domingo, 27 de maio de 2007

O encontro: Peru


           La muerte de Atahualpa foi escrita em Paris, no ano de 1950 e sua estréia ocorreu sete anos depois, sob a direção do próprio autor, Ricardo Roca Rey, num cenário ao ar livre, montado junto às ruínas pré-incaicas de Puruchuca. Dos muros de pedras, duas tochas iluminam a cela onde se passará a ação. Ela se inicia com a entrada em cena do frei dominicano Vicente de Valverde, cuja primeira réplica, dirigida a Atahualpa, coberto por uma severa túnica e acorrentado é: Já estás batizado. Ao que retruca Atahualpa : submetido, porque submetido, convertido, batizado, para ele, tem o mesmo sentido pois não ignora que será executado.
 

            O drama do autor peruano é feito de um único ato e de três vozes: a do Inca, a do frei Valverde e a de Felipillo, jovem índio porque os outros quatro espanhóis, os alabardeiros, são apenas figurantes e nada lhes compete dizer. O diálogo entre o Inca e o frei dominicano, que tem, entre as mãos, uma cruz de madeira, é como a síntese do que foi a ação colonizadora dos ibéricos  no Continente, mascarada pela palavra catequizaçãol. Primeiro, um fala de Pizarro, enviado às terras do Continente por Deus, em nome de Carlos V, com o intuito de ganhar novos reinos para a cristandade, impor o signo da cruz porque ao fogo de sua fé cristã se acrescenta o fogo de sua vontade poderosa; e, também, para oferecer a esperança do céu. Atahualpa responde que o diabo ajuda Pizarro a submeter os incas, visando obter ouro e que a ambição o domina e o arrasta pelos caminhos do crime. Depois, as acusações de parte a parte. O frei responsabiliza Atahulpa de incitar uma rebelião contra os espanhóis; Atahulpa nega, argumentando que não poderia fazê-lo, mantido preso e vigiado dia e noite; e se insurge contra a corrupção que os espanhóis introduziram no seu reino onde ele queria impor a ordem e a unidade. E diz o frei que dos incas, os espanhóis, embora afirmando que chegavam em paz, receberam ameaças. Exclama Atahualpa sobre essa propalada paz: submetendo meus reinos pela força, escravizando a minha gente, saqueando os templos, violando as virgens destinadas ao Sol!. O que não é negado pelo frei – a soldadesca é sempre brutal – que se inocenta, com veemência, na afirmação de que nunca estivera misturado a esses atos, que a sua missão consistia, apenas, em levar a fé, em conquistar almas. Por isso, em troca de seu batismo que faria sua alma pertencer a Deus, havia conseguido que lhe mudassem a pena de morte na fogueira pela pena de morte no garrote. E lhe entrega a cruz como um consolo para a morte próxima e sai de cena. Atahualpa, enlouquecido pelo ruído dos tambores que soam sem parar, em longa oração, invoca a Viracocha, Tarapacá, Tonapa, seus deuses que, tampouco, lhe são de valia. É quando entra Felipillo, vestido como um espanhol. Mostra-se humilde e compreensivo, porém logo se deixa arrebatar pela cólera diante das palavras de Atahulpa que lhe desenham o perfil de traidor e o aconselham: tu que és ambicioso, aprende a fabricar este objeto. Olha que fácil é: apenas duas madeiras atravessadas. Com ele, podes submeter reinos, escravizar povos e assassinar imperadores.

domingo, 20 de maio de 2007

O canto essencial

  
     
