Primeiro,
foi o desembarque de uma viagem de mortes e desesperos, iniciada em Benin, na
África, de onde partiam os navios negreiros. Depois de atravessar o Oceano
Atlântico, a narradora, então com oito anos, diz ter sentido vontade de nascer
de novo diante da costa brasileira, do mar azul, dos sons dos pássaros e do
falar dos homens. Antes, porém, de pisar nas terras do Continente, era preciso
ser batizada, receber outro nome. Para não perder o seu, ela fugiu se atirando
no mar e, quase sem saber nadar, chegar à Ilha dos Frades, onde ficaria com os
demais passageiros do barco, esperando até que houvesse certeza de que não
estavam doentes. Só então foram levados para a cidade que, de longe, lhe
pareceu luminosa e lá chegando, ao mercado onde estavam amontoados, à espera de
um comprador, homens e mulheres de várias
idades desde crianças de colo até idosos, quase todos nus e magros. Sobretudo,
as crianças que haviam ficado órfãos durante a viagem ou sido separadas dos
pais por compradores interessados apenas nos adultos. A narradora, piamente,
acreditou que não teria o destino dessas crianças. E não se enganou. Foi
poupada da ilusão que alimentava as manhãs dos que estavam no armazém,
renascida da esperança de serem escolhidos e levados embora da fome, do frio e
da desonra de ficar ali, por muito tempo,
dia após dia, sendo preteridos e humilhados.
Quando o comprador branco já ia indo embora, satisfeito com a compra que
fizera, passou os olhos pelo armazém e apontou a bengala na sua direção. Antes
mesmo de ser chamada pelo empregado, como era de praxe, a narradora correu e se
submeteu ao ritual que já havia visto, executado no ato de compra e venda: o comprador,
apalpando o corpo do homem ou mulher que o interessava, fazendo com que mostrasse
as plantas dos pés, erguesse os braços, pulasse para mostrar agilidade e
rapidez, abrisse a boca para exibir os dentes. Assim, ela correu, pôs a língua
de fora, gritou e pulou e repetiu tudo de novo. Foi comprada e ficou feliz por
ter sido escolhida no segundo dia após ter chegado. Saiu amarrada com os outros
dois, mas para que a transação se efetuasse teve que adotar um nome cristão.
Escolheu o que ouvira pouco antes. Passou a ser chamada Luísa e não Kehinde
como até então. Tampouco, poderia falar a sua língua nativa e praticar o seu
culto.
Não
havia, ainda, entendido, muito bem e logo, que se tornara uma escrava e que um
escravo era alguém por quem o dono tinha
pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo
trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que
tinha antes de ser comprado.
Sua
história foi contada em Um defeito de
cor, publicado pela Record em 2006, Prêmio “Casa de las Américas”: longo
livro em que Ana Maria Gonçalves, entrelaçando a ficção com a História, mostra,
na trajetória da personagem, como também já o fizera Josué Montello em Os tambores de São Luiz, o que foi a vida
dos negros trazidos como escravos para o Brasil .Uma leitura imprescindível.
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