cabeça caída de lado sobre a mesa e numa das mãos, ainda havia um pedaço de pão. O padre fechou a janela para protegê-lo dos abutres, mas quando os tirou da casa e enterrá-los, as aves já estavam a postos, como haviam estado perto da forca, esperando que ele fosse embora. O padre se acostumou com eles – eram belos e repelentes – os descreveu com vagar, dando-lhes nomes, imaginando-lhes sentimentos e, sobretudo convicto que eles sabiam proceder e tinham paciência. De repente, um deles já entrara na casa, subira na mesa e picotava o pão que estava entre os dedos do morto. O outro, pulou no peito do soldado e deu-lhe uma bicada. Nas seqüências que seguem, intercaladas, entre muitas outras que descrevem e revelam os sentimentos do capelão, abundam as zonas de sombra, e, muito, deve ser subentendido nas impressões oriundas da sua impossibilidade de separar o real do que lhe sugeria o seu estado de exaustão.

            Se, por um lado, na presença dos pássaros no relato, se instala como que um claro-escuro – pássaros que fazem parte do espaço no qual se adentram os espanhóis e abutres que vivem dos despojos que  esses mesmos espanhóis com seus crimes propiciam – por outro, se insere um posicionamento crítico sobre os atos dos espanhóis.

            Quando ele se aproxima da casa onde estavam os espanhóis mortos e olha, temeroso para dentro, pensa entender o que, talvez, fosse a voz de sua consciência: os abutres a murmurar num  grasnido depreciador e impaciente como dizendo-se, olha esse frade idiota que esses e esses outros e certamente outros mais além, sob as portas, entre as roupas, debaixo dos montes de cordas, estão bem mortos, completamente mortos, é espanhol esse frade pícaro e não sabe como trabalham seus amigos, seus grasnidos [ele diz] me obrigaram a entrar cheio de vergonha na casa e eles tinham razão,meus amigos trabalharam bem, sabiam o que faziam e o fizeram com perfeição.

 

domingo, 14 de outubro de 2007

Animais na Conquista: os cães


Juan Nunes de Prado, com duzentos homens,  índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário enfrentando discórdias e desventuras para fundar uma cidade. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crónicas de la Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades, romance publicado em Barcelona, Noguer, 1973. No segundo capítulo, o capitão e seus homens, avançam no Continente, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.

 
        São muitos e, muitas vezes, mencionados no relato e se revelam pelos seus latidos e seus uivos. Os soldados ou os capitães os escutam nos sons vindos de longe, perdidos na névoa, em meio à mata ou, desesperados, sob o vento da tormenta; principalmente,  pelas relações que se estabelecem entre esses homens que, pela primeira, palmilham as paragens do Continente e os cães que trouxeram consigo  no caminho da Conquista. Ao escutá-los, o capitão conta mentalmente, e conclui que são três os que latem; quando a carreta para, os cães saltam e, latindo, o reconhecem. Ainda assim, ao resolver abandonar a cidade não  hesita em  deixá-los,  embora já estejam meio mortos de fome. Por vezes, os cães se igualam aos índios: com eles, se protegem ao lado dos eixos e das rodas das carretas e, com eles, dormitam sob o sol, na praça rodeada de árvores verdes. Deitam, perto dos soldados,  olhando as chamas com o focinho aberto. Outras vezes, os soldados os têm por companheiros. Brincam com eles ou por eles se preocupam ao perceber a angústia no seu latir e, então, os chamam, os procuram no escuro da noite, como se fossem eles e não os cães os que estivessem perdidos e desesperados.