 Publicado em 1960, traduzido em uma vintena de idiomas e com mais de cento e cinqüenta edições, acaba de ser lançado no Brasil A trégua, de Mario Benedetti. Como romancista, contista, ensaísta, crítico literário, cronista e poeta, um dos grandes nomes da Literatura latino-americana, o autor uruguaio sempre expressou o que no Continente – e em especial no seu país – se passava. E dizer verdades, dar testemunho o levaram a um exílio de muitos anos que não o calaram como o demonstram os inúmeros títulos que foi publicando nas andanças, determinadas pelos algozes bem pensantes do Continente. Em Cotidianas que reúne suas poesias de 1978 e 1979, expressa momentos de um cotidiano em que percebe a vida no persistente canto de um grilo, no repentino instante de alegria, no único verdadeiro de que é feita: o efêmero. Lúdico, verseja sobre o amor, sobre a rosa, imagina que seis de seus versos, jogados no mar, dentro de uma garrafa serão “pedrinhas e socorros e alertas e caracóis” para a criança que os encontre. Testemunho, denuncia a destruição das árvores, o encarceramento nas prisões das ditaduras, dos que “penam por todos/e resistem”. E, na certeza do inaceitável caos em que estava submergido o Continente, prega uma esperança convicta no seu esplêndido poema “Por qué cantamos”. Título feito de uma interrogação (em espanhol, indicada pelo acento agudo na partícula “que”) que irá se repetir, incisiva, ao se dirigir a um interlocutor, usted, como uma estrofe de um só verso entre os quatro primeiros quartetos dos oito que compõem o poema. Nestes primeiros quartetos, Mario Benedetti faz um inventário dos sombrios tempos das décadas de sessenta e setenta para os latino-americanos que tinham a ousadia de pensar: Se cada hora vem com sua morte, se nossos bravos ficam sem abraço, se cada noite é sempre alguma ausência e cada despertar um desencontro. Situações limites na proximidade com a decretada e inquestionável destruição, adjudicada pelos, então, donos do poder, que não justificaria esse cantar que ele, o poeta, se propõe. E que a partir da quarta estrofe se explicará no iniludível: o fruto, o caule, a chuva, o rio a rumorejar, o campo exalando primavera. E no imprescindível porque o grito, o pranto, o combate são insuficientes e há o futuro e há os que sobreviveram. Mais do que tudo, a crença de que os mortos desejam esse canto, que a derrota será banida. Lirismo do poeta uruguaio, nascido em Paso de los Toros, em 1920, que se nutre, apaixonado e sagaz, daquilo que acontece a seu redor e faz estabelecer, como já o observara um crítico, na Espanha, com muita força, uma perfeita correlação entre história e literatura. Assim, ainda que seja com um atraso de quase cinqüenta anos é, sem dúvida, meritória a edição de A trégua. E mais seria se a ela se seguissem as demais obras de Mario Benedetti, pois não somente ele possui o dom de emocionar como o de induzir à reflexão o quê, sobretudo, para os habitantes do Continente é algo de singular valia.

           

domingo, 13 de maio de 2007

A venda


            Primeiro, foi o desembarque de uma viagem de mortes e desesperos, iniciada em Benin, na África, de onde partiam os navios negreiros. Depois de atravessar o Oceano Atlântico, a narradora, então com oito anos, diz ter sentido vontade de nascer de novo diante da costa brasileira, do mar azul, dos sons dos pássaros e do falar dos homens. Antes, porém, de pisar nas terras do Continente, era preciso ser batizada, receber outro nome. Para não perder o seu, ela fugiu se atirando no mar e, quase sem saber nadar, chegar à Ilha dos Frades, onde ficaria com os demais passageiros do barco, esperando até que houvesse certeza de que não estavam doentes. Só então foram levados para a cidade que, de longe, lhe pareceu luminosa e lá chegando, ao mercado onde estavam amontoados, à espera de um comprador, homens e mulheres de várias idades desde crianças de colo até idosos, quase todos nus e magros. Sobretudo, as crianças que haviam ficado órfãos durante a viagem ou sido separadas dos pais por compradores interessados apenas nos adultos. A narradora, piamente, acreditou que não teria o destino dessas crianças. E não se enganou. Foi poupada da ilusão que alimentava as manhãs dos que estavam no armazém, renascida da esperança de serem escolhidos e levados embora da fome, do frio e da desonra de ficar ali, por muito tempo, dia após dia, sendo preteridos e humilhados. Quando o comprador branco já ia indo embora, satisfeito com a compra que fizera, passou os olhos pelo armazém e apontou a bengala na sua direção. Antes mesmo de ser chamada pelo empregado, como era de praxe, a narradora correu e se submeteu ao ritual que já havia visto, executado no ato de compra e venda: o comprador, apalpando o corpo do homem ou mulher que o interessava, fazendo com que mostrasse as plantas dos pés, erguesse os braços, pulasse para mostrar agilidade e rapidez, abrisse a boca para exibir os dentes. Assim, ela correu, pôs a língua de fora, gritou e pulou e repetiu tudo de novo. Foi comprada e ficou feliz por ter sido escolhida no segundo dia após ter chegado. Saiu amarrada com os outros dois, mas para que a transação se efetuasse teve que adotar um nome cristão. Escolheu o que ouvira pouco antes. Passou a ser chamada Luísa e não Kehinde como até então. Tampouco, poderia falar a sua língua nativa e praticar o seu culto.

