domingo, 24 de junho de 2007

O tempo das semanas e dos meses

            Ponciano de Azeredo Furtado começa por dizer que é coronel de patente. E vai contanto a vida que teve de menino rico a crescer sem muitos sustos e dos sustos fugir. Enreda-se em aventuras e amorios e vai desvelando sua alma e seu viver nos campos de um Brasil que parece inventado, numa estrutura ficcional presa, minuciosamente, a um correr do tempo marcador de ações e sentimentos. Muitas vezes, faz menção à semana, em referências que indicam – a não ser um par de semanas, semana toda, semana depois – uma indeterminação temporal: pelo correr da semana, volto numa semana, no decorrer da semana. Indeterminação que não se desfaz com as expressões que lhe conferem um limite: todo rabo de semana os rabos de semana, no oco da semana, no fim da semana, o resto da semana, no arredondar da segunda semana, no morrer da segunda semana. E nem se verifica, maiormente, no uso da expressão quinzena. Salvo em três casos, há mais de uma quinzena, uma quinzena não era passada, nem uma quinzena era passada, indica uma passagem de tempo exata: safadeza de uma quinzena, quinzena de vadiagem, quinzena de buscas, quinzena bem contada, uma quinzena vencida, por tempo de uma quinzena, no corpo de uma quinzena. Também aparece como referência em relação a um tempo anterior (uma quinzena de menos, uma quinzena antes da eleição) ou a um tempo posterior (uma quinzena mais adiante, passou uma quinzena e mais outra dobrou a esquina) . 

            Tanto as referências à semana, como à quinzena, curiosamente, contrariam as demais notações de tempo que se relacionam a fenômenos da natureza, a acontecimentos sociais, a animais, à estações, a sentimentos, sempre ricas de sugestões. Como se o registro dessa duração de tempo transcorrido, encerrado em sete ou quinze dias, tivesse, apenas, como função precípua destacar as traições, as perfídias, os ódios, os desabafos, as promessas, as esperanças, os receios, as privações, as amizades, os prazeres, as desavenças, os contentamentos que pontilham a vida do Coronel.
 

            Eludindo os termos semana e quinzena, aparecem as seqüências meio mês não era decorrido, meio mês. Medida de tempo que, também, profusamente, indicará sua duração convencional ou de um prolongar indefinido: com o passar dos meses, com o andar dos meses. Porém, no dizer do Coronel, por vezes, se acrescentam a essas medidas, informações que o mostram conhecedor das mudanças trazidas pelo passar do tempo no seu universo: mês de inhambu, mês de cigarra, mês de lua grossa; ou, a elas sensível: De tarde, debruçado na varanda, vi chegar o roxo das quaresmeiras. Peguei um susto. Abril levantava asa. Um exemplo do que, no relato, as noções de tempo além de funcionarem também como suas linhas condutoras fazem emergir preciosos achados estilísticos. Certamente, imbuídos de insubstituíveis elementos para a composição do personagem narrador nas suas vivências reais ou inventadas. Tão magníficas, na escrita de José Cândido de Carvalho que Raquel de Queiroz na reedição de O Coronel e o lobisomem confessou que se não fosse uma velha senhora e ele, tão mais jovem, até lhe tomava a bênção, de tanto o admirar.

