domingo, 13 de maio de 2007

A venda


            Primeiro, foi o desembarque de uma viagem de mortes e desesperos, iniciada em Benin, na África, de onde partiam os navios negreiros. Depois de atravessar o Oceano Atlântico, a narradora, então com oito anos, diz ter sentido vontade de nascer de novo diante da costa brasileira, do mar azul, dos sons dos pássaros e do falar dos homens. Antes, porém, de pisar nas terras do Continente, era preciso ser batizada, receber outro nome. Para não perder o seu, ela fugiu se atirando no mar e, quase sem saber nadar, chegar à Ilha dos Frades, onde ficaria com os demais passageiros do barco, esperando até que houvesse certeza de que não estavam doentes. Só então foram levados para a cidade que, de longe, lhe pareceu luminosa e lá chegando, ao mercado onde estavam amontoados, à espera de um comprador, homens e mulheres de várias idades desde crianças de colo até idosos, quase todos nus e magros. Sobretudo, as crianças que haviam ficado órfãos durante a viagem ou sido separadas dos pais por compradores interessados apenas nos adultos. A narradora, piamente, acreditou que não teria o destino dessas crianças. E não se enganou. Foi poupada da ilusão que alimentava as manhãs dos que estavam no armazém, renascida da esperança de serem escolhidos e levados embora da fome, do frio e da desonra de ficar ali, por muito tempo, dia após dia, sendo preteridos e humilhados. Quando o comprador branco já ia indo embora, satisfeito com a compra que fizera, passou os olhos pelo armazém e apontou a bengala na sua direção. Antes mesmo de ser chamada pelo empregado, como era de praxe, a narradora correu e se submeteu ao ritual que já havia visto, executado no ato de compra e venda: o comprador, apalpando o corpo do homem ou mulher que o interessava, fazendo com que mostrasse as plantas dos pés, erguesse os braços, pulasse para mostrar agilidade e rapidez, abrisse a boca para exibir os dentes. Assim, ela correu, pôs a língua de fora, gritou e pulou e repetiu tudo de novo. Foi comprada e ficou feliz por ter sido escolhida no segundo dia após ter chegado. Saiu amarrada com os outros dois, mas para que a transação se efetuasse teve que adotar um nome cristão. Escolheu o que ouvira pouco antes. Passou a ser chamada Luísa e não Kehinde como até então. Tampouco, poderia falar a sua língua nativa e praticar o seu culto.

            Não havia, ainda, entendido, muito bem e logo, que se tornara uma escrava e que um escravo era alguém por quem o dono tinha pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que tinha antes de ser comprado.

            Sua história foi contada em Um defeito de cor, publicado pela Record em 2006, Prêmio “Casa de las Américas”: longo livro em que Ana Maria Gonçalves, entrelaçando a ficção com a História, mostra, na trajetória da personagem, como também já o fizera Josué Montello em Os tambores de São Luiz, o que foi a vida dos negros trazidos como escravos para o Brasil .Uma leitura imprescindível.

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