            Não havia, ainda, entendido, muito bem e logo, que se tornara uma escrava e que um escravo era alguém por quem o dono tinha pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que tinha antes de ser comprado.

            Sua história foi contada em Um defeito de cor, publicado pela Record em 2006, Prêmio “Casa de las Américas”: longo livro em que Ana Maria Gonçalves, entrelaçando a ficção com a História, mostra, na trajetória da personagem, como também já o fizera Josué Montello em Os tambores de São Luiz, o que foi a vida dos negros trazidos como escravos para o Brasil .Uma leitura imprescindível.

domingo, 6 de maio de 2007

A razão do canto


            No dia primeiro de janeiro de 2006, O Estado do Paraná, publicou um poema de Manoel Andrade. Seu título “Por que cantamos” remete ao poema “por qué cantamos” de Mario Benedetti a quem, inclusive, o poeta brasileiro dedica seus versos. Na breve nota que os acompanha, Manoel Andrade explica: Num tempo em que todos caminhamos sobre o fio da navalha, me senti, como poeta, implicitamente convocado a testemunhar por que cantamos. Um testemunho sobre dúvidas, injustiças, prisões, torturas, desaparecimentos e mortes que se constituíam uma realidade para muitos brasileiros nesses vinte anos em que a ditadura imperou no país. No poema de Manoel Andrade – feito de uma longa estrofe de versos brancos – esse universo sombrio e escuso é delineado por expressões que registram fatos: balas perdidas, possível emboscada em cada esquina, caminhar num chão minado, a violência sitia os nossos atos, a corrupção gargalha da justiça.... Também, pelo que tais atos engendram: são tantos os caídos, respiramos esse ar abominável / impotentes diante do deboche, as lágrimas repetem: até quando, até quando,até quando.... Crônica certeira do que ocorria no pais e devia permanecer oculto (porque vergonhoso e covarde) tal como ocorria no Uruguai, igualmente sujeito à ditadura. Ao citar o verso de Mario Benedetti você perguntará por que cantamos há como que uma negação para esse cantar pois é constante o medo, o espanto, o silêncio habitado. No entanto, a pergunta se repete e, essencial resulta o ideário que Manoel Andrade enuncia: a esperança que habita em alguns humanos e que determina caminhos mau grado o nefasto que persiste sempre na História dos povos. Assim, ele é pródigo no seu enumerar de razões a justificar o canto e todas elas, enraizadas nas certezas que o fortalecem (uma lei maior sustenta a vida, um olhar ampara os nossos passos, o pânico retardará a primavera); na intenção solidária que o orienta (é imprescindível dar as mãos, a paz é uma bandeira solitária / à espera de um punho inumerável); na relação que possui com a realidade que se mostra a todos, mas, apenas percebida pelos que estão dispostos a ver as estrelas, as rosas, os riachos, a selva, os pássaros, a aurora. Principalmente, Manoel Andrade é possuidor da crença na renovação (a luz se redesenha em cada aurora, no trigal o grão amadurece, alguém está parindo neste instante, há uma partícula de luz no túnel da maldade) e da crença de uma vitória almejada na qual a luz vencerá as sombras e o canto dos pássaros não será silenciado. Sobretudo, tem certeza de que a sua canção irá se perpetuar para dizer das razões de um  trovador que não se cala diante do que o Poder pretende seja silenciado e que acredita ter a poesia “um pacto com a beleza. E que no verso que escreve ou em algum lugar deste universo o seu sonho e, talvez, de uma anônima multidão, floresça deslumbrante.