domingo, 17 de junho de 2007

O encontro abençoado


            Cristóvão Colombo passou meses implorando ajuda, incapaz de desistir do sonho de conhecer o fascinante universo que apenas entrevira na sua primeira viagem à América e abriu o caminho da violência: em troca do frete dos navios e mercadorias oferecia um carregamento de escravos. A primeira ilha descoberta foi, então, vítima dos colonos ali deixados. Matanças como represália ou por prazer a despovoaram em menos de dez anos. La Española, hoje o Haiti e São Domingos e, depois, Cuba, em 1508, foram o cenário onde os europeus aprenderam a fazer dos índios animais domésticos e onde cometeram, na luta entre si mesmos, o perjúrio, o homicídio, o roubo. Em La Española foi legalizada a venda de seres humanos, início de um interminável período de atrocidades que a arqueóloga Laurette Sejourné documenta em América Latina: antiguas culturas precolombianas (Madrid, Siglo XXI, 1971). As costas da Venezuela e Colômbia e das ilhas vizinhas, passarão a ser  provedoras do gado humano que, no México, os europeus não cessavam de exterminar. No Panamá, Vasco Núñez de Balboa, com suas armas de fogo, seus punhais e seus cães, pilhou riquezas, escravizou e exterminou índios. Em Cuba, para não sofrerem as atrocidades dos conquistadores que, na sua fúria pela posse do ouro não tinham limites, os índios –  exauridos no trabalho, sem receber alimento, mutilados, assassinados –  muitas vezes, optavam pelo suicídio. Nos relatos de Hernán Cortez a Carlos V, a matança sistemática de um assombroso número de índios é enaltecido: lutávamos por nossa fé e a serviço de vossa sagrada majestade. [...] Deus nos deu tanta vitória que matamos muita gente, sem que os nossos recebessem danos. Seu proceder, dito guerreiro –  ataques ao amanhecer, incêndios dos povoados indígenas, morte de mulheres e crianças – foram os mesmos usados pelos demais conquistadores. No Equador, queimados vivos os chefes indígenas e os demais índios torturados e marcados com ferro. O ouro achando-se em poder dos habitantes do Continente, determinou duas medidas ao redor das quais se cristalizou o mecanismo prático e ideológico da conquista por parte dos monarcas espanhóis. Primeiro, que a finalidade da conquista era econômica e que, portanto, a aproximação com os autóctones poderia ser recusada; segundo, a determinação de uma arenga, um Requerimento para explicar aos indígenas a grandeza dos soberanos espanhóis, do Papa, da fé, em nome da qual lhes proporcionariam ajuda e que se recusassem a submissão seriam capturados. Teoricamente, o documento deveria ser lido (numa língua que os indígenas não conheciam) antes do começo das hostilidades o que nem sempre acontecia. Mas, a partir dele, a inegável legalização da rapina: se não houver submissão à Igreja e ao rei da Espanha, uma guerra sem trégua, por todas as partes e de todas as maneiras; a escravidão, inclusive das mulheres e das crianças e o direito de vendê-las; expropriação de todos os bens e razão para causar todos os males e danos possíveis.

            De fato, concluiu a arqueóloga francesa, tal Requerimento se constitui a estrutura moral que os monarcas divinos e terrestres deram à invasão: a essência divina da conquista.

domingo, 10 de junho de 2007

O encontro:Uruguai

      

            Juan Zorrilla de San Martin, nascido em Montevidéu, em 1855, tinha nove anos quando seu pai, temendo que a educação oferecida na capital do Uruguai o afastasse da fé tradicional de seus antepassados, o internou no Colégio dos Padres Jesuítas da cidade de Santa Fé, na Argentina, onde fez seus primeiros estudos e, depois, o enviou a Santiago do Chile para se formar em Direito. Culto da tradição espanhola castiça que, inegavelmente, conduziu o longo poema que tanta fama lhe traria, Tabaré, publicado em 1886, em Paris. Mais do que a história do índio que dá nome ao livro, os versos são o testemunho do confronto entre os espanhóis da conquista e os habitantes do Continente.

         Dom Gonzalo de Orgaz, cioso de sua estirpe fidalga, chega às planícies do Uruguai  trazendo com ele, a mulher, Dona Luz e a irmã Branca. Numa das investidas terra a dentro, seus homens fizeram muitos charruas prisioneiros e, entre eles, Tabaré, o índio de olhos azuis e pele clara, herança da mãe espanhola. Ao passar, rodeado pelos soldados, atrai a atenção de Branca que entende o porquê de sua luta: defender a terra em que nasceu / A liberdade que o espanhol lhe arranca. Também a de Dom Gonzalo que, diante da placidez e coragem que mostra ao se ver ameaçado pelas armas, lhe permite estar em liberdade no povoado espanhol. Contraria, então, dona Luz que o exorta a se lembrar do sangue espanhol derramado: esses selvagens homens não são [...] não possuem alma. E os seus soldados que ao ver o índio solto o criticam: Pois não deu para acreditar, o bom fidalgo /que o índio destes bosques tem uma alma / como a nossa e é vassalo e súdito do Rei Nosso Senhor?
            Assim, ainda que pretenda conferir aos charruas uma presença na História do Uruguai pois acredita que se trata de uma raça morta, uma desgraçada estirpe que agoniza, uma raça que passou sem deixar rastro, uma pobre raça moribunda, o apego a sua origem hispânica faz com que Juan Zorrilla de San Martin o deprecie: quando diz que,  Madalena, a mulher branca, salva em meio a luta entre índios e espanhóis, será contemplada com avidez felina pelo cacique e levada para seu toldo para que acenda os fogos do amor e da guerra. Ainda que o poeta louve seus feitos guerreiros, dirá que se embriaga e participa de selvagem orgia. Depois de dar à luz a Tabaré, a espanhola se deixa morrer. Não sem antes batizá-lo nas águas do rio e demonstrar-lhe muito amor. Em meio aos brancos, Tabaré se angustia misturando as lembranças da mãe com a atração que nele exerce a jovem Branca. Don Gonzalo, sem entender o seu comportamento arredio e triste , influenciado pela mulher, o compara ao tigre, ao jaguar e exclama raça maldita. E maldita raça dirá um velho soldado a rememorar os embates outrora ocorridos. E reafirmará Dona Luz à Branca, propensa à piedade:  Estás pensando / Que são capazes de paixões boas  Esses homens nascidos para escravos?