        No entanto, existe, também, um elo muito forte a ligar os cães a alguns soldados ou ao padre Carvajal. Há o cão que acompanha, latindo, um soldado que foge; outro, persegue um soldado coxo que busca se esconder porque os doentes são deixados para trás quando os espanhóis partem para fundar a cidade em outro lugar. E há aquele que se afeiçoa, escolhe como dono um soldado ou por algum soldado é escolhido. Quando, por entre os escombros da cidade, o prisioneiro, com os braços atados por cordas que lhe cruzam o peito e lhe sobem pelos ombros, caminha depressa,  um cão lhe segue os passos como se estivesse a seguir o seu dono. Assim,  na cidade vazia, o cão  guarda seu amo, já morto. Ao ser abandonado o primeiro assentamento, foram deixados alguns espanhóis sem sepultura. Padre Carvajal, indignado, não segue junto com a expedição, mas fica para enterrá-los. Ao entrar numa casa , encontra um espanhol morto, ainda sentado à mesa e o cão. O padre relata que ele grunhia mais do que tudo com tristeza, com desalento, com desamparo, para me indicar que estava muito triste e sozinho[...]. Por isso, se aproximou do padre e se deixou acariciar e ficou a seus pés enquanto dormia. Depois, lhe acompanhou os passos entre as ruínas e, ao ver os enforcados, uivou devagarzinho. O padre os tirou da forca e os enterrou e quando isso foi feito, o cão se aquietou.

        Nesta presença dos cães junto com os homens da Conquista foi impossível eludir fidelidades e afetos. E, igualmente, impossível, eludir que eles tanto foram vítimas, como testemunhos do mal e da violência que vicejavam, sem freios, entre esses homens que, pela primeira vez, palmilhavam as desconhecidas terras do Continente.

 

 

 

 

 

 

domingo, 7 de outubro de 2007

Animais na Conquista; o gado



Designado pelo vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado, com duzentos homens, índios submetidos e animais, percorreu um extenso itinerário, enfrentando discórdias e desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da História Oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances do Continente latino-americano. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente, carregando seus pertences, em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez a cidade.
 

               As carretas rangem nos seus eixos, as rodas se afundam no barro e mugem os bois, não somente os que arrastavam as carretas como também os que vinham atrás, dispersos na sombra, ocultos nos matos, deslizando-se através dos pântanos, bramando de terror nos precipícios. Acompanham o destino dos homens que os conduzem: gado triste e ferido e aparecem, no relato, principalmente, pelo seu mugir ao puxar as carretas, ao se perder nos desfiladeiros e nas ribanceiras, ao desaparecer na escuridão. Avançando entre as árvores, nelas se roçam; pelos abismos, se despedaçam; e nas noites de chuva e vento, se afogam. Por vezes, fogem espavoridos, levando as rodas das carretas até bem perto das montanhas. Assim, fugaz e diluída, é sua presença para os homens que deles se servem. Estão certos de que os bois, como o silêncio, lhe seguem os passos e que se os homens se perdem nos abismos, com eles se perde, também, o gado. E uma vez que a vida humana, nas andanças da conquista, pouco valor possui, embora imprescindíveis para carregar dos homens suas armas, suas roupas, seus móveis, seus alimentos, pedaços de suas casas, quando as carretas se gastam e as muralhas da cidade são destruídas, o gado é espantado na direção das rochas, na direção das serras.  

               Daí ser possível que soldados açoitem com fúria uma junta de bois; que, ignorando seus flancos esfalfados os puxem pelos chifres e os arrastem até as carretas onde devem ser atrelados; que os olhem fugir cheios de baba, com os olhos desorbitados e tranqüilos, como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte e o desespero[...].

               Assemelham-se, nesse modo cruel com que são tratados, aos soldados doentes ou feridos – maltratados e mortos segundo os desígnios dos capitães – cuja perda, como a do gado, parece pouco importar.

               Ao se aventurar na Conquista, os homens como que repudiam o passado e os valores que, porventura, neles tivessem acreditado ou, apenas, repetem o que haviam sido antes de abandonar o cenário onde viveram, a família que tiveram para enfrentar toda sorte de riscos e traições, no desvario de buscar riquezas, honrarias e poder. Pretendendo um  futuro nesse mundo que lhes é desconhecido, o imaginam promissor e, para consegui-lo, soldados e capitães se igualam ao se abstrair de sentimentos e de razões éticas. Então, também, os animais se tornam vítimas.