             Como diz Jean Franco, sendo o poeta um fervoroso católico, é compreensível a sua certeza de que somente pela mediação do catolicismo as raças selvagens poderiam ser salvas da extinção.

            Na década de trinta, durante o primeiro governo constitucional do Uruguai havia sido determinado o extermínio dos charruas, considerados ladrões de gado.

domingo, 3 de junho de 2007

O encontro:Equador


            Foram seis peças de teatro e um livro de contos, escritos pelo equatoriano Jorge Icaza, antes da publicação, em 1934,  de Huasipungo, considerado um dos romances realistas de maior força no Continente. Como os demais que se lhe seguiram, Las calles, Cholos, Media vida deslumbrados, El chulla Romero y Fores, trata de temas políticos e raciais e se abriga, nas histórias literárias sob o rótulo romance indianista. Em Huasipungo, estreitamente, se entrelaçam as relações entre os donos da terra, quase sempre usurpada, e os índios: Alfonso Pereira, descendente de ibéricos, proprietário rural, negocia com uma companhia estrangeira, que pretendia explorar petróleo, a construção de uma estrada abstraindo o fato de que devia passar pelas parcelas de terra (os huasipungos) que pertenciam aos índios. Para atender os interesses imperialistas, não apenas se apossa dessas parcelas de terra como, ainda, os convence a trabalhar, sem nada receber em troca. Primeiro, confabula com o chefe político local e com o padre, usando argumentos ouvidos, provavelmente, de um demagogo da capital onde vivera, até então: Chegou a hora de dar vida e cultura aos moradores desta bela região! As estradas...As estradas são a vida e os povoados devem abrir suas estradas. O passo inicial é tomado pelo padre, programando uma festa solene com missa cantada, sermão e ação de graças, pois, assim, os índios, sentindo-se protegidos, trabalhariam com maior brio. Até jogar para fora os bofes, diz, com sinceridade grosseira, o chefe político. Na prática, o aliciamento foi sendo conduzido pelo padre que, depois de cada missa, falava longamente sobre  a obra gigantesca que era preciso realizar com urgência e oferecia, sem pudor, generosas recompensas de bem-aventuranças: Oh! Sim. Cem mil dias de indulgência por metro avançado na obra. Só assim, o Divino Criador lançará suas  bênçãos sobre este povoado. A seguir, foi o ato patriótico, reunindo, na praça, os habitantes de todos os arredores, num desfile de crianças e velhos que, emocionando, levou a uma participação em massa e a se deixar convencer ao ouvir a arenga: Nós  vamos realizar sozinhos o anelo de nossas vidas: a estrada,[...]. Com nossas próprias mãos, com nossos próprios corações. E os trabalhos se iniciaram e se prolongaram até que os índios trabalhando, sem comida e sem teto, começaram a se dar conta de que, outra vez, estavam sendo enganados e lesados, obrigando aquele que se pretendia dono das terras, diante de um possível fracasso de seus planos e da vergonha diante do estrangeiro, a repartir muita aguardente e uma ração de milho e de batatas para cada trabalhador. Oh! Se fosse algo espiritual. Bem... eu poderia..., murmurou o padre, ignorando que  se tratava de vida: inumana, injusta,cruel. E de condenações à morte. 

            O índios se sublevaram por suas terras, por seus animais, pelo que haviam semeado. Com a presteza como as autoridades agem em tais casos, soldados foram enviados e, diligentemente, mataram os índios, as mulheres e as crianças que estavam escondidas embaixo de umas folhagens. Incendiaram as choças.

            Na desolação dos cadáveres e das cinzas chegaram os senhores